05 setembro 2016
Amor em demasia
Levanto-me depois do despertador tocar pela terceira vez. Abro a janela e
a luz não chega até minha casa. Meu quarto está escuro, a casa está escura.
Minha vida é escura.
Se eu não precisasse fazer o café, eu ficaria deitada para sempre. As
crianças precisam de força para encarar mais um dia e João fica muito bravo se
eu me atrasar.
Todos saem para trabalhar. Cabe-me lavar a louça de hoje e a de ontem à
noite. Lavar, enxugar e guardar. Deixar tudo limpo e impecável para ser usado
de novo. Todos os dias são iguais, sempre são a mesma coisa. Deixar tudo limpo
e impecável para ser usado de novo. A pior sujeira é aquela que os olhos não
veem. Os vestígios estão na cozinha, na sala e nos lençóis.
As xícaras não falam. O sofá não fala. Os travesseiros não falam. Mas eu
escuto todos os gritos da casa.
João é forte, bonito e maravilhoso. Quase sempre traz um doce ou uma
bijuteria para mim. Ele é insaciável. Quer me presentear todos os dias.
João não estudou. Trabalha duro e jamais faltou feijão na panela ou
dinheiro para o aluguel. Dependemos dele. A única coisa que pede é amor. Diariamente.
Estou muito fraca. Já não consigo satisfazê-lo todos os dias. Ele se
diverte com as crianças.
Já se passaram 20 anos de quando Joãozinho chorou pela primeira vez.
Quando Nicinha completou 5 anos, também chorou. João nos amava.
Hoje, todos estão na rua trabalhando. Jamais ganhei um centavo, nem sei o
que é ter patrão. Fico em casa enxugando louça e lágrimas.
Uma vez contei para uma vizinha. Mudamos de casa depois de uma semana.
Carreguei geladeira e fogão mesmo toda enfaixada da surra que eu levei.
Já pensei em denunciar. Já pensei em envenenar João. E
daí? Quem vai pagar o aluguel? Quem vai trazer pão e leite? Quem vai me vestir?
Quem vai me dar pulseiras?
Já pensei em apagar a minha luz. Quem vai proteger Nicinha? Quem vai
proteger Joãozinho?
Nossa casa é pequena. Nicinha e Joãozinho dividem o quarto e o pai.
Nicinha coleciona brincos e Joãozinho está gordo de tantos doces.
Silenciosamente, nos revezamos para repartir e amenizar o sofrimento. Somos
prisioneiros e cúmplices do amor.
O despertador toca mais uma vez. A luz da janela não
chega até minha casa. Tudo está escuro. Nossa vida é escura
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