01 março 2016

Paris - ano 1000



“Qui habet aures audiendi audiat - Quem tem ouvido para ouvir, ouça.

Patevotrix traduziu estas palavras celtas ao latim e agora as gravava a fogo no couro curtido do cordeiro nada cristão.

Isto foi em Paris a dois meses da virada do primeiro milênio.


Aos treze anos de idade Patevotrix queimou o lado esquerdo da face com óleo fervente. Foi tratado por três anos por um sacerdote com chás e emulsões. Agora, aos noventa e cinco anos, com postura ereta e apenas um olho na carne disforme do rosto, Patevotrix continua nos estudos que o mestre lhe ensinara. Herdou do druida centenas de vidros com os mais variados líquidos e pós. Essências, temperos, ácidos, cristais, cascas, folhas, pelos e tudo que a mente humana puder acondicionar em vidros pequenos, médios ou grandes. Herdou também duas paredes de estantes de escritos com documentos romanos, gregos, celtas, bretões e até papiros egípcios. À luz de vela, lia de tudo: filosofia, medicina, astrologia, botânica, fauna, antropologia...

Entre os manuscritos encontrou a fórmula para a poção da longevidade. Esta ele não traduziu. Desconfiava que a humanidade ainda não estivesse pronta.

“Na segunda noite da lua nova coloque sete cascos de tartarugas brancas bem lavadas no interior de uma ânfora de azeite junto com uma ferradura usada, acrescente pó de raiz de carvalho e um par de olhos de uma coruja da cor do ébano. Deixe fechado por três dias enrolada num lenço de seda vermelha. No quarto dia acrescente uma moeda de ouro. Das grandes. Embrulhe de novo no lenço e guarde sob a terra até a quarta lua cheia. Coe com o lenço vermelho e acrescente uma pitada de almíscar.”

“Tome duas colheres ao dia enquanto tiver lucidez. A primeira quando o sol desperta e a segunda quando a noite adormece o sol.”

O recluso velho de barbas brancas passava o dia em um enorme espaço iluminado por dezenas de tochas. Ele preferia aquele subterrâneo à luz solar. Assim ele não precisava ver os homens e cachorros sarnentos disputando comida nas feiras fétidas às margens do esgoto do rio Sena.

Para ele, aqueles eram os primeiros sinais do fim. Das trevas. Quando o sol e a lua se fundirem num cometa incandescente fagulhando terror.

Patevotrix quase não dormia. Era inquieto e meditabundo. Parecia captar a linguagem dos deuses sussurrada no crepitar da fogueira.

Paris, centro do mundo, fundada por celtas, invadida por romanos que a nominaram Lutécia e depois foi retomada pelos francos e passou a ser Paris. O destino de Paris é ter as ruas cheias de estrangeiros falando línguas estranhas.

Os sinais estão claros para Patevotrix. O papa reinou apenas três anos e faleceu. Escolheram um francês, Gerbert d’Aurillac, que, outrora, durante dois invernos freqüentou as estantes e misturou líquidos junto com Patevotrix. Agora é o Papa Silvestre II. É ele que se entende com o frágil rei dos francos, Roberto II, o Pio. Roberto II é filho de Hugo Capeto, da dinastia dos capetinos.

Patevotrix resmungava baixinho: ninguém me engana – ejudus farinae – são da mesma farinha. Qual deles será o anticristo?

Todos os dias, as palavras encontradas em um manuscrito datado de Lutécia, Anno Domini CCCXIV, martelam seus pensamentos:

“E assim, com o novo milênio, tudo será anulado. Um dia, uma noite... Paris será um apenas o resto de uma enorme fogueira.

O vento dará o sinal. Serão dois dias de vento assobiando a música de satanás. No terceiro dia as árvores serão arrancadas aos céus. O céu as mastigará e vomitará neve de carvão e alcatrão. O dia será noite. As trevas darão lugar aos trovões e relâmpagos que, de tão fortes, iluminarão o interior das casas.  Para amainar o frio, a Terra será rasgada e do ventre brotarão labaredas imensas. No sétimo dia água salgada com cheiro de enxofre tomará as fendas abertas e apagará o fogo. Quando tudo estiver acabado, no silêncio absoluto, a peste sairá em busca das almas sobreviventes. Nem mesmo cadáveres putrefatos escaparão das doenças purulentas.”

Faltava apenas um mês para o novo milênio. Ao entardecer, Patevotrix, pela primeira vez, não tomou uma colher de azeite temperada com almíscar.



Selecionado para edição em 2009 no Prêmio UFF de Literatura pela Universidade Federal Fluminense - Niteroi

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