Era exatamente isso, deitando um cinco de paus sobre um seis de copas, que eu estava fazendo, no meio da tarde, quando atendo ao telefone.
— Repartição, boa tarde.
— É você von Silva?
— À sua disposição...
— Você se lembra de mim?
Ser interrompido numa empolgante partida de paciência é ruim. Mais grave é quando uma pergunta constrangedora interrompe nosso raciocínio exigindo concentração e reflexos rápidos alternando instantaneamente para jogo de adivinhação.
— Você me pegou de surpresa! Você cortou o cabelo não foi? Mas lembro muito bem da sua voz. — Respondi oferecendo uma oportunidade à interlocutora de revelar seu nome.
Ao invés de desvendar o mistério, ela opta por oferecer uma pista.
— Não está me reconhecendo, von Silva? Nós nos falamos há menos de um mês.
Essa mulher quer complicar a minha vida! Preciso fazer com que ela fale um pouco mais. — É que o meu aparelho está chiando muito, e não consigo ver você direito! — Brinco procurando ganhar tempo.
— Puxa, von Silva, imaginei que eu fosse uma pessoa mais importante para você.
Nesse momento me senti acuado. A fala foi muito curta, não percebi qualquer sotaque. Chamou-me de você, nem doutor nem senhor, tampouco pelo prenome. A voz doce e sensual fala com intimidade. Como posso ser grosseiro com alguém que fala com voz de lábios vermelhos carnudos? E se for uma amiga ou sobrinha da madame? Deus me livre! Que fria!
— Quem sabe você diz só o primeiro nome?
— Você foi tão encantador... me chamou de mocinha.
Era só o que me faltava, encantei alguém por chamá-la mocinha. Chamo todas as mulheres de mocinha ou menina, é só um jeito de falar, moças ou velhas cambaleantes, todas gostam e não preciso guardar nomes. Desconfio que a mocinha seja um trubufu solitário sem desconfiômetro. — Agora que já sei com quem estou falando ficou mais fácil, mocinha. Em que posso ajudá-la?
— Você está muito ocupado?
Não, não pode ser! Isso é uma brincadeira de mau gosto! Ninguém merece. Nem para a minha consciência eu admitiria estar na quarta partida. Tenho que tomar cuidado com as minhas palavras e preciso descobrir quem é essa poderosa jararaca cabeluda. Será que ela precisa de alguma consultoria? Será que quer apenas que eu a chame de mocinha novamente? Será que precisa que eu descubra o destino de algum processo na repartição? Será que quer testar meus nervos? E se for alguém da auditoria? — Estou analisando essa pilha de processos que está na minha frente. Tenho muito trabalho. — E se a jararaca for apenas uma cobrinha risonha? — Mas, posso fazer uma pausa.
— Será que pode me ajudar?
Isso é um novo tipo de tortura! Um interrogatório onde o algoz coloca a vítima em um pau de arara, venda os olhos e queima o prisioneiro com pontas de cigarro primeiro nos braços e pernas indo até a genitália. Não posso me entregar! Não vou delatar meus companheiros de repartição. Somos inocentes! Estou nas mãos da inquiridora. Serei simpático antes que me corte a língua: — Posso ajudar sim, contanto que não seja nada de ilegal.
— Hahahahaha (foi a risada mais satânica que já ouvi). Bem que o Zé diz que você sempre está bem humorado.
Ufa! Afinal uma abertura. — De qual Zé você está falando?
— Do meu marido.
Que maravilha, passei da posição de interrogado para interrogador. Na primeira oportunidade me vingarei dessa víbora peçonhenta. Farei um cinto de pele de cascavel e o meu telefone em vez de tocar vai chacoalhar guizos. — Aposto que só você o chama de Zé. — Arrisquei.
— É verdade. Aí na repartição todos só o chamam pelo sobrenome ou simplesmente de chefinho.
Filhada mãe! Então é a senhora, dona Altamira? Espero que ela não tenha percebido a minha dúvida. Baixei a guarda. E fui quase subserviente. — Afinal, no que posso ajudá-la?
— Eu quero saber onde você comprou para a madame aquele vestido com flores azuis e também que você vai fazer no sábado?
De novo não! Socorro. Vai começar outra seção de tortura!
— Desculpe mocinha, a secretária me avisou que devo descer imediatamente para falar com o diretor. — E, desliguei.
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