Pesquisa para o texto Antologia
23 fevereiro 2008
Antologia
– Ó, von Silva, o que é antologia?
Mundo, mundo, vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo não faria essa pergunta. Se eu fosse o Raimundo que amava Maria que amava Joaquim, eu também não saberia a resposta. O meu nome é von Silva, não tenho outro de pia.
Se eu estivesse na repartição seria normal este tipo de pergunta. Estou longe de qualquer dicionário porque hoje é sábado. Essa Rosa radioativa estúpida e inválida não deveria ter feito esse questionamento.
Perdido, sem lenço e sem documento, nada no bolso ou nas mãos, procurando uma resposta. Desejei me esconder, desejei ir para Minas, Minas não há mais, quis morrer no mar, mas o mar secou. Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei. Volto para a minha terra que tem palmeiras onde canta o sabiá, que tem cadeiras onde posso sentá e procurar um desmancha-dúvidas. Meu reino por um dicionário!
Deus, ó Deus, onde estás que não respondes? Preciso urgente de um pai-dos-burros. Queixo-me da Rosa, mas a Rosa não fala, simplesmente perguntou o significado de antologia.
Para todas as coisas: dicionário, para que fiquem prontas: paciência. Rosa não tem paciência. Quer resposta. Tem uma pedra no meio do caminho, cadê o maldito tira-teimas?
Toda pedra no caminho você pode retirar. De repente, não mais que de repente surge o salvador e consulto o verbete:
“Coleção de trechos em prosa e/ou em verso.”
– Obrigado, Aurélio!Aurélio, garoto esperto, informa também que intertextualidade é a superposição de um texto a outro.
– Mais uma vez, obrigado, Aurélio!
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“Mundo, mundo, vasto mundo. Se eu me chamasse Raimundo seria uma rima , não seria uma solução.” – O Gauche – Carlos Drummond de Andrade
“João que amava Tereza, que amava Raimundo, que amava Maria, que amava Joaquim, que amava Lili.” – Quadrilha – Carlos Drummond de Andrade
“O meu nome é Severino. Não tenho outro de pia.” – Morte e Vida Severina – João Cabral de Melo Neto
“Porque hoje é sábado.” – O Dia da Criação – Vinícius de Moraes
“A rosa hereditária. A rosa radioativa estúpida e inválida.” – A Rosa de Hiroshima – Vinícius de Moraes
“Sem lenço e sem documento, nada no bolso ou nas mãos.” – Alegria, alegria – Caetano Veloso
“Quero ir para Minas, Minas não há mais, quer morrer no mar, mas o mar secou.” – E agora, José? – Carlos Drummond de Andrade
“Vou-me embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei.” – Vou-me Embora pra Pasárgada – Manuel Bandeira
“Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá, as aves que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá.” – Canção do Exílio – Gonçalves Dias
“Meu reino por um cavalo!” – exclamou Ricardo III na Guerra das Duas Rosas, conforme William Shakespeare
“Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?” – Vozes d'África – Castro Alves
“Queixo-me às rosas mas que bobagem, as rosas não falam, simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti, ai.” – As Rosas – Cartola
"Para todas as coisas: dicionário, para que fiquem prontas: paciência." – Diariamente – Nando Reis
“No meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho.” – No meio do caminho – Carlos Drummond de Andrade
“Toda pedra no caminho você pode retirar.” – É preciso saber viver – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
“De repente, não mais que de repente, fez-se de triste o que se fez amante.” – Soneto da Separação – Vinícius de Moraes
“Se você rouba de um autor, é plágio, se de vários, é pesquisa.” – Wilson Mizner
16 fevereiro 2008
Achados e perdidos
Quando abri a cortina para olhar o tempo, vi a minha vizinha andando e gesticulando muito. Tomei o café, li o jornal e coloquei minha bermuda caminhante. Iniciei meus exercícios diários descendo os cinco andares pela escada.
A vizinha, agora com as duas mãos na cabeça, continuava a caminhar agitada no calçamento entre verdes gramados.
Segui meu caminho solitário. Ainda olhei para trás por duas vezes. A mulher andava para lá e para cá no mesmo trecho, nos mesmos cem metros. Parecia desolada, balançando a cabeça de forma negativa.
A vizinha é uma senhora que já passou dos setenta anos, magrinha, magrinha. Cabelos brancos amarrados em coque. Blusinha abotoada até o pescoço e nenhuma maquiagem para disfarçar as olheiras profundas. Viúva. Mora sozinha, sem gato ou cachorro. A filha mora em algum país da América Central. Confidenciou-me o síndico que rareiam os seus alunos de piano e que ela está em débito com o condomínio por cinco meses. Contou também que a solitária professora deve estar com algum outro trabalho, uma vez que passa as tardes fora de casa ao contrário dos últimos dez anos. Pela falta de luz nos olhos parecia ser daquelas pessoas que foram esquecidas pela Dona Morte.
Enquanto eu seguia o meu caminho a Dona Ernestina, esse era o nome dela, balançava seu coque branco e os meus pensamentos.
– O que será que Dona Ernestina perdeu? Algum brinco ou broche familiar? Talvez alguma pulseira que a ligasse ao amado marido?
De longe, vejo a viúva de cabeça baixa procurando na calçada e na grama. A dor também aperta o meu peito. Uma vez perdi uma abotoadura com monograma que herdei do meu avô. Nenhuma outra jóia substitui o ouro e o brilho das pessoas amadas.
A angústia tomou-me o corpo e fui em direção ao desespero personificado naquela mulher.
Ela precisa de ajuda. Quem sabe se eu chamar o pessoal do prédio para auxiliar na busca? Com a ajuda do zelador e mais três faxineiros rapidamente encontraremos a jóia sumida no passeio público.
Dona Ernestina sentou-se no banco.
Aproximei-me e sentei-me ao seu lado. O rosto da Dona Ernestina estava molhado de lágrimas. Peguei suas mãos, tomei fôlego e perguntei:
– O que a senhora perdeu?
– O piano.
Eu me senti um idiota. Perde-se uma carteira, um guarda-chuva, um cachorro ou até um amante. Mas perder um piano?
– Acho que não entendi. A senhora perdeu um piano?
– Perdi o meu piano de trinta anos. Era um Steinway.
Olhei para a grama à esquerda, olhei para a grama à direita como se estivesse procurando o objeto perdido.
– Onde a senhora perdeu o seu piano?
– No bingo. No bingo, meu filho.
Desisti de pedir o auxílio aos funcionários do prédio.A Dona Ernestina perdeu as notas, ficou sem dó.
A vizinha, agora com as duas mãos na cabeça, continuava a caminhar agitada no calçamento entre verdes gramados.
Segui meu caminho solitário. Ainda olhei para trás por duas vezes. A mulher andava para lá e para cá no mesmo trecho, nos mesmos cem metros. Parecia desolada, balançando a cabeça de forma negativa.
A vizinha é uma senhora que já passou dos setenta anos, magrinha, magrinha. Cabelos brancos amarrados em coque. Blusinha abotoada até o pescoço e nenhuma maquiagem para disfarçar as olheiras profundas. Viúva. Mora sozinha, sem gato ou cachorro. A filha mora em algum país da América Central. Confidenciou-me o síndico que rareiam os seus alunos de piano e que ela está em débito com o condomínio por cinco meses. Contou também que a solitária professora deve estar com algum outro trabalho, uma vez que passa as tardes fora de casa ao contrário dos últimos dez anos. Pela falta de luz nos olhos parecia ser daquelas pessoas que foram esquecidas pela Dona Morte.
Enquanto eu seguia o meu caminho a Dona Ernestina, esse era o nome dela, balançava seu coque branco e os meus pensamentos.
– O que será que Dona Ernestina perdeu? Algum brinco ou broche familiar? Talvez alguma pulseira que a ligasse ao amado marido?
De longe, vejo a viúva de cabeça baixa procurando na calçada e na grama. A dor também aperta o meu peito. Uma vez perdi uma abotoadura com monograma que herdei do meu avô. Nenhuma outra jóia substitui o ouro e o brilho das pessoas amadas.
A angústia tomou-me o corpo e fui em direção ao desespero personificado naquela mulher.
Ela precisa de ajuda. Quem sabe se eu chamar o pessoal do prédio para auxiliar na busca? Com a ajuda do zelador e mais três faxineiros rapidamente encontraremos a jóia sumida no passeio público.
Dona Ernestina sentou-se no banco.
Aproximei-me e sentei-me ao seu lado. O rosto da Dona Ernestina estava molhado de lágrimas. Peguei suas mãos, tomei fôlego e perguntei:
– O que a senhora perdeu?
– O piano.
Eu me senti um idiota. Perde-se uma carteira, um guarda-chuva, um cachorro ou até um amante. Mas perder um piano?
– Acho que não entendi. A senhora perdeu um piano?
– Perdi o meu piano de trinta anos. Era um Steinway.
Olhei para a grama à esquerda, olhei para a grama à direita como se estivesse procurando o objeto perdido.
– Onde a senhora perdeu o seu piano?
– No bingo. No bingo, meu filho.
Desisti de pedir o auxílio aos funcionários do prédio.A Dona Ernestina perdeu as notas, ficou sem dó.
11 fevereiro 2008
A corrida por um beijo
– Oi, vô, posso caminhar com você?
– Lógico, meu filho. Não era você que estava empinando pipa ontem à tarde?
– Era sim. Você viu como ela estava alta?
– Eu só vi quando você estava com a pipa na mão, correndo para subir. Uma beleza de amarelo! Se você vier comigo pode chegar atrasado na escola...
– Ainda está cedo. Minha aula só começa às oito.
Achei estranho que aquele menino quisesse caminhar comigo. Eu só o tinha visto meia dúzia de vezes, nos gramados que ficam em volta dos edifícios onde moramos. Ele estava visivelmente querendo falar comigo, sentado na escadaria do prédio esperando eu passar.
O menino colocou-se à minha esquerda e seguimos juntos o meu trajeto rotineiro.
– E qual é seu nome?
– Pedro.
– Eu vi você jogando bola outro dia. Você leva jeito. Mas o chamavam por outro nome. Não era?
– Tico. Tico é nome de criança. Prefiro Pedro. Pedro é meu nome e é de homem. Já fiz onze anos, véi.
– Maravilha. E o Pedro torce para que time?
– Torço para o Botafogo. E o senhor?
– Ah, meu filho, o Senhor está lá no céu. Sou Fluminense. – Certamente o menino não quer discutir futebol, ele está tenso. Resolvo arriscar. – E as meninas?
– Pois é vô, você não se importa se eu chamá-lo de vô. Não é?
Parece que acertei, pensei comigo, ele está com algum problema em relação a alguma menina.
– Gosto que me chamem vô. Não gosto quando me chamam de seu isso ou seu aquilo. Em que posso ajudá-lo?
– É que eu gosto da Carolzinha. Já pedi pra namorar com ela e agora apareceu o Joca e quer atrapalhar tudo. Ele também quer namorar ela.
– A Carolzinha deve ser muito bonita...
– Ela é linda. E eu acho que ela gosta de mim enquanto a turma acha que sou muito pirralho pra ela.
– Pirralho?
– Ela tem doze anos e é um pouco maior que eu. Mas só um pouquinho.
– E porque você acha que o vovô pode ajudá-lo?
– É que a síndica falou que você é mó namorador.
– Mas isso é fofoca. Era só o que me faltava. Ela não tem mais o que fazer?
– Eu já vi você caminhando de mãos dadas com várias mulheres diferentes...
– Tá bem, espertinho, vamos retomar a conversa da Carolzinha, isso é o que interessa. Se a Carolzinha gosta de você e você gosta dela por que o Joca iria atrapalhar tudo?
– O Joca é mó bom. È ele que tira par ou ímpar para escolher os times. È só ele que sabe andar de bike na roda de trás. È ele que tira mó onda de sabe-tudo. As meninas só querem saber dele. A turma toda já tá torcendo para ele.
– Então a coisa tá preta. E você acha que a Carolzinha vai cair na onda dele?
– Acho. A Zeca me sacaneou. Inventou uma corrida. E quem ganhar, ganha um beijo da Carolzinha. Mó sacanagem! Tô afim da Carol há muito mais tempo e o Joca é bem maior do que eu e corre mais. Tô ferrado!
Nem perguntei mais detalhes do Joca nem da Zeca para não tirar o foco da preocupação do menino.
– A corrida já está marcada?
– Já. É na semana que vem. A Zeca disse que assim eu teria tempo de treinar. E deu mó gargalhada na minha cara!
– Quer dizer que quem ganhar a corrida ganha um beijo como se fosse aquela medalha olímpica? É isso?
– É isso, vô. Tô ferrado!
– E o Joca, com aquela cara de maioral, ainda disse que me dava 3 metros de vantagem. Filho da mãe!
– E onde vai ser a corrida?
– A Zeca disse que eu poderia escolher qualquer lugar, que o Joca vai ganhar mesmo.
– O Joca também estuda aqui na escola?
– Estuda. Por que? Você não vai falar com as tias, vai?
– Jamais. Isso é coisa de homem. Coisa de homem para resolver como homem.
– O Joca nem quer namorar com a Carolzinha, ele só quer tirar onda e mostrar que ele é o bonzão, o fodão.
– Eu acho que você deve marcar o dia e hora lá na escola.
– Isso é tudo o que ele quer. Aparecer!
– Você deve escolher a hora que tiver mais gente para ver a corrida.
– Para gritarem o nome do Joca? É campeão! É campeão! É campeão! Beija! Beija! Beija! Nunca. È muita humilhação.
– E se for o contrário?
– Contrário como? Não existe a menor chance de eu ganhar a corrida.
– Faça o seguinte: diga que topou o desafio e marque com a turma o dia e a hora na escola. Ainda faça uma provocação que você já está treinando para beijar. Deixe para dizer aonde será a corrida para a última hora.
– Eu hein? Na escola só tem o pátio. Não tem jeito.
– Você quer ou não quer ganhar aquela medalha olímpica?
– Claro, né, vô. Eu amo a Carolzinha.
– Você tem a vantagem de 3 metros não tem?
– Tenho, mas é muito pouco.
– Na última hora diga que é na escadaria da escola. Escada acima. São apenas três andares. E comece a treinar desde já.
Pedro abriu mó sorriso e saiu correndo.– Valeu, véi.
– Lógico, meu filho. Não era você que estava empinando pipa ontem à tarde?
– Era sim. Você viu como ela estava alta?
– Eu só vi quando você estava com a pipa na mão, correndo para subir. Uma beleza de amarelo! Se você vier comigo pode chegar atrasado na escola...
– Ainda está cedo. Minha aula só começa às oito.
Achei estranho que aquele menino quisesse caminhar comigo. Eu só o tinha visto meia dúzia de vezes, nos gramados que ficam em volta dos edifícios onde moramos. Ele estava visivelmente querendo falar comigo, sentado na escadaria do prédio esperando eu passar.
O menino colocou-se à minha esquerda e seguimos juntos o meu trajeto rotineiro.
– E qual é seu nome?
– Pedro.
– Eu vi você jogando bola outro dia. Você leva jeito. Mas o chamavam por outro nome. Não era?
– Tico. Tico é nome de criança. Prefiro Pedro. Pedro é meu nome e é de homem. Já fiz onze anos, véi.
– Maravilha. E o Pedro torce para que time?
– Torço para o Botafogo. E o senhor?
– Ah, meu filho, o Senhor está lá no céu. Sou Fluminense. – Certamente o menino não quer discutir futebol, ele está tenso. Resolvo arriscar. – E as meninas?
– Pois é vô, você não se importa se eu chamá-lo de vô. Não é?
Parece que acertei, pensei comigo, ele está com algum problema em relação a alguma menina.
– Gosto que me chamem vô. Não gosto quando me chamam de seu isso ou seu aquilo. Em que posso ajudá-lo?
– É que eu gosto da Carolzinha. Já pedi pra namorar com ela e agora apareceu o Joca e quer atrapalhar tudo. Ele também quer namorar ela.
– A Carolzinha deve ser muito bonita...
– Ela é linda. E eu acho que ela gosta de mim enquanto a turma acha que sou muito pirralho pra ela.
– Pirralho?
– Ela tem doze anos e é um pouco maior que eu. Mas só um pouquinho.
– E porque você acha que o vovô pode ajudá-lo?
– É que a síndica falou que você é mó namorador.
– Mas isso é fofoca. Era só o que me faltava. Ela não tem mais o que fazer?
– Eu já vi você caminhando de mãos dadas com várias mulheres diferentes...
– Tá bem, espertinho, vamos retomar a conversa da Carolzinha, isso é o que interessa. Se a Carolzinha gosta de você e você gosta dela por que o Joca iria atrapalhar tudo?
– O Joca é mó bom. È ele que tira par ou ímpar para escolher os times. È só ele que sabe andar de bike na roda de trás. È ele que tira mó onda de sabe-tudo. As meninas só querem saber dele. A turma toda já tá torcendo para ele.
– Então a coisa tá preta. E você acha que a Carolzinha vai cair na onda dele?
– Acho. A Zeca me sacaneou. Inventou uma corrida. E quem ganhar, ganha um beijo da Carolzinha. Mó sacanagem! Tô afim da Carol há muito mais tempo e o Joca é bem maior do que eu e corre mais. Tô ferrado!
Nem perguntei mais detalhes do Joca nem da Zeca para não tirar o foco da preocupação do menino.
– A corrida já está marcada?
– Já. É na semana que vem. A Zeca disse que assim eu teria tempo de treinar. E deu mó gargalhada na minha cara!
– Quer dizer que quem ganhar a corrida ganha um beijo como se fosse aquela medalha olímpica? É isso?
– É isso, vô. Tô ferrado!
– E o Joca, com aquela cara de maioral, ainda disse que me dava 3 metros de vantagem. Filho da mãe!
– E onde vai ser a corrida?
