
Pertinho, vejo verde grama irrigada, mais à frente, suave névoa escondendo calmas águas do Paranoá. Ao fundo o horizonte vermelho.
Troco o pijama por uma camiseta e meias de lã por meias esportivas. Me espreguiço e vou caminhar. Na porta de saída do bloco recebo o impacto do frio no peito. Cumprimento o empacotado porteiro e, em vez de esquerda, escolho a direita. Às vezes temos que sair da rotina e mudar os nossos trajetos e rumos diários. Resolvi trocar as calçadas sujas de cocô de cachorro de madame por calçada marginal ao mato aparado em superquadra ainda não construída.
Andei cem metros e ultrapassei a linha de alcance dos aspersores. A grama mudou de cor para sem cor. Mais adiante formigas cruzaram a calçada numa trilha de cavacos marrons desrespeitando o caminho urbanamente civilizado. Prosseguindo, levantei a vista para o céu sereno e desmaiado. Abri os braços com as palmas abertas para captar energia. A força veio tão forte que podia senti-la pousando nas mãos. Emocionado e incrédulo eu queria ver para crer. Vi partículas pretas. Apurei o olhar e constatei fuligem. Para muito além da névoa seca o fogo pintava o horizonte de vermelho. Na lonjura a cor é suave.
Ainda é cedo. O dia acordou, preguiçoso, ainda não levantou. Está quase silencioso, até ouço cachorros latindo à distância. Devem ser vira-latas, cachorros escovados latem mais tarde.
As árvores nativas não são bonitas. Os galhos são tortos e retorcidos. São errados. Os troncos parrudos têm uma couraça de jacaré para sobreviver nas queimadas. E nesta época do ano, além de não serem bonitas, estão nuas mostrando esqueletos de campos de concentração. Sem conhecê-las não damos valor.
A cabeça recém-despertada capta sem chiados o que me acerca. Passarinho não chia. Passarinho pia. O pio do sabiá está muito próximo.
– Olha lá! Olha lá! Ouça, preste atenção! Faça da boca um assobio e repita. Repita assobiando: – piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô. Não é bonito? É apaixonante.
Continuo meu passo e vejo uma fumacinha no meio do terreno litigioso. Ali não há muito mato para ser queimado. Entretanto o instinto de preservação, nesta época de seca, sugere que eu apague o fogo enquanto estiver baixo. Eu mudo meu rumo na direção da fumaça. Nem precisei caminhar muito. Em volta do fogo vi quatro boquinhas escancaradas de fome, dor, frio e morte. O pai oferecia o desjejum caçado nas caçambas peçonhentas. Adiante da fogueira havia uma tenda de lona preta sob uma árvore de casca dura.
A única luz que havia para aqueles miseráveis urbanos era o amarelo solar das flores do ipê.
Piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô...