Trabalhamos na mesma repartição há pelo menos três anos. Cumprimentamos-nos no elevador. Às vezes trocamos frases maiores que “bom-dia” ou “até amanhã”. Algumas vezes, conversamos sobre o tempo ao buscar um cafezinho na copa. O dela sem açúcar. Engorda. O meu com muita fé. Crença de que não engorda. Aprendi o nome dela em uma das várias reuniões mensais.
Eu gostaria imensamente de descrevê-la em detalhes. É impossível. Poste não tem detalhes. Às vezes, alguns cartazes colados: Faço tudo – eletricista, bombeiro e pedreiro. Resultado do jogo do bicho. Ou, conheça seu futuro nos búzios da Mãe Laura. Como os cartazes nos postes, os acessórios, na roupa feminina, são fundamentais. Não tenho a menor idéia do que se passa no alto da cabeça da Mônica. Se cabos de telefone ou muita energia. Tampouco reparei se no alto há transformador ou uma lâmpada luminosa. Não vi se os cabos estão organizados, ou encaracolados.
Todas as mulheres no meu trabalho são postes. Faço questão de enxergá-las assim. A minha solteirice está convencida que se empregar com amigas do trabalho resulta em demissão por justa causa. Da mesma forma que se envolver com amigas da ex-mulher significa entrar no inferno pela porta da frente. A minha longa experiência de vida sugere que as colegas de trabalho podem ser de concreto, madeira ou metal. Jamais de carne e osso. Filé mignon, nem no melhor dos devaneios.
Tenho um amigo boêmio que tem a mesma teoria que eu. Outro dia fomos a um boteco e tomamos uísque para mais de meio metro. Na saída, trôpego, o amigo esqueceu todos os preceitos para fazer juras de amor a um poste público.
Para contar a minha história achei muito importante descrever detalhadamente quem era a personagem e qual o interesse que ela representava para mim até que, sempre existe um até que.
No final do ano, como em todas as repartições houve uma festa de confraternização. Sentamos um do lado do outro. Ela separada e eu divorciado. Tudo a favor para resultar em diálogos sedutores. Descobrimos que tínhamos as mesmas afinidades que pode ter um elefante com uma agulha. Ela contou-me que tiraria o recesso viajando com todos os parentes. Eu disse que ficaria na cidade, seria o responsável pela seção. Os olhos dela brilharam. — Jura que vai ficar em Brasília? Enchi o peito e respondi que sou muito responsável. Falei, e no exato momento em que terminei a frase, percebi que eu havia falado demais. — Que bom, encontrei alguém para regar as minhas plantinhas. Antes de me refazer do susto, ela se levantou dizendo que ligaria para mim, combinando os detalhes da minha responsabilidade.
Dois dias depois, recebo um telefonema em que ela me informou que saiu correndo de casa, já estava no aeroporto e que a chave do apê estava sob o capacho. Eu deveria regar as plantinhas ainda hoje.
Foi muito constrangedor virar a chave. Para quem eu pediria licença antes de entrar? Penetrei no apartamento. Em vez de violar, eu estava sendo violado.
Constrangido, tive olhos apenas para procurar plantas e vasos. Encontrei um papel sobre a mesa da sala com as instruções detalhadas para cada espécime a cada dois dias. Finalizava com agradecimentos e um endereço eletrônico.
Fui até a cozinha peguei uma panela e enchi de água. Segui todas as instruções detalhadamente, inclusive bombando o spray sobre elas. Confesso que tomei liberdade não concedida: verifiquei se a torneirinha do gás estava fechada. Maldito juízo.
Por causa de uma planta não relacionada enviei um e-mail perguntando se a planta entre a mesa da sala de jantar e a cozinha — aquela que parece um capim comprido verde escuro sobre umas pedras brancas — deveria e ser regada.
Ela respondeu-me que a planta que mencionada é fake... kkkkkk...é de plástico. Amore, mude as lentes dos óculos.
Quem gosta de verde é quadrúpede ruminante. Prefiro e convivo com dois quadrúpedes latidores.
Só voltei a enviar outro e-mail após a segunda rega.
