05 dezembro 2016

Ousei participar de um Festival de Contação de Histórias em Goiás.
Mandei um vídeo e minha interpretação foi classificada entre os finalistas.
Meu prêmio foi conseguir decorar um texto e dizê-lo em público.
Eu me diverti e fiquei orgulhoso por perder para uma interpretação para o Apólogo, um conto do Machado de Assis.
Eis o conto:



A velha e o fogo

A velha ateava fogo em alguns papéis. Numa das mãos, um jornal servindo de tocha e na outra um galho para cutucar a papelada. Foi só no que reparei.
Não. Eu reparei que ela usava umas roupas estranhas, algo como um vestido sobre outro. Talvez um vestido sobre uma camisola. Usava uma touca artesanal, de crochê claro. Não pude ver o rosto. As mãos eram bem alvas, assim como os tornozelos acima das meias brancas que calçavam um par de sandálias de dedo.
            Passei por ela e segui o meu caminho. Para mim, foi apenas uma figura esquisita em roupas azuis desbotadas queimando pertences num local afastado, um atalho entre o meu prédio e a larga avenida.
            Quando entrei no Eixão, o sol esquentou e revi mentalmente aquela senhora incendiária. Prestei atenção na figura e passei a divagar.
            Primeiro, sorri com ternura imaginando que a meiga anciã devia estar enviando mensagens para o céu com a fumaça. Julguei que seriam poemas saudosos, escritos com letrinhas tremidas, após a dolorosa separação quando o marido partiu em viagem para o infinito. Imaginei recordações em longas cartas lembrando o nascimento dos três filhos, a alegria da viagem ao Rio de Janeiro, quando juntos rezaram ao pé do Cristo no alto da cidade. Imaginei a frágil senhora enviando aos céus a receita das empadinhas de palmito, favoritas do finado, para que algum anjo cozinheiro lhe recordasse as delícias terrenas. Fantasiei procurando captar o sonho da paixão de um jubileu dourado.
            Quase fui atropelado por uma bicicleta que vinha em sentido contrário. O susto acordou-me dos devaneios e levou-me a refletir que os papéis queimados poderiam ter sido escritos pelo saudoso marido. Quem sabe agora, às vésperas de mudança de endereço, quisesse evitar que os filhos soubessem como o casal se amara com volúpia, ao contrário da inocência dos filhos, que sempre julgaram ter pais pudicos por terem praticado sexo apenas nas três únicas vezes em que geraram os três únicos filhos. Ninguém mais acredita em Papai Noel, mas os filhos sempre acreditam em pais castos, puros e assexuados.
            Naquele momento também ri. Ri de mim, por acreditar em Papai Noel e em sinceras declarações apaixonadas. A mulher devia estar apagando o passado de fogo ardente. Isso faria muito mais sentido. Passei a imaginar confissões de lascívia e luxúria de um amor adolescente. Não, isto não justificaria sair de casa num domingo de manhã, para atear fogo nas relíquias, longe dos olhos da família. A velhinha, pensei, deve querer ocultar, para sempre, pecados mais fortes. Decerto, cartas do amante. Manuscritos que revelavam promessas, desejos e realizações. Linhas anunciando palavras ditas sob as cobertas. Ali estaria o envelope com o nome e endereço completo do amante. Ali estaria uma fotografia do casal adúltero, numa tarde de outono. A família e a sociedade jamais poderiam saber daqueles poentes escaldantes. Ali, no meio da fogueira, estaria a carta com a surpresa e alegria do amante ao saber que seria pai.
            A cada passo que eu avançava a velhinha rejuvenescia nos meus pensamentos. Ficava mais bonita, sensual e atraente.
            Agora, idosa e dependente, às vésperas de mudar para a casa do filho bastardo, todos os seus pertences ficariam expostos. Inclusive a verdade, guardada na caixa de papelão rosa. O receio da rejeição e o temor de ser enviada para um asilo a faziam queimar o passado.
            Durante uma hora e meia caminhei pensando na velhinha e nos seus doces ou picantes segredos matrimoniais. Quando saí do Eixão, a curiosidade era tão grande que resolvi verificar se sobrara alguma coisa legível naquelas cinzas.
Durante uma hora e meia caminhei pensando na velhinha e nos seus doces ou picantes segredos matrimoniais. Quando saí do Eixão, a curiosidade era tão grande que resolvi verificar se sobrara alguma coisa legível naquelas cinzas.
— Foi aí que o senhor, seu delegado, apareceu e me flagrou com aquele crânio fumegante nas mãos.

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