23 fevereiro 2016
Suprema decisão
A definição de raça agora é sacramentada por um tribunal de pureza racial
que entrevista os candidatos a vestibular ou concursos públicos e define os que
podem ou não ser enquadrados nas cotas dos negros. Na escola aprendi que raça
era uma coisa e cor era outra.
Negros e mulatos: 40%; deficientes físicos: 20%; egressos de escolas
públicas: 35%; pobres: 20%; indígenas: 15%; asiáticos: 4,5%; judeus: 3%;
desafinados: 5%; macrobióticos: 2%; órfãos: 1%; analfabetos: 18,37%.
O nosso caso não necessitará de nenhuma comissão especial para
confirmação. Dispensaremos atestado de pobreza e exame de DNA. A identidade
será o suficiente para provar nosso enquadramento na cota. Particularmente
tenho K por parte de pai e de mãe.
Feliz mesmo vai ser um amigo meu Zibgniev Chlowinsky, é pobre, estudou em
escola pública do nordeste, não aprendeu a escrever, é preto de pai e indígena
de vizinho, sem amídalas, careca, míope e na casa dele não tem televisão
colorida.
Zib com certeza vai entrar na faculdade, pois somando todas as cotas
estará com 127, 38%, o problema é que irá direto para o laboratório de
antropologia.
16 fevereiro 2016
Precisamos falar sobre o Kevin
PRECISAMOS
FALAR SOBRE O KEVIN
LIONEL SHRIVER
Editora Intrínseca
464 páginas
R$ 45,00
É um
fantástico romance ficcional escrito em forma de sucessivas cartas como se
fossem capítulos. Ao contrário das manchetes e notícias sangrentas que escorrem
de jornais populares é palatável, muito bem escrito e nada superficial ao falar
sobre o desenvolvimento de um serial killer.
A mãe, uma
americana escreve alucinadamente cartas ao marido narrando a própria
transformação de executiva bem sucedida em mãe de um Assassino sequencial. As
cartas são depoimentos convincentes de angústias, sofrimentos, sentimento de
culpa e inocência, acusações sofridas e punições impostas pela sociedade, além
de lembranças boas e más.
Nas
histórias policiais é comum sabermos de início que houve um crime e só
descobrimos quem é o criminoso na última linha. Nesta história, de cara sabemos
que Kevin assassinou vários colegas de escola. Aqui e em todos esses
assassinatos sequencias a mãe do criminoso, os pais das crianças mortas, os
vizinhos, os professores, os juízes e toda população mundial quer saber o por
quê.
Tentando entender
a razão a mãe relembra a vida do menino desde antes do nascimento até o dia da
barbaridade. Nas longas cartas demonstra que há uma somatória de atos, como
numa queda de avião, que sozinhos não provocariam o desastre, mas que somados
fatalmente levam à tragédia.
A mãe, que questiona
a própria culpa apesar da condenação implacável da sociedade, mostra como
qualquer família pode a qualquer tempo, aparentemente, sem mais nem menos,
gerar um filho assassino. Isto é, com verossimilidade e altas doses de ironia a
situa e identifica o leitor como pai ou mãe do personagem assassino.
Em todas as
histórias ficcionais há momentos em que identificamos passagens que poderiam
ser autobiográficas, ou seja, verídicas e que se passaram com o autor. Mas em
um livro chocante e mórbido como este, será que há alguma semelhança entre
criatura e criador? Afirmo que sim. Não me refiro a nenhuma crueldade. O
perverso Kevin Khatchadourian e a premiada Lionel Shriver planejaram
detalhadamente e dissimularam suas ações. A autora foi incrivelmente capaz de
posicionar as cartas apresentando um episódio cada vez mais comprometedor. Em
vez de nominar os capítulos com títulos enumerando perversidades batizou-os com
datas como se fossem meras cartas sequenciais. Nada mais camuflado. Em muitas
das passagens a autora conseguiu me chocar com as atitudes sádicas do
protagonista. Apesar de sabermos desde o início aonde a história iria chegar,
fui surpreendido várias vezes, principalmente com o final.
A história é
densa e tensa, envolvente e emocionante. Muitas ações e histórias paralelas
constroem um romance para ser lido em um só fôlego, sem interrupções. Não é à
toa que recebeu elogios da crítica internacional e desponta entre os grandes
best sellers americanos. Até virou premiado filme.
09 fevereiro 2016
Telhas assassinas
Leitor
compulsivo que sou, meus olhos leem paisagens buscando palavras e letras.
Outdoors
poluem a cidade. Placas de trânsito infestam as ruas. Letreiros iluminam as
lojas. Cartazes alugam e vendem.
Entre todos os
letreiros meus olhos são particularmente atraídos pelas intervenções urbanas
diferenciadas: “Brasília expande a distância entre os corpos.”; “Atenção isto
pode ser um poema.”; ”Alimente os pássaros imaginários.”; ”Liberte seus cachos,
amarre o preconceito.”.
Aquilo é no
mínimo estranho. Não consigo captar a mensagem. A estaca está próxima a um poste
rodeado de mato alto.
— Será que existe
uma pilha de telhas sob o mato?
Mas continuo a
caminhada e a mente muda de assunto quando os olhos flagram o anúncio do posto
de gasolina com o novo preço dos combustíveis.
Só volto a pensar brevemente nas perigosas telhas no dia seguinte. Com o
quebra-cabeças não resolvido lembro-me de outra frase lida: “ Alfaiate. Paletós
sob medida para almas pequenas.”

É lógico que
prefiro a criatividade causada, por exemplo, quando estou de carro a caminho de
casa. Há uma passagem estreita sob uma avenida (carinhosamente chamada Eixinho),
onde de cada lado da entrada da passagem pintaram uma enorme perna feminina. Numa
erótica provocação entramos de carro no túnel entre as pernas escancaradas.
Deixando as
pernas de lado, volto para a minha trilha matinal ainda matutando sobre o
perigo que as telhas poderiam oferecer. Questiono a necessidade de comunicação dos
homens. Eletricista. Bombeiro. Faço buracos para secador. Lava-se sofá. Chaveiro
24 horas. Cristo salva. Vende-se kitchinete. Marido de aluguel. Fazemos seu churrasco.
Trago seu amor de volta em 3 dias. Confecciono cartazes.
— Será que no
meio do matagal há algum fosso coberto por telhas?
— Sabe de uma
coisa? Hoje, no caminho de volta vou tirar isso a limpo.
E assim foi
que ao me aproximar do enigmático cartaz troquei o meu passo descansado por uma
corrida desenfreada ao decifrar a charada: ”Cuidado abelhas.”
02 fevereiro 2016
Clichê
Em março ou abril
lançarei o
Manual do escritor
Só faltam o copidesque e
a revisão.
Segue um aperitivo
Clichê
É
repetição. É o oposto de criatividade.
Pessoas comentam
orgulhosos de sabedoria: “filho de peixe, peixinho é” ou “quem brinca com fogo
acaba se queimando” ou “em briga
de marido e mulher, ninguém mete a colher” e depois olham com cara de
superiores e narizes empinados como se tivessem dito a coisa mais sábia do
universo.
Sábio foi o primeiro que disse a frase antes de virar ditado. Os outros
são meros repetidores. E, para a literatura, nada pior que a previsibilidade.
Além dos ditos populares há vários outros lugares comuns que devem ser
evitados. É o caso do agente de viagens que afugenta clientes ao informar que a
cidade é hospitaleira, tem praias paradisíacas de areia branca e água
cristalina.
Os chavões refletem ausência de
pensamento:
Aluno exemplar; amargo destino; campos verdejantes; céu infinito;
coração estúpido; cortina de ferro; em última análise; dever indeclinável;
dramática situação; fim amargo; forte como touro; influência avassaladora;
ironia do destino; manto negro da noite; morrer como um passarinho; por
incrível que pareça; primeiro e único; rua da amargura; sem sombra de dúvida;
sério candidato; silêncio sepulcral, vil metal.
Inclua ponto
final na lista.
Ao revisar
fique atento às duplinhas. Se tiver dúvidas se o termo é ou não clichê
verifique o número de ocorrências assinaladas no Google.
Ironia do destino apresentou aproximadamente 560.000 resultados.
Coração estúpido apresentou aproximadamente 678.000 resultados.
Sério candidato apresentou aproximadamente 3.160.000 resultados.
Mesmo que
sejam “apenas” 10 mil ocorrências é um baita clichê.
Baita clichê apresentou aproximadamente 271.000 resultados.
O clichê de ideia é como o parente previsível
que no Natal nos presenteia com canetas, gravatas ou um par de meias. É o cidadão
que reclama dos políticos corruptos, é o filho que declara o amor incondicional
à mãe, é o leitor que fala mal da literatura de Paulo Coelho sem ter lido um
único livro, é o sujeito que sempre cumprimenta o Humberto perguntando se é
irmão do Doisberto.
Sabemos
que roubar um tênis é um mal. Isso é sabido desde sempre, sem que ninguém nos diga.
Deixemos que o juiz o julgue. Cabe ao autor simplesmente mostrar que tipo de
gente rouba tênis.
O gesto clichê é tão indesejável na literatura quanto ganhar
um porta-retratos. Clichês físicos e gestos chavões
inundam a escrita medíocre.
Sabe, ele me ganhou com aquele olhar de soslaio.
— É mesmo?
— Convidei-o para vir na minha casa. Meus batimentos estavam a
mil por hora e minhas mãos também estavam úmidas.
— E vocês chegaram às vias de fato?
— Nem te conto, amiga, do hálito quente sussurrado no ouvido até
a mão grande com pegada forte, ele é tudo de bom.
— E depois?
— Ele é um amor. No café da manhã, pegou o pote de margarina e
desenhou um coração.
— Vocês se acharam, se completam. Formaram o par perfeito: Clichê e Chavão.
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