25 novembro 2015
A guerra do Vietnã não terminou
Ontem durante uma
visita ao amigo Oswaldo, conversávamos sobre descontos malucos oferecidos por
uma companhia aérea. A esposa dele lembrou de um momento recente em que uma
companhia aérea ofereceu passagens de primeira classe para os lugares mais
improváveis a sessenta reais. Ela tentou comprar uma, para qualquer lugar maluco
que fosse. Nova Zelândia, Indonésia, Zimbábue ou Vietnã.
— Bem, como é
mesmo o nome da capital do Vietnã? —
questionou ao Osw.
Nós quatro nos
entreolhamos buscando no ar uma resposta.
Primeiro veio
uma música:
Da sua guitarra o separou,
fora um chamado da América
Stop com Rolling Stones,
Stop com Beatles songs
Chamado foi ao Vietnã,
lutar com vietcongs
Ratatatá-ratatá, tatá-ratatá,
tatá-ratatá, tatá-ratatá
Em seguida o veio
nome. Yessssss! Funcionou!
— A capital do
Vietnã do Sul é Saigon — exclamei entusiasmado.
Meu amigo,
dono de memória e conhecimento louvável discordou. A capital é Ho Chi Min.
—
Não, meu amigo, — repliquei — Ho Chi Min nunca foi capital. Ho Chi Min não é
cidade. Era o nome de um dos líderes da guerra — a memória deu sinal de vida —
a capital do Vietnã do Norte é Hanói.
— Isso foi há
muito tempo. Houve uma reunificação e a capital é Ho Chi Min.
Meu celular
estava sem bateria para confirmar a pendenga, numa consulta ao mestre Google.
A discórdia
sequer alterou o tom da conversa. Aliás, seria ridículo se alterasse. Somente
martelou meu HD interrorelhas. A conversa seguiu alegre.
No outro dia,
logo após o café da manhã, liguei o computador para realimentar meu HD.
De fato, Ho
Chi Min era do norte, foi o líder vencedor da guerra entre os dois países.
Rebatizaram Saigon homenageando-o. Os países foram reunificados em 1976 com o
nome de República Socialista do Vietnã. A capital do país, desde então passou a
ser Hanói.
Eu estou
indignado. Transtornado para valer.
Não se trata
de vencer ou perder o tira-teima com o amigo.
— Absurdo!
Tudo aconteceu há quarenta anos e ninguém me avisou.
A imagem é um pagode de Hanói - Tran Quoc
17 novembro 2015
Rã
Com a fita
métrica na mão
mediu um por
um e anotou autor
e descrição dos quadros. A tarefa era fácil e agradável .
Paisagens , animais
ou figurativos. De vez
em quando
empacava no reconhecimento de alguma flor . Ele
conhecia rosas , hortências e tulipas . Teve que
consultar especialista para reconhecer helicônias. O trabalho ia maravilhosamente
bem até chegar na área dos abstratos . Aquilo
fugia à realidade . Ele
contornou a situação embarcando nos sentimentos
e passou a batizar os quadros
com pomposos
nomes : paixão
alucinada, caminho da verdade ,
andarilho noturno ,
acabou o bolo de chocolate .
Diversão pura .
Após medir
e anotar as dimensões
de mais uma tela
defrontou-se com borrões
acinzentados desconexos . As manchas indefinidas remeteram a um
pesadelo depressivo e agressivo . Ele
se recusava a designar pinturas
com sentimentos
ou nomes
negativistas. Neste caso considerava a tarefa impossível .
Resolveu ouvir a opinião
dos visitantes da exposição para
chegar a alguma solução . Assim rapidamente batizou o quadro
rã .
O dono da galeria
perguntou-lhe o porquê daquela escolha.
Explicou que dois visitantes indagados a opinar
sobre o quadro
em questão
responderam co m outra
pergunta :
— Hã?
05 novembro 2015
O Sol é para todos
Harper Lee
José Olympio
350 páginas
R$ 45,00
É um livro que
recebeu um Pulitzer - prêmio norte-americano concedido pela Universidade de
Columbia a pessoas que realizam trabalhos de excelência na área do jornalismo,
literatura e composição. Além disso, a contracapa informa que foi escolhido
pelo Library Journal como o melhor
romance do século XX e também foi escolhido pelos leitores da Modern Library como um dos cem melhores
romances em língua inglesa desde 1900. Mesmo que haja exageros, o livro deve
ser, no mínimo, visto com reverência.
O título do
livro – O Sol é para todos – é muito
apropriado quando se refere a igualdade racial embora o título em inglês – To kill a mockinbird – seja genial.
Mockinbird vem a ser um pássaro que imita o canto de outros confundindo quem o
escuta. É considerado, por isso, um pássaro gozador, enganador, daí o
metafórico título: para matar um enganador (ou mentiroso).
A história se
passa em Maycomb, uma cidade fictícia do Alabama de 1935. Era uma época em que
não havia televisão nem celulares, a comunidade era pequena, todos se conheciam
e formavam juízo uns dos outros. Tanto que o sobrenome Haverford era sinônimo
de burrice, os Ewell eram marrentos e ignorantes enquanto os Cunningham denotavam
pobreza, não aceitavam doações, mas se aceitassem algum favor faziam questão de
retribuir.
Mas o foco do
romance é um pequeno ramo da família Finch. A protagonista e narradora é Scout,
ou melhor, Jean Louise, como a tia fazia questão de chamar. Scout é uma menina
de oito anos que aprendera a ler antes de ir para a escola. De personalidade
forte, se vestia e brigava como um menino. Jeremy ou Jem, é o irmão quatro anos
mais velho, leitor voraz de livros e jornais, protetor da irmã. O pai viúvo é Atticus
Finch, advogado bem sucedido, extremamente ético e correto que educa os filhos
com o auxilio da cozinheira negra Calpúrnia.
Sempre a partir do universo de Scout que era
restrito à rua e à escola, a primeira metade do livro mostra como eram as
relações entre as pessoas da cidade com seus pequenos problemas. Apesar das travessuras
típicas da idade, Scout tem uma percepção bastante adulta das diferenças
sociais e raciais.
A segunda
metade da narrativa mostra Atticus convocado pelo juiz da comarca a defender um
negro acusado de estuprar a filha de um homem branco. Jem e Scout são
testemunhas da ignorância e preconceito reinantes no sul americano. A tensão é
agravada pela grave crise econômica, a chamada Grande Depressão.
Impossível
ficar indiferente nessa história que aborda questões como a ética, o
preconceito social e, sobretudo o racismo, tanto que o livro é indicado para a
leitura nas escolas americanas.
Li
e recomendo com entusiasmo.
03 novembro 2015
PARIS - ANO 1000
“Qui habet aures audiendi audiat - Quem tem
ouvido para ouvir, ouça.
Patevotrix traduziu as palavras celtas ao latim e agora as gravava a fogo
no couro curtido do cordeiro nada cristão.
Isto foi em Paris a dois meses da virada do primeiro milênio.
Aos treze anos de idade Patevotrix queimou o lado esquerdo da face com
óleo fervente. Foi tratado por três anos por um sacerdote com chás e emulsões.
Agora, aos noventa e cinco anos, com postura ereta e apenas um olho na carne
disforme do rosto, Patevotrix continua nos estudos que o mestre lhe ensinara.
Herdou do druida centenas de vidros com os mais variados líquidos e pós.
Essências, temperos, ácidos, cristais, cascas, folhas, pelos e tudo que a mente
humana puder acondicionar em vidros pequenos, médios ou grandes. Herdou também
duas paredes de estantes de escritos com documentos romanos, gregos, celtas,
bretões e até papiros egípcios. À luz de vela, lia de tudo: filosofia,
medicina, astrologia, botânica, fauna, antropologia...
Entre os manuscritos encontrou a fórmula para a poção da longevidade.
Esta ele não traduziu. Desconfiava que a humanidade ainda não estivesse pronta.
“Na segunda noite da lua nova coloque sete cascos de tartarugas brancas
bem lavadas no interior de uma ânfora de azeite junto com uma ferradura usada,
acrescente pó de raiz de carvalho e um par de olhos de uma coruja da cor do
ébano. Deixe fechado por três dias enrolada num lenço de seda vermelha. No
quarto dia acrescente uma moeda de ouro. Das grandes. Embrulhe de novo no lenço
e guarde sob a terra até a quarta lua cheia. Coe com o lenço vermelho e
acrescente uma pitada de almíscar.”
“Tome duas colheres ao dia enquanto tiver lucidez. A primeira quando o
sol desperta e a segunda quando a noite adormece o sol.”
O recluso velho de barbas brancas passava o dia em um enorme espaço
iluminado por dezenas de tochas. Ele preferia aquele subterrâneo à luz solar.
Assim ele não precisava ver os homens e cachorros sarnentos disputando comida
nas feiras fétidas às margens do esgoto do rio Sena.
Para ele, aqueles eram os primeiros sinais do fim. Das trevas. Quando o
sol e a lua se fundirem num cometa incandescente fagulhando terror.
Patevotrix quase não dormia. Era inquieto e meditabundo. Parecia captar a
linguagem dos deuses sussurrada no crepitar da fogueira.
Paris, centro do mundo, fundada por celtas, invadida por romanos que a
nominaram Lu técia e depois foi
retomada pelos francos e passou a ser Paris. O destino de Paris é ter as ruas
cheias de estrangeiros falando línguas estranhas.
Os sinais estão claros para Patevotrix. O papa reinou apenas três anos e
faleceu. Escolheram um francês, Gerbert d’Aurillac, que, outrora, durante dois
invernos frequentou as estantes e misturou líquidos junto com Patevotrix. Agora
é o Papa Silvestre II. É ele que se entende com o frágil rei dos francos,
Roberto II, o Pio. Roberto II é filho de Hugo Capeto, da dinastia dos
capetinos.
Patevotrix resmungava baixinho: ninguém me engana – ejudus farinae – são
da mesma farinha. Qual deles será o anticristo?
Todos os dias, as palavras encontradas em um manuscrito datado de Lu técia, Anno Domini CCCXIV, martelam seus
pensamentos:
“E assim, com o novo milênio, tudo será anulado. Um dia, uma noite...
Paris será um apenas o resto de uma enorme fogueira.
O vento dará o sinal. Serão dois dias de vento assobiando a música de
satanás. No terceiro dia as árvores serão arrancadas aos céus. O céu as
mastigará e vomitará neve de carvão e alcatrão. O dia será noite. As trevas
darão lugar aos trovões e relâmpagos que, de tão fortes, iluminarão o interior
das casas. Para amainar o frio, a Terra
será rasgada e do ventre brotarão labaredas imensas. No sétimo dia água salgada
com cheiro de enxofre tomará as fendas abertas e apagará o fogo. Quando tudo
estiver acabado, no silêncio absoluto, a peste sairá em busca das almas
sobreviventes. Nem mesmo cadáveres putrefatos escaparão das doenças
purulentas.”
Faltava apenas um mês para o novo milênio. Ao entardecer, Patevotrix,
pela primeira vez, não tomou uma colher de azeite temperada com almíscar.
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