Saiu do papel de diretor e colocou-se no papel de roteirista.
— O saguão do Galeão, limpinho, cheio de gente bonita, homens de negócios, famílias se despedindo, carrinhos cheios de malas coloridas, um garotão sarado com uma prancha de surfe. Todos, eu disse todos, repentinamente param como se fossem estátuas para ver o desempenho da salvadora heroína arrastando o abandonado órfão perdido no Rio de Janeiro. Aí, eu, Jessielly Stone, com os cabelos soltos, corro em direção ao portão de embarque, arrasto o Stallone pela mão, me viro para trás e digo, em close: — se apresse, vou achar o seu pai, esteja ele onde estiver. — Em seguida revirou os olhos e curvou-se toda, esticando um braço, aguardando os aplausos do único espectador.
Walter bateu palmas sem entusiasmo.
— O que foi querido? Parece que não gostou?
— O roteiro é um pouco diferente. A história começa numa estação da Central do Brasil onde uma senhora escreve cartas para analfabetos...
— A Central do Brasil não está com nada! Só tem gente feia, só tem pobre. É tudo sujo e cinza. Tem que ter cor, vida, alegria. Inicie numa lan house do shopping da Barra, cheio de luzes e juventude. Eu ajudo o Sly, — aposto que você não sabia do apelido do Stallone — e a mãe dele a digitar um e-mail em português, depois os dois saem da loja e olham vitrines. É hora de mostrar as lojas bonitas. Você pode fazer mershandising e ganhar um dinheirinho extra. É a hora de mostrar o Brasil para os estrangeiros. Os nossos tênis são iguaizinhos aos deles. Temos McDonald’s, ninguém passa fome aqui. Tem o elevador panorâmico... tem até uma árvore de Natal. Linda! Na saída você mostra um garoto andando de skate quando eles pegam um táxi. Achei horrível a mãe, no seu roteiro, morrer atropelada, coisa de pobre, é preferível que a mãe dele morra numa tentativa de seqüestro. Muito mais ação, isso prende o telespectador na cadeira, sabe.
Walter, incrédulo, põe a mão no queixo.
— No roteiro é um menino de nove anos, filho de uma retirante, que nunca conheceu o pai.
— Eco. Quem gosta de pobre é assistente social e político na hora das eleições. Esse pessoal estrangeiro quer ver gente bonita, forte. Eu nem gosto do Rambo, mas a galera toda vibra com os filmes dele. Se você colocar o Stallone naquela telona, nossa, vão fazer fila na bilheteria. O Stallone tem o perfil certo para o filme. Não precisa falar e já tem aquele olhar triste e carente de minha Mami morreu. Aliás, falando-se em fala, nesse momento do seqüestro você enche de gente atirando para todos os lados. O Rambo, depois de matar uns quinze, olha bem no fundo do olho daquele que matou a mãe e antes de atirar diz: hasta la vista baby!
— Mas isso foi dito pelo Schwarzenegger em “Exterminador do Futuro”!
— Se liga, Walter, o que você queria que o Rambo dissesse olhando no fundo do olho do bandido? “Eu acho que vi um gatinho?” Me poupe! Ninguém merece! Aí o Stallone me procura e pede que eu o ajude a voltar para os Estados Unidos para encontrar o pai dele que ele nunca conheceu.
— E você fala inglês?
— E você acha que, com um nome como o meu, Jessielly Stone, eu não saberia falar inglês?
— Mas o seu nome não é Jessielly Rocha?
— Era, do verbo já não é mais. Mudei quando li que você iria lançar o filme nos States.
— Ah bom, faz sentido. — o diretor toma um gole de água — Desculpe interromper, continue por favor.
— Aí, a gente viaja por todos as cidades americanas importantes, Chicago, Washington, Orlando, Los Angeles e quando a gente chegar na capital, o filme mostra todos os pontos turísticos de Nova Iorque: Wall Street, Broadway, Empire State, Torre Eiffel...
Walter coçou o queixo, sorriu debochado.
— Como foi que eu não pensei nisso antes.
— Honey, é lógico, tem que mostrar o lado romântico, que a vida é maravilhosa. Você só pode ganhar o Oscar se você mostrar que a vida é bela. Sabe aquela parte em que eles entram num restaurantezinho chulé de beira de estrada?
— Você se refere ao ponto em que ambos são convidados por um motorista de caminhão e que ela aproveita para furtar comida?
— Esse mesmo. Ninguém agüenta história de roubar biscoitinho recheado de goiabada. Americano nem sabe o que é goiabada. Tem que roubar coisa elegante, supérflua, num shopping fino. Aí, você filma dentro de alguma loja, bem chique, da C&A, o Stallone afanando duas gravatas italianas. Então é flagrado e começa o maior quebra dentro da loja. Ele vai preso e eu sou interrogada. No interrogatório eu sento de frente para os policiais, acendo o cigarro, dou uma baforada e cruzo as pernas, lógico que estou sem calcinha e soltam a gente.
— É impressionante como você pensa em tudo!
— Isso é básico. Um filme tem que ter muita ação, romantismo e umas cenas picantes. Eu já te falei, já fiz novelas na Globo. Taí no meu book, numa eu fui lojista no capítulo 53 e na outra o Antônio Bandeira assobia para mim quando atravesso a rua no capítulo 68.
— Estou curioso. Naturalmente, para fazer sentido, você modificou o final onde a mulher, já afeiçoada ao menino, entrega o garoto aos irmãos e retorna solitária enquanto o garoto joga bola com seus irmãos em frente a uma vila de casas populares construídas pelo governo.
— Só melhorei um pouquinho. O Stallone conquista meu coração, eu fico com ele, a gente vai para cama, mas é só sexo técnico, e aí você mostra as mansões da Califórnia numa câmara se abrindo ao por do sol.
— Muito obrigado, Jessielly. Não sei como o mundo seria sem pessoas como você. Por favor, devolva o roteiro antes de sair.
— Não tem de quê, eu não sei escrever direito. Você escreve as alterações e quando terminar você me chama de novo, tá bom? Ah, e o meu nome é com dois eles e ipsilone no final.
4 comentários:
Adorei o conto.
"E você fala inglês?
— E você acha que, com um nome como o meu, Jessielly Stone, eu não saberia falar inglês?
— Mas o seu nome não é Jessielly Rocha?
— Era, do verbo já não é mais. Mudei quando li que você iria lançar o filme nos States."
ahahahahahah
tá vendo? Jessiely! O meu tem apenas um "l" diferente do dela, e apesar de divegirmos muito, a sua Jessielly Stone é a esperteza em pessoa. Reescreveu Central do Brasil e olha, ficou bem melhor do jeito dela!
:P
Ops... divergirmos.
Divergir, um ele ou 2. Tanto faz. Ambas são maravilhosas na inteligência e na beleza.
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