– A Zeca disse que eu poderia escolher qualquer lugar, que o Joca vai ganhar mesmo.
– O Joca também estuda aqui na escola?
– Estuda. Por que? Você não vai falar com as tias, vai?
– Jamais. Isso é coisa de homem. Coisa de homem para resolver como homem.
– O Joca nem quer namorar com a Carolzinha, ele só quer tirar onda e mostrar que ele é o bonzão, o fodão.
– Eu acho que você deve marcar o dia e hora lá na escola.
– Isso é tudo o que ele quer. Aparecer!
– Você deve escolher a hora que tiver mais gente para ver a corrida.
– Para gritarem o nome do Joca? É campeão! É campeão! É campeão! Beija! Beija! Beija! Nunca. È muita humilhação.
– E se for o contrário?
– Contrário como? Não existe a menor chance de eu ganhar a corrida.
– Faça o seguinte: diga que topou o desafio e marque com a turma o dia e a hora na escola. Ainda faça uma provocação que você já está treinando para beijar. Deixe para dizer aonde será a corrida para a última hora.
– Eu hein? Na escola só tem o pátio. Não tem jeito.
– Você quer ou não quer ganhar aquela medalha olímpica?
– Claro, né, vô. Eu amo a Carolzinha.
– Você tem a vantagem de 3 metros não tem?
– Tenho, mas é muito pouco.
– Na última hora diga que é na escadaria da escola. Escada acima. São apenas três andares. E comece a treinar desde já.
Pedro abriu mó sorriso e saiu correndo.– Valeu, véi.
05 fevereiro 2008
Homo brasiliensis
– Cobogó? Que diabos é isso?
Eu não sou de prestar atenção na conversa alheia. Entretanto, às vezes é impossível não ouvir.
Eu estava voltando para Brasília sentado na poltrona do meio. Logo atrás de mim, naquele vôo lotado, estava uma mulher vistosa dos seus trinta anos. Entendi que ela não conhecia Brasília e recebeu convite para trabalhar na capital. Ela queria saber como as pessoas moram em Brasília e encontrou na poltrona vizinha um candango falante que deve ter sido guia turístico. Ambos falavam alto, o que tirou a atenção da minha leitura.
A primeira frase que ouvi foi dele.
– Os ricos, moram no lago. Os bem ricos, numa ponta de picolé.
– Como é? – Indagou a mulher formando rima.
– As pessoas mais endinheiradas moram próximas do lago e os terrenos enormes que ficam nas margens são chamados pontas de picolé. Somente esses têm o privilégio do acesso à água. Acredito que o melhor lugar para morar é no Plano.
– As margens do lago são muito íngremes?
– Não. Por que?
– Você disse que preferia morar em lugar plano.
O vizinho, imagino, deu um sorriso, explicou que se referia ao Plano Piloto e falou das asas Sul e Norte arrematando que as melhores quadras eram as cem e as trezentos.
Naturalmente ela deve ter feito cara de dúvida, pois ele tornou a explicar que as quadras cem e trezentos ficavam a oeste do Eixão.
Continuei sentado no meu lugar, preso ao cinto de segurança, mas com uma enorme vontade de olhar para trás para ver a cara de interrogação da mulher.
– Eixão?
O avião deu uma chacoalhada de modo que perdi aquela explicação. Ouvi outra, já pela metade.
– ... os melhores apartamentos são os mais antigos, são amplos e vazados.
– E o que é um apartamento vazado?
O candango chegou a ser irritante com sua longa e apaixonada explicação.
– Os prédios, conhecidos por blocos, ficam deitados. São compridos em vez de altos. O que faz com que haja maior número de apartamentos no mesmo andar e provoca menos áreas externas, logo há muitos apartamentos com apenas uma frente. Os antigos têm frente e fundo do lado oposto. São os vazados. Todos os apês antigos têm cobogó.
– Cobogó? Que diabos é isso?
Adoro essa palavra formada pela primeira sílaba de três engenheiros que criaram uma parede de tijolos decorativos que permite ventilação e entrada de luz natural. De modo que só ouvi o final da frase do vizinho falante.
– ... além do que, são impressões digitais da cidade.
Daí, ela perguntou qual era o prato típico da cidade.
E ele foi muito criativo na resposta.
– Não há nenhum prato típico porque os moradores têm origens em todas as regiões brasileiras. Na cidade encontramos todos os temperos. Não há prato nem forma comum de preparar alguma iguaria. È usual a reunião das pessoas em torno de uma churrasqueira. Cada um preparando a carne, ou peixe, por que não, a seu modo. Quase todas as casas do Lago têm churrasqueiras. Quase todos os clubes têm churrasqueiras e também há muitas espalhadas nos parques públicos. O churrasco agrega as pessoas. O brasiliense aprendeu que para sobreviver ali deve unir-se com os outros, respeitando e ultrapassando barreiras regionais.
– Uau! Falou bonito! Só ouço as pessoas falarem mal de Brasília, que é onde todos os corruptos se reúnem para roubar o resto dos brasileiros...
Nesse momento a forasteira acertou o fígado de todos os brasilienses com um poderoso golpe direto.
– Pois é, esse lamentável rótulo pertencia ao Rio, enquanto capital. Mineiros pão-duros, baianos preguiçosos, paulistas trabalhadores. Rótulos servem apenas para garrafas. A corrupção está espalhada por todos os cantos do nosso país. Não se salva nenhum enquanto permanecer a impunidade. A diferença é que em Brasília as somas são maiores e a mídia está mais atenta.
A mulher percebeu que cometeu uma gafe ao falar mal de Brasília a um brasiliense. E procurou mudar de assunto:
– Faz muito tempo que você mora em Brasília?
Aliviado, o candango respondeu:
– Agora você já está falando como uma brasiliense legítima...
– Não entendi...
– Quando duas pessoas se conhecem, a primeira pergunta é: há quanto tempo mora na cidade? e a segunda, invariavelmente, é: de onde você veio? Agora, com o passar do tempo e o nascimento de uma geração de nascidos na capital, a coisa mudou um pouco. De qualquer forma, as perguntas sempre são bem-vindas para o início de uma conversa.
– E, há quanto tempo, afinal, você mora na cidade?
– Fui para lá no início da década de 70. No tempo em que a lenda dizia que quem se mudava para Brasília passava pelo estágio dos três dês. Deslumbramento, decepção e desespero. Deslumbramento com as largas avenidas, arquitetura monumental e proximidade com o poder. Decepção ao perceber que morar próximo ao poder não os transforma em nobres. Desespero por não se adaptar à cidade e querer ir embora.
– Era tão ruim assim?
– É uma cidade de gente guerreira. Os perdedores sempre reclamam. O tempo incorporou outro dê. O dê da demência.
– Como assim? Não entendi...
– É quando as pessoas se acostumam, se entrosam e passam a amar Brasília.
– Interessante essa lenda...
– Particularmente, adotei ainda os dês da devoção e defesa da cidade que tão bem me acolheu.
Nesse momento a conversa dos dois foi interrompida pelo forte barulho do retrocesso das turbinas no pouso do avião.
O avião taxiou e estacionou.
Abri a porta do compartimento acima da cabeça, peguei minha sacola e olhei para os que me proporcionaram um vôo mais agradável.Ainda pensei em falar ao conterrâneo que as sílabas de cobogó foram formadas a partir dos nomes de Coimbra, Boekmann e Góis, mas apenas me despedi com um gesto de cabeça.
Eu não sou de prestar atenção na conversa alheia. Entretanto, às vezes é impossível não ouvir.
Eu estava voltando para Brasília sentado na poltrona do meio. Logo atrás de mim, naquele vôo lotado, estava uma mulher vistosa dos seus trinta anos. Entendi que ela não conhecia Brasília e recebeu convite para trabalhar na capital. Ela queria saber como as pessoas moram em Brasília e encontrou na poltrona vizinha um candango falante que deve ter sido guia turístico. Ambos falavam alto, o que tirou a atenção da minha leitura.
A primeira frase que ouvi foi dele.
– Os ricos, moram no lago. Os bem ricos, numa ponta de picolé.
– Como é? – Indagou a mulher formando rima.
– As pessoas mais endinheiradas moram próximas do lago e os terrenos enormes que ficam nas margens são chamados pontas de picolé. Somente esses têm o privilégio do acesso à água. Acredito que o melhor lugar para morar é no Plano.
– As margens do lago são muito íngremes?
– Não. Por que?
– Você disse que preferia morar em lugar plano.
O vizinho, imagino, deu um sorriso, explicou que se referia ao Plano Piloto e falou das asas Sul e Norte arrematando que as melhores quadras eram as cem e as trezentos.
Naturalmente ela deve ter feito cara de dúvida, pois ele tornou a explicar que as quadras cem e trezentos ficavam a oeste do Eixão.
Continuei sentado no meu lugar, preso ao cinto de segurança, mas com uma enorme vontade de olhar para trás para ver a cara de interrogação da mulher.
– Eixão?
O avião deu uma chacoalhada de modo que perdi aquela explicação. Ouvi outra, já pela metade.
