Carniça
Moisés Liporage
Editora Escrita Fina
168 páginas
(desculpe-me capista, acrescentei as margens, senão o livro branco flutuaria)
Conheci o autor em
Brasília numa palestra promovida pelo SESC. Ele comentou que escrevera um livro
com ironias, morbidez e doses de humor negro.
Foi o suficiente para
provocar a minha curiosidade nesses tempos de perseguição aos politicamente
incorretos.
Com o livro esgotado na
livraria precisei comprar em sebo virtual. Observei que no meu exemplar não
havia nenhum sinal externo de violência a não ser o título do livro escrito com
sangue em alto-relevo.
Naturalmente li a
primeira orelha.
“Qualquer um vive
alerta diante dos muitos riscos que o cotidiano oferece. Só que, no caso de
Gilberto dos Anjos, essa atenção beira a patologia. O problema dele é garantir
que a morte demore muito a chegar. Por isso, ele construiu um bunker-sarcófago
na região serrana do Rio.
Sempre que se vê
afligido por alguma suspeita de ameaça fatal, concreta ou abstrata, Dos Anjos
sobe até seu retiro e se esconde das mil urucubacas que acredita rondá-lo de
tempos em tempos.
A caminho de mais uma
dessas temporadas de hibernação, Dos Anjos oferece carona a Estela, uma jovem
grávida com um passado misterioso que, literalmente, a persegue com sede de
vingança. Ao dar uma de bom samaritano, Gil, este sujeito supersticioso, acaba
se arriscando de verdade. Sim, talvez ele tenha finalmente descoberto quando e
como vai morrer.”
Fui fisgado por uma
vontade incontrolável de seguir adiante.
Eu só pretendia dar uma
olhadinha no livro recém-chegado pelos correios, mas aí ele – o livro – se
mostrou mais provocativo ainda no prólogo de uma página com uma cena de repouso
desenvolvendo um flash de uma
conversa nervosa antevendo muita ação.
Parecia um daqueles thrillers de cinema que se veem antes da
exibição do filme que escolhemos e aguardamos.
E acabei levando-o
comigo para a consulta médica. Li durante uma hora e detestei ser interrompido pela
doutora me chamando na porta do consultório.
Os protagonistas óbvios
da história são Gilberto dos Anjos, a grávida Estela, seus perseguidores e a
morte que é muito mais do que uma simples personagem.
Para marcar os
personagens, Moisé Liporage usa um artifício curioso. Gilberto por ser cinéfilo
compara ações a cenas vivenciadas em dezenas de filmes e algumas músicas que
mesmo o leigo em cinema consegue usufruir: “Gil foi até uma antiga juke box Wurlitzer e botou um hino de
acasalamento cantado por Marvin Gaye”.
O chefe dos
perseguidores, o caolho Waldick Sabá, além de ser um cruel matador e cafetão
era useiro de clichês e citações. A desenvoltura era tamanha que foi imitado
pelos comparsas Marciano Sequelado, Torquato, Clemerson, Jonatan e também pelo
narrador.
“Não é à toa que
neginho diz que vingança é um prato que se come frio. A comida esfria porque
você tem que esperar o momento certo para meter o garfo”.
“Mudava de um
pensamento para outro como um Tarzan trocando de cipós”.
O
narrador mistura besteirol com pensamentos profundos em que as ações por mais
dramáticas que sejam ganham pitadas de humor. Ás vezes negro.
“Dos Anjos se
perguntava como foi possível esfarelar em alguns segundos toda uma
infraestrutura de fuga e hibernação tão bem planejada. Sua cisma se
justificava. O nimbo-cúmulos do seu cagaço de morrer ganhava novos contornos e
assumia as formas daquela prostituta grávida. Qual era a explicação para uma
fortaleza de raciocínio autopreservativo ter ruído daquela maneira? Como suas
sólidas fundações ganharam a consistência e a densidade de uma paçoca?
“Estela amassou a
comida no prato, enquanto pensava no assunto. Como se, junto com a chegada do
ovo e da galinha, aquele fosse um dos grandes mistérios da humanidade”.
Ou humor negro:
“Seu sorridente inimigo
tinha a postura letal de uma granada com o pino puxado”.
“Algo escapuliu do
bolso de sua camisa, quicou no piso de madeira, bateu na parede e voltou
rolando até parar bem próximo ao seu rosto. Parecia uma bola de gude.
Mas era um olho.
Aquilo indicava que,
mesmo depois de morto, Waldick ainda era capaz de repreendê-lo com olhar de
sarcasmo.”
Se a história se fosse um filme, seria
um filme nacional tecnicamente malfeito (propositadamente), mas considerado bom
é a definição para um filme trash. As
ações espetaculares de capotamento, perseguição de cachorros, explosões e fugas
miraculosas ao invés de causar espanto, causam riso.
Há questões não
respondidas:
Gil, numa queda, enfiou
a cara numa poça repugnante, vomitou e continuou na fuga. Acostumou-se com o
cheiro ou se limpou escondido do leitor?
Se ninguém tinha acesso
ao bunker isolado, como eram alimentados os três ferozes cães?
Pouco importam as
respostas. Isso é irrelevante numa história trash.
Mas uma passagem,
particularmente, chamou-me à atenção:
Gilberto diz a Estela
que há gente muito mais mórbida do que ele e que chegam a comprar esqueletos
humanos em Oklahoma. Completa informando as diferenças de preços entre um
crânio com dentição e outro sem.
Ela pergunta como ele
sabe disso tudo e ele responde:
— “Eu não acompanho o
campeonato brasileiro”.
Foi essa a resposta que
imaginei que a minha médica, no retorno à consulta, daria depois de mil
explicações convincentes sobre a minha dor de barriga.
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