15 setembro 2008

O chiuaua que não se enxerga


Eu não quero ficar aqui. Aqui só tem cachorro! Pouco me importa se fedem a latões de lixo ou se estão limpos, cheirosos, perfumados ou engravatados. Continuam cachorros. Eu detesto essa correria, o monte de latidos e a falta de educação nas refeições. Sempre disseram que o céu era cheio de anjinhos, só vejo cães. Idealizei criancinhas barrocas de cabelos encaracolados e bundinhas aparentes. Antevi a felicidade de olhos azuis com asinhas brancas. Sonhei em brincar de bola e correr atrás de auréolas. Mas qual o quê, aqui só tem cachorro! Grande, pequeno, peludo, careca, de raça ou desgraçado. Só cachorros. Com quem eu vou conversar? Quem é que vai me pegar no colo? Quem vai me levar para dormir? Quem vai me dar um biscoitinho na boca?
O que é que eu estou fazendo aqui?
Ó, São Pedro, me tire daqui. Vocês se enganaram. Meu nome não está na lista. Pode conferir. Está em ordem alfabética? Meu nome é Riobaldo. Riobaldo Grande Sertão, mas pode me chamar de Baldo. A Ana, minha dona, escolheu esse nome porque gostava de Guimarães Rosa. Nunca leu. Ela viu um livro com uma foto do moço e gostou. Ela escolheu bem. Pensou se fosse Diadorim? Diadô! Pensou? Se tivesse escolhido Diadorim eu não estaria aqui no céu. Estaria? Diadorim seria um bom nome para um dobermann preto, bravo e dentes afiados. Para mim, não, eu sou gente. Acho constrangedor andar pelado aqui no meio das nuvens. A Ana, quando saia comigo, colocava uma roupinha em mim. É verdade que eu sempre reclamei. Eram apertadas e muitas vezes atrapalhavam a corrida atrás de alguma chiuaua mais redondinha. Agora, nos últimos tempos, ela inventou de colocar uns sapatos em mim. No começo achei ruim, depois me acostumei e cá entre nós, São Pedro, nunca mais gripei.
Diga-me, devo descer as escadas ou tem elevador? Toda vida desci e subi pelo social. Fico no térreo, tá bom. Não quero ir até o subsolo.
Posso fazer uma pergunta? Cachorro vai à igreja? Não, né? Só nas piadas. Pois eu ia. Quase todos os domingos eu ia à missa com a Ana. Ela me enfiava dentro da bolsa e eu ficava ali, bem quieto, prestando atenção nas rezas. Teve uma vez, quando eu ainda era adolescente, que eu comunguei. Ela ficou muito brava comigo, mas deu mole com aquele biscoitinho e eu detonei rapidinho. Foi só uma vez. Ela falava para mim que eu não podia comungar porque eu era um pecador. Pecador? Logo eu? Eu sei muito bem o que a Ana faz trancada no quarto com o namorado. Sei porque vi duas vezes antes do namorado me expulsar.
Preciso falar com a Ana. Ela precisa me buscar. Ó, São Pedro, tem algum telefone por aqui? Não? Um celular, quem sabe? Hoje todos têm celular, você não tem um celular? O orelhão é de ficha ou cartão? Também não tem orelhão? Todo shopping center tem orelhão. Nem tudo está perdido. Você pode me informar se aqui tem alguma lan house? Não sabe o que é uma lan house? Como é que vocês se comunicam aqui em cima? Será que preciso achar um pai-de-santo para falar com a Ana? Preciso descer agora, daqui a pouco é hora da janta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Hahaha... meu fox chamava-se Guima, homenagem ao escritor.

Ju Blasina disse...

Excelente! Adorei.

 
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