– ... os melhores apartamentos são os mais antigos, são amplos e vazados.
– E o que é um apartamento vazado?
O candango chegou a ser irritante com sua longa e apaixonada explicação.
– Os prédios, conhecidos por blocos, ficam deitados. São compridos em vez de altos. O que faz com que haja maior número de apartamentos no mesmo andar e provoca menos áreas externas, logo há muitos apartamentos com apenas uma frente. Os antigos têm frente e fundo do lado oposto. São os vazados. Todos os apês antigos têm cobogó.
– Cobogó? Que diabos é isso?
Adoro essa palavra formada pela primeira sílaba de três engenheiros que criaram uma parede de tijolos decorativos que permite ventilação e entrada de luz natural. De modo que só ouvi o final da frase do vizinho falante.
– ... além do que, são impressões digitais da cidade.
Daí, ela perguntou qual era o prato típico da cidade.
E ele foi muito criativo na resposta.
– Não há nenhum prato típico porque os moradores têm origens em todas as regiões brasileiras. Na cidade encontramos todos os temperos. Não há prato nem forma comum de preparar alguma iguaria. È usual a reunião das pessoas em torno de uma churrasqueira. Cada um preparando a carne, ou peixe, por que não, a seu modo. Quase todas as casas do Lago têm churrasqueiras. Quase todos os clubes têm churrasqueiras e também há muitas espalhadas nos parques públicos. O churrasco agrega as pessoas. O brasiliense aprendeu que para sobreviver ali deve unir-se com os outros, respeitando e ultrapassando barreiras regionais.
– Uau! Falou bonito! Só ouço as pessoas falarem mal de Brasília, que é onde todos os corruptos se reúnem para roubar o resto dos brasileiros...
Nesse momento a forasteira acertou o fígado de todos os brasilienses com um poderoso golpe direto.
– Pois é, esse lamentável rótulo pertencia ao Rio, enquanto capital. Mineiros pão-duros, baianos preguiçosos, paulistas trabalhadores. Rótulos servem apenas para garrafas. A corrupção está espalhada por todos os cantos do nosso país. Não se salva nenhum enquanto permanecer a impunidade. A diferença é que em Brasília as somas são maiores e a mídia está mais atenta.
A mulher percebeu que cometeu uma gafe ao falar mal de Brasília a um brasiliense. E procurou mudar de assunto:
– Faz muito tempo que você mora em Brasília?
Aliviado, o candango respondeu:
– Agora você já está falando como uma brasiliense legítima...
– Não entendi...
– Quando duas pessoas se conhecem, a primeira pergunta é: há quanto tempo mora na cidade? e a segunda, invariavelmente, é: de onde você veio? Agora, com o passar do tempo e o nascimento de uma geração de nascidos na capital, a coisa mudou um pouco. De qualquer forma, as perguntas sempre são bem-vindas para o início de uma conversa.
– E, há quanto tempo, afinal, você mora na cidade?
– Fui para lá no início da década de 70. No tempo em que a lenda dizia que quem se mudava para Brasília passava pelo estágio dos três dês. Deslumbramento, decepção e desespero. Deslumbramento com as largas avenidas, arquitetura monumental e proximidade com o poder. Decepção ao perceber que morar próximo ao poder não os transforma em nobres. Desespero por não se adaptar à cidade e querer ir embora.
– Era tão ruim assim?
– É uma cidade de gente guerreira. Os perdedores sempre reclamam. O tempo incorporou outro dê. O dê da demência.
– Como assim? Não entendi...
– É quando as pessoas se acostumam, se entrosam e passam a amar Brasília.
– Interessante essa lenda...
– Particularmente, adotei ainda os dês da devoção e defesa da cidade que tão bem me acolheu.
Nesse momento a conversa dos dois foi interrompida pelo forte barulho do retrocesso das turbinas no pouso do avião.
O avião taxiou e estacionou.
Abri a porta do compartimento acima da cabeça, peguei minha sacola e olhei para os que me proporcionaram um vôo mais agradável.Ainda pensei em falar ao conterrâneo que as sílabas de cobogó foram formadas a partir dos nomes de Coimbra, Boekmann e Góis, mas apenas me despedi com um gesto de cabeça.
*Foto de Carlos Vieira
02 fevereiro 2008
Lâmpada mágica dos meus sonhos
Abaixei-me para pegar a lâmpada. Parecia vinda dos sonhos do oriente. Nunca tinha visto um objeto assim, só em filmes, desenhos animados ou livrinhos infantis com histórias mágicas. A forma da lâmpada sugeria cruzamento de bule com açucareiro de latão.
Essas coisas só acontecem comigo!
Olho em volta para conferir se não há ninguém olhando para mim. Isso está parecendo um trote. Qualquer mortal que eu conheço se encheria de sonhos e desejos, esfregaria a lateral, levaria um susto como o mago esfumaçado imaginário e teria o direito de formular três pedidos por libertar o gênio aprisionado por dois milênios.
Imagine se eu iria me dar ao trabalho de ficar elucubrando bobagens como essa?
Caminhão de dinheiro? Mulheres? Uma viagem ao redor do mundo? A paz entre os homens? Eternidade? Não, eu não vou perder tempo com isso. Ainda tenho algumas coisas para fazer antes do sol se por. A primeira é me desviar desse monte de meninos zunindo de bicicleta pela calçada.
Essa lâmpada vai ficar bonita em cima da cômoda na sala. Combina bem com o porta incenso e a caixinha de marchetaria. A quem perguntar, contarei que a ganhei de um xeique árabe por ter vencido uma corrida de camelos.
Olhando a lâmpada vejo que ela está bem sujinha. Está precisando de um polimento antes de ter o direito de ser defumada pelo incenso.
– Você que está lendo, já estava adivinhando que eu iria esfregar a lâmpada. Não é verdade?
Cinco passos adiante comecei a limpar a lâmpada com a barra da camisa.
– Pergunto a você, leitor, o que aconteceu?
Ouvi uma voz atrás de mim. Uma voz infantil, uma voz de menino.
Atrás de mim estava um garoto de uns dez anos de idade com um turbante na cabeça.
– Oi vô. Que bom que você achou minha lâmpada. Ela caiu da bicicleta.
Olhei desconfiado para aquele turbante carnavalesco.
– Bicicleta? Cadê a sua bicicleta menino?
– Tá ali, ó! Devolve a minha lâmpada.
O menino falou com tanta convicção que entreguei o objeto e os meus sonhos infantis.
O garoto pegou a lâmpada e voltou em direção da bicicleta.
Retomei o meu caminho debochando os meus absurdos devaneios. Onde já se viu uma lâmpada idiota provocar tantas fantasias. Melhor assim. Voltar ao meu caminho, à minha realidade.
Enquanto o velho caminhava para um lado, o garoto com a lâmpada na mão, voava no seu tapete para o outro lado.
Essas coisas só acontecem comigo!
Olho em volta para conferir se não há ninguém olhando para mim. Isso está parecendo um trote. Qualquer mortal que eu conheço se encheria de sonhos e desejos, esfregaria a lateral, levaria um susto como o mago esfumaçado imaginário e teria o direito de formular três pedidos por libertar o gênio aprisionado por dois milênios.
Imagine se eu iria me dar ao trabalho de ficar elucubrando bobagens como essa?
Caminhão de dinheiro? Mulheres? Uma viagem ao redor do mundo? A paz entre os homens? Eternidade? Não, eu não vou perder tempo com isso. Ainda tenho algumas coisas para fazer antes do sol se por. A primeira é me desviar desse monte de meninos zunindo de bicicleta pela calçada.
Essa lâmpada vai ficar bonita em cima da cômoda na sala. Combina bem com o porta incenso e a caixinha de marchetaria. A quem perguntar, contarei que a ganhei de um xeique árabe por ter vencido uma corrida de camelos.
Olhando a lâmpada vejo que ela está bem sujinha. Está precisando de um polimento antes de ter o direito de ser defumada pelo incenso.
– Você que está lendo, já estava adivinhando que eu iria esfregar a lâmpada. Não é verdade?
Cinco passos adiante comecei a limpar a lâmpada com a barra da camisa.
– Pergunto a você, leitor, o que aconteceu?
Ouvi uma voz atrás de mim. Uma voz infantil, uma voz de menino.
Atrás de mim estava um garoto de uns dez anos de idade com um turbante na cabeça.
– Oi vô. Que bom que você achou minha lâmpada. Ela caiu da bicicleta.
Olhei desconfiado para aquele turbante carnavalesco.
– Bicicleta? Cadê a sua bicicleta menino?
– Tá ali, ó! Devolve a minha lâmpada.
O menino falou com tanta convicção que entreguei o objeto e os meus sonhos infantis.
O garoto pegou a lâmpada e voltou em direção da bicicleta.
Retomei o meu caminho debochando os meus absurdos devaneios. Onde já se viu uma lâmpada idiota provocar tantas fantasias. Melhor assim. Voltar ao meu caminho, à minha realidade.
Enquanto o velho caminhava para um lado, o garoto com a lâmpada na mão, voava no seu tapete para o outro lado.
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