13 junho 2016

Carniça

Carniça

Moisés Liporage
Editora Escrita Fina
168 páginas

(desculpe-me capista, acrescentei as margens, senão o livro branco flutuaria)



Conheci o autor em Brasília numa palestra promovida pelo SESC. Ele comentou que escrevera um livro com ironias, morbidez e doses de humor negro.
Foi o suficiente para provocar a minha curiosidade nesses tempos de perseguição aos politicamente incorretos.
Com o livro esgotado na livraria precisei comprar em sebo virtual. Observei que no meu exemplar não havia nenhum sinal externo de violência a não ser o título do livro escrito com sangue em alto-relevo.
Naturalmente li a primeira orelha.
“Qualquer um vive alerta diante dos muitos riscos que o cotidiano oferece. Só que, no caso de Gilberto dos Anjos, essa atenção beira a patologia. O problema dele é garantir que a morte demore muito a chegar. Por isso, ele construiu um bunker-sarcófago na região serrana do Rio.  
Sempre que se vê afligido por alguma suspeita de ameaça fatal, concreta ou abstrata, Dos Anjos sobe até seu retiro e se esconde das mil urucubacas que acredita rondá-lo de tempos em tempos.
A caminho de mais uma dessas temporadas de hibernação, Dos Anjos oferece carona a Estela, uma jovem grávida com um passado misterioso que, literalmente, a persegue com sede de vingança. Ao dar uma de bom samaritano, Gil, este sujeito supersticioso, acaba se arriscando de verdade. Sim, talvez ele tenha finalmente descoberto quando e como vai morrer.”
Fui fisgado por uma vontade incontrolável de seguir adiante.
Eu só pretendia dar uma olhadinha no livro recém-chegado pelos correios, mas aí ele – o livro – se mostrou mais provocativo ainda no prólogo de uma página com uma cena de repouso desenvolvendo um flash de uma conversa nervosa antevendo muita ação. 
Parecia um daqueles thrillers de cinema que se veem antes da exibição do filme que escolhemos e aguardamos.
E acabei levando-o comigo para a consulta médica. Li durante uma hora e detestei ser interrompido pela doutora me chamando na porta do consultório.
Os protagonistas óbvios da história são Gilberto dos Anjos, a grávida Estela, seus perseguidores e a morte que é muito mais do que uma simples personagem.
Para marcar os personagens, Moisé Liporage usa um artifício curioso. Gilberto por ser cinéfilo compara ações a cenas vivenciadas em dezenas de filmes e algumas músicas que mesmo o leigo em cinema consegue usufruir: “Gil foi até uma antiga juke box Wurlitzer e botou um hino de acasalamento cantado por Marvin Gaye”.

O chefe dos perseguidores, o caolho Waldick Sabá, além de ser um cruel matador e cafetão era useiro de clichês e citações. A desenvoltura era tamanha que foi imitado pelos comparsas Marciano Sequelado, Torquato, Clemerson, Jonatan e também pelo narrador.
“Não é à toa que neginho diz que vingança é um prato que se come frio. A comida esfria porque você tem que esperar o momento certo para meter o garfo”.
“Mudava de um pensamento para outro como um Tarzan trocando de cipós”.
O narrador mistura besteirol com pensamentos profundos em que as ações por mais dramáticas que sejam ganham pitadas de humor. Ás vezes negro.
“Dos Anjos se perguntava como foi possível esfarelar em alguns segundos toda uma infraestrutura de fuga e hibernação tão bem planejada. Sua cisma se justificava. O nimbo-cúmulos do seu cagaço de morrer ganhava novos contornos e assumia as formas daquela prostituta grávida. Qual era a explicação para uma fortaleza de raciocínio autopreservativo ter ruído daquela maneira? Como suas sólidas fundações ganharam a consistência e a densidade de uma paçoca?
“Estela amassou a comida no prato, enquanto pensava no assunto. Como se, junto com a chegada do ovo e da galinha, aquele fosse um dos grandes mistérios da humanidade”.
Ou humor negro:
“Seu sorridente inimigo tinha a postura letal de uma granada com o pino puxado”.
“Algo escapuliu do bolso de sua camisa, quicou no piso de madeira, bateu na parede e voltou rolando até parar bem próximo ao seu rosto. Parecia uma bola de gude.
Mas era um olho.
Aquilo indicava que, mesmo depois de morto, Waldick ainda era capaz de repreendê-lo com olhar de sarcasmo.”

Se a história se fosse um filme, seria um filme nacional tecnicamente malfeito (propositadamente), mas considerado bom é a definição para um filme trash. As ações espetaculares de capotamento, perseguição de cachorros, explosões e fugas miraculosas ao invés de causar espanto, causam riso.

Há questões não respondidas:
Gil, numa queda, enfiou a cara numa poça repugnante, vomitou e continuou na fuga. Acostumou-se com o cheiro ou se limpou escondido do leitor?
Se ninguém tinha acesso ao bunker isolado, como eram alimentados os três ferozes cães?
Pouco importam as respostas. Isso é irrelevante numa história trash.
Mas uma passagem, particularmente, chamou-me à atenção:
Gilberto diz a Estela que há gente muito mais mórbida do que ele e que chegam a comprar esqueletos humanos em Oklahoma. Completa informando as diferenças de preços entre um crânio com dentição e outro sem.
Ela pergunta como ele sabe disso tudo e ele responde:
— “Eu não acompanho o campeonato brasileiro”.


Foi essa a resposta que imaginei que a minha médica, no retorno à consulta, daria depois de mil explicações convincentes sobre a minha dor de barriga.

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