09 janeiro 2017
Milton Hatoum
Companhia de Bolso
200 páginas
R$25,00
Hoje é estreia da minissérie homônima na TV
Globo. Li o livro em maio de 2016 e acho que postei a minha crítica. Entretanto,
tendo em vista o momento, republico.
O primeiro capítulo do livro é curtinho,
porém muito impactante. O autor recortou um trecho de altíssimo grau de emoção
da história e abriu o livro com ele.
Eis os dois últimos parágrafos deste
capítulo:
“Eu não a vi morrer, eu não quis vê-la
morrer. Mas alguns dias antes de sua morte, ela deitada na cama de uma clínica,
soube que ergueu a cabeça e perguntou em árabe para que só a filha e a amiga
quase centenária entendessem (e para que ela mesma não se traísse): “Meus
filhos já fizeram as pazes?”. Repetiu a pergunta com a força que lhe restava,
com a coragem que mãe aflita encontra na hora da morte”.
“Ninguém respondeu. Então o rosto quase
sem rugas de Zana desvaneceu; ela ainda virou a cabeça para o lado, à procura
da única janelinha da parede cinzenta, onde se apagava num pedaço do céu
crepuscular”.
O capítulo lança uma questão “Meus
filhos já fizeram as pazes?“ que mostra um enorme conflito e com a pergunta
atiça a curiosidade do leitor. Antes de responder sim ou não, somos provocados
à bisbilhotice, queremos saber que motivo é forte o suficiente para colocar em
lados opostos dois irmãos? Ansiamos por saber por que estão brigados.
A história se passa em Manaus de 1910 a 1968.
No período, o autor mostra a evolução da cidade enquanto inunda as páginas com
as águas do rio Negro e enreda a história de imigrantes libaneses com ramos das
seringueiras e sons dos pios de jaçanãs e jacu-ciganas.
Aos poucos somos apresentados aos irmãos
gêmeos Omar e Yaqub.
Em relação a Yaqub: “O que lhe faltava
no manejo do idioma sobrava-lhe no poder de abstrair, calcular, operar com
números”.
“E para isso”, dizia o pai orgulhoso,
“não é preciso língua, só cabeça. Yaqub tem de sobra o que falta no outro”.
O outro, o Caçula – referindo-se a Omar
– exagerava as audácias juvenis: gazeava lições de latim, subornava porteiros
sisudos do colégio dos padres e saía para a noite, fardado, transgressor dos
pés ao gogó, rondando os salões da Maloca dos Barés, do Acapulco, do Cheik
Clube, do Shangri-Lá. De madrugada, na hora do último sereno, voltava para
casa.
“Colhe a orquídea mais rara, mas também
arranca a aninga da lama”.
Apesar de narrado na primeira pessoa, durante
muito tempo ficamos sem saber quem é o narrador. “E a mim, sem me olhar, sem se
importar com a minha presença Na verdade, para Zana, a mãe dos gêmeos, eu só
existia como rastro dos filhos dela”.
No transcorrer da história descobrimos
que o narrador é filho de um dos gêmeos com a empregