27 maio 2016
Dois Irmãos - Milton Hatoum
Milton
Hatoum
Companhia
de Bolso
200
páginas
R$25,00
O
primeiro capítulo do livro é curtinho, porém muito impactante. O autor recortou
um trecho de altíssimo grau de emoção da história e abriu o livro com ele.
Eis
os dois últimos parágrafos deste capítulo:
“Eu
não a vi morrer, eu não quis vê-la morrer. Mas alguns dias antes de sua morte,
ela deitada na cama de uma clínica, soube que ergueu a cabeça e perguntou em
árabe para que só a filha e a amiga quase centenária entendessem (e para que
ela mesma não se traísse): “Meus filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a
pergunta com a força que lhe restava, com a coragem que mãe aflita encontra na
hora da morte”.
“Ninguém
respondeu. Então o rosto quase sem rugas de Zana desvaneceu; ela ainda virou a
cabeça para o lado, à procura da única janelinha da parede cinzenta, onde se
apagava num pedaço do céu crepuscular”.
O capítulo lança uma questão “Meus filhos já fizeram as
pazes?“ que mostra um enorme conflito e com a pergunta atiça a curiosidade do
leitor. Antes de responder sim ou não, somos provocados à bisbilhotice,
queremos saber que motivo é forte o suficiente para colocar em lados opostos dois
irmãos? Ansiamos por saber por que estão brigados.
A história se passa em Manaus de
1910 a 1968. No período, o autor mostra a evolução da cidade enquanto inunda as
páginas com as águas do rio Negro e enreda a história de imigrantes libaneses com
ramos das seringueiras e sons dos pios de jaçanãs e jacu-ciganas.
Aos
poucos somos apresentados aos irmãos gêmeos Omar e Yaqub
Em
relação a Yaqub: “O que lhe faltava no manejo do idioma sobrava-lhe no poder de
abstrair, calcular, operar com números”.
“E
para isso”, dizia o pai orgulhoso, “não é preciso língua, só cabeça. Yaqub tem
de sobra o que falta no outro”.
O
outro, o Caçula – referindo-se a Omar – exagerava as audácias juvenis: gazeava
lições de latim, subornava porteiros sisudos do colégio dos padres e saía para
a noite, fardado, transgressor dos pés ao gogó, rondando os salões da Maloca
dos Barés, do Acapulco, do Cheik Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do
último sereno, voltava para casa.
“Colhe
a orquídea mais rara, mas também arranca a aninga da lama”.
Apesar
de narrado na primeira pessoa, durante muito tempo ficamos sem saber quem é o
narrador. “E a mim, sem me olhar, sem se importar com a minha presença Na
verdade, para Zana, a mãe dos gêmeos, eu só existia como rastro dos filhos
dela”.
No
transcorrer da história descobrimos que o narrador é filho de um dos gêmeos com
a empregada índia que mora nos fundos da casa. O narrador, desprezado pela
família, quer saber quem é o pai.
Quem
são os pais dos gêmeos?
Halim,
marido de Zana e pai dos gêmeos era comerciante. “Vendia coisas de qualquer um.
Vendia sem prosperar muito, mas atento à ameaça da decadência, que um dia ele
me garantiu ser um abismo. Não caiu nesse abismo, nem exigiu de si grandes feitos.
O abismo mais temível estava em casa, e este Halim não pode evitar”.
“A
intimidade com os filhos, isso o Halim nunca teve. Uma parte de sua história, a
valentia de uma vida, nada disso ele contou aos gêmeos”.
“Mas
acreditava, bêbado de idealismo, no amor excessivo, extático, com suas
metáforas lunares. Um romântico tardio, um tanto deslocado ou anacrônico,
alheio às aparências poderosas que o ouro e o roubo propiciam. Talvez pudesse
ter sido poeta, um flâneur da província; não passou de um modesto negociante
possuído de fervor passional”.
E
quem era a esposa Zana?
“Era
possuída por uma teimosia silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando;
depois, armada por uma convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo,
deixando o outro estatelado.”
E
a pergunta lançada o primeiro capítulo?
“O
duelo entre os irmãos era uma centelha que prometia explodir”.
“Duelo?
Melhor chamar de rivalidade, alguma coisa que não deu certo ente os gêmeos ou
entre nós e eles, revelou-me Halim, mirando a seringueira centenária no
quintal.”
Antes
que eu, nas transcrições, revele mais do que deveria, adianto que se trata de
uma história triste, uma história sem advertências ou opiniões de moral. É história
de seduções consanguíneas. É história de incestos, paixões e ódios.
Em
vez de responder a pergunta, elaboro outra: porque levei tanto tempo para
conhecer a escrita de Milton Hatoum?
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