“Estive em sua casa. Ao contrário da outra vez, hoje suas plantinhas nem latiram muito quando cheguei. A violeta chegou a abanar a folhinha. E a orquídea pulou no meu colo. Muito bacana. Já se afeiçoaram a mim. Aquela do pescoço comprido, perto da violeta, está muito saudosa. Chorou perguntando por você. Dei um biscoito e ela se acalmou. Before que eu esqueça, aquela planta que você chamou de fake ficou ofendidíssima. Disse que fake é a sua mãe. E até me mostrou a carteira de identidade e o CPF.”
Na minha quarta missão regadeira, eu continuava tão constrangido de entrar no apartamento alheio como se fosse a primeira vez.
Aliás, na minha primeira ida ao apartamento fiquei bem impressionado com uma planta que parecia árvore de natal, de tantas frutinhas vermelhas. Agora estava triste, cabisbaixa e com a pele amarelada. Deve ter sido a inveja de alguma das outras coleguinhas. Lançaram um olhar de seca pimenteira.
Acabei por enviar outro e-mail informando que a de brinquinhos vermelhos estava moribunda enquanto outra verde clara insistia em escalar as minhas pernas.
Ela respondeu que a pimenteira já estava batendo as botas quando saiu. Logo a substituiria por outra. Disse estranhar o comportamento da planta assanhada, uma vez que não havia nenhuma trepadeira no apartamento. Informou que já estava fechando as malas para retornar.
O dia seguinte amanheceu ventoso ameaçando tempestades. Voltei para a missão derradeira com o objetivo de verificar se havia alguma a janela aberta.
Não passou pela minha cabeça entra no dormitório. Autorizei-me a entrar no escritório. Mãos às costas, avancei sorrateiro como se estivesse abrindo correspondência alheia. Sem olhar para os lados fui direto à janela. Estava fechada. Quando me virei, meu coração acelerou subitamente ao reparar a enorme estante de livros. Um tesouro. A minha curiosidade se manifestou e desandei a ler lombadas e avançando na intimidade e conhecendo o perfil psicológico de um poste através de suas preferências literárias. Jorge Amado, Guimarães Rosa, Maquiavel, Lacan, Sarte, João Ubaldo, Carlos Eduardo Novaes, Carlos Eduardo Novaes, Carlos Eduardo Novaes, êpa! Uma coleção inteira do Novaes! Meu cronista predileto! Nunca vi algo parecido.
Na adolescência comprava o jornal só por causa das crônicas. Senti ímpetos de tocá-los, de pegá-los, de levá-los. Eu queria os livros para mim. Eu precisava possuí-los. Mônica sempre fora um poste. Agora a percebo como um semáforo que acendeu a luz verde.
Quer casar comigo?
5 comentários:
Querido, estou honradíssima pelo texto. Agora quero vê-lo em um novo livro.
By the way, agora há mil outras plantinhas que em breve necessitarão de cuidados.
kisses
Mônica
Parece que Monica gostou dos cuidados e do convite... kkk
Adorei a cronica, leve, dinâmica, prendeu-me ao lê-la.
Roberto estivemos juntos ontem na última mesa da Rodada de Negócios da Incubadora (última para nós, mas era a número 1). Sou Fernanda Matos, me apresentei como escritora de livros infantil, mas também de outros estilos. venho aqui para manter contato, quero ingressar com você no tal novo futuro grupo, aberto, de escritores, como você comentou ontem. Fiquei animada por correr atras da publicação dos meus livros, e para estar entre o meio literário, que foi a primeira vez que estive ontem. Obrigada por sua breve atenção e dicas. Venha visitar-me no blog também. estarei por aqui, você permitindo (ou você não sabendo, rsrs). Abraços,
Fernanda
Eita, a Mônica existe mesmo? rsrs
Olha, eu tinha a mesma opinião que o personagem: jamais me envolveria com colegas de trabalho, até que a "minha" Mônica apareceu, sem pedir licença: deu no que deu, rsrs.
Amigo, o texto está ótimo, acrescente apenas o "r" do Sartre.
Obrigado, Glauber. Vou corrigir no original. Aqui vou deixar assim mesmo para o seu comentáio não ficar no vazio.
"Não passou pela minha cabeça entra no dormitório. " - tá estranho!
[]s
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