28 novembro 2016
Liturgia
do fim
Marília
Arnaud
Editora
Alaúde – selo Tordesilhas
R$
30,00
250
páginas
Há
quem goste de rabada com agrião. Há quem considere buchada de bode um prato dos
deuses. Aos vegetarianos a picanha mal
passada é um sacrilégio. Para outros, o camarão ao alho e óleo causa urticária.
Cada comensal tem seu próprio paladar. Assim, posso dizer que este livro não é
um bife com arroz, ovo e batatas fritas. Não é um prato para o dia a dia, não é
um prato comum e de gosto consensual.
É
para quem gosta de comida com muito condimento. E a cozinheira, digo autora, salpica
poesia em todas as páginas, parágrafos, linhas. Em alguns lugares, para o meu paladar, parece
que a tampa do vidro da especiaria caiu e exagerou o sabor. “Costumávamos fazer longos passeios pela
praia, afundando na areia dourada os pés descalços, lambidos de espuma,
sentindo na pele a calidez do sol, escutando o estrugi monótono do quebrar das
ondas.”.
Em
resumo trata-se de história onde Inácio é expulso da casa da fazenda pelo pai. Ele
se forma em Letras, se casa com Ieda, tem uma filha Isabel, mas, introvertido,
jamais consegue lidar com as pessoas à sua volta. Está ensimesmado com o passado
na fazenda Perdição. O motivo da expulsão não fica claro para o leitor. Tampouco
está totalmente resolvido para o protagonista. A história, mistura de recordações
e fluxos de pensamentos, avança lentamente. A cada dez passos para frente, voltam-se
nove passos. São muitas as pistas fornecidas para conhecermos a motivação para o
desentendimento. Marília Arnaud nos conduz com maestria e só nas últimas páginas
revela todo o segredo. A originalidade do final é estarrecedora. Vale todo o
sacrifício de uma leitura floreada de vais e voltas.
Ao
falar do protagonista, Inácio Boaventura, a linguagem parece-me muito feminina,
não me convence para um narrador masculino, mesmo que escritor e poeta de
profissão. Ao lirismo acrescentou dezenas de adjetivos e advérbios.
“Rasgou-me
o peito súbita vontade de chorar, por mamãe e Ifigênia, por todas as coisas que
tinham deixado de ver, o brilho das manhãs, as ondas verdes nas encostas, o voo
nupcial da rainhas ao entardecer, o
debrum alaranjado do sol se pondo atrás das serras, a imensidão das noites
enluaradas, por tudo o que não mais podiam sentir, o vento no rosto, o perfume
das catleias, o calor do sangue a lhe correr nas veias, pelo que tinham deixado
de ser e no que se transformariam, pedaços de carnes devorados pelos vermes,
húmus a nutrir o solo.”.
“Confinado
atrás de muros intransponíveis de raiva e impotência, eu ousava me comparar a
eles, na medida em que o fogo secreto, a sarça ardente que os iluminava e
aquecia era a mesma que me esbraseava a raiz mais funda da vida, ali onde
principiava a angústia da carne, onde latejava o mistério da alma, alma minha,
de onde me fora arrancada uma fatia significante – é verdade que nos
acostumamos com qualquer coisa, com qualquer situação, por mais dura, mais
aflitiva ou humilhante que seja, e na noite mais espessa acabamos por enxergar
pontos luminosos.”.
Entretanto,
Marília Arnaud é espetacular em algumas descrições, como quando apresenta o
cenário de Joaquim Boaventura, o pai de Inácio.
“Sobre o centro, o tabuleiro de gamão e a
Bíblia aberta nos salmos. Pendurado num armador de rede, um macacão de
apicultor. E a cadeira de balanço de papai, trono de um rei sombrio, soberano
de um país perdido nas brenhas de uma serra, senhor de todas as coisas existentes
em derredor e a partir de si, a casa e as pessoas que a habitavam, a terra e a água,
as pedras e as árvores, o animais e as lavouras, as flores e as abelhas, e
ainda o silêncio e a palavra, a última palavra.”.
Depois
de um parágrafo como esse. Precisamos aplaudir.
E
assim, com alguns açúcares na receita, vamos digerindo a narrativa.
Marília
Arnaud, a cozinheira, sem que percebêssemos, acrescentou folhas de erva-santa
ao prato. A erva-santa ou erva-do-bicho confere sabor amargo. Primeiro algumas
poucas folhas esmigalhadas. E, por fim, quando já estávamos familiarizados com
o paladar, imaginando o café sem açúcar, ela se utilizou de várias folhas da
erva, causando um desfecho surpreendente onde, passados alguns dias ainda sentimos
o gosto amargo.
Se
eu recomendo? Sim se você for poeta ou gosta muito de literatura. Caso
contrário, tente entender a história, pule algumas páginas e se surpreenda com
o desfecho.
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