19 novembro 2009

Fora de medida


Chego em casa depois de mais um estafante dia de trabalho e a confusão está instalada: madame chora na frente do fogão.

Sempre a tratei muito bem. Quase não lhe falta nada. Hoje, como nos últimos 35 anos, acordei-a com um delicado beijo na testa, preparei o café e misturei colherinha e meia de açúcar. Beijei-a na saída. Melhor dizendo, beijei-a na boca, ao sair. Senti saudades e retornei direto do trabalho para casa ao fim do dia.

Vejo que há uma série de xícaras espalhadas pela mesa da cozinha, um pacote de massa para bolo, um termômetro, a calculadora, alguns ovos de codorna, várias colheres de tamanhos diferentes, a jarra de leite, o pote de margarina derretida e o velho despertador barulhento.

Tomo-a em meus braços e pergunto o que foi que aconteceu.

Soluçando, responde que desejava preparar uma festinha só para nós dois, mas a receita do pacote estava por demais complicada:

BOLO DE CHOCOLATE

Ingredientes:

1

pacote de massa de bolo de chocolate

¾

de xícara de leite

3

ovos

2

colheres de margarina à temperatura ambiente

Misture tudo até formar massa homogênea; Unte e enfarinhe uma forma redonda com furo no meio; preaqueça o forno em temperatura média por quinze minutos; Não abra o forno antes de 30 minutos; após esfriar por 15 minutos, desenforme e sirva.

– Veja só quantas xícaras diferentes nós temos aqui: a do seu café, aquela outra de plástico, a do jogo de porcelana que ganhamos no nosso casamento... e todas têm tamanhos diferentes, – Ovos podem ser de codorna, de pata, de galinha caipira, brancos, de páscoa e... Enxugando as lágrimas. Qual dessas colheres? Uso a do diário ou devo usar a do faqueiro de prata?

Segurei-a pela mão, arrastando-a até a sala. Acomodei-a no sofá. E fui buscar dois cálices. Enquanto servia um porto, protestei:

– A culpa é da impunidade! Neste país as pessoas fazem o que querem e ninguém é responsabilizado por nada. Passam nos sinais vermelhos, assaltam, não fecham as pastas de dentes... Todos esses calhordas deveriam ser exemplarmente punidos! Para que serve o Instituto Nacional de Pesos e Medidas? Vou entrar com medida cautelar, seja o que isso queira dizer!

Irado, continuo meu protesto:

Cientistas do mundo inteiro se reúnem, estudam e definem que quilograma é a massa do protótipo internacional constituído por um cilindro de platina e 10% de irídio depositado no Bureau Internacional de Pesos e Medidas, e ainda que o metro é igual ao comprimento do trajeto percorrido pela luz no vácuo durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 de segundo e... que diabos!

Virei o cálice de vinho para lubrificar a garganta e continuei:

– Estes fazedores de receitas culinárias estão nos cozinhando! Como vamos definir o que é uma pitada? Quantas gramas? Uma colher rasa de farinha? Então, além das colheres de chá, sopa e sobremesa, ainda podem ser cheias, bem cheias e rasas? Aí, ainda tem a história de meia xícara, três quartos de xícara ao invés de dizerem que se trata de tantos mililitros. Tenham a santa paciência! Forno à temperatura média. Estes escritores de receita deveriam cumprir pena com trabalhos forçados.

Sirvo-me de outra tacinha de porto, viro de um gole e continuo no meu discurso:

– A falta de uniformização das medidas é um retrocesso para a nossa nação. Sucrilhos, macarrão instantâneo, molho de tomate, geléia, coco ralado, sapatos... Nada está padronizado. Estamos a léguas de distância dos povos desenvolvidos!

Resolvi respirar e dar um dedo de prosa:

– Querida, você sempre soube preparar comidas maravilhosas. Jamais precisou de enciclopédias para preparar um simples bolo de chocolate. O que foi que houve? De verdade?

– Bom, eu só tinha ovos de codorna. Então quis saber quantos ovos de codorna seriam equivalentes a um de galinha. E, principalmente queria saber onde você havia escondido a garrafa de vinho do porto.

6 comentários:

Klotz disse...

Acabo de visitar o blog. Amei a história da coitadinha tentando fazer bolo com ovos de codorna. E que marido atencioso ela tem! Um fofo. Moça de sorte.

Recebi este comentário, por e-mail, de uma amiga muuuuuuito querida que não sabia que o orgasmo do blogueiro é receber comentários.

ROQUE RASCUNHO disse...

Sempre imagino o Jack Nicholson como protagonista dos teus diálogos! hahahaha

Klotz disse...

Jack Nicholson éo meu pseudônimo quando atuo em Hollywood.

manon disse...

Pois é.
Falta de comentário acho que é preguiça. A gente lê, chora, concorda, discorda, morre de inveja do texto e passa a ler o seguinte...
Mas comentário pra quê, né?
De repente concordei com você. Sem comentário a gente nem sabe que está sendo lido.
Por falar nisso, como se pode amar assim uma mulher tão burrinha?

Anônimo disse...

Pois é, orgasmei por receber outro comentário. hahaha

Klotz disse...

Muito doido... agora, sou anônimo e Nicholson ao mesmo tempo simultaneamente concomitantemente.

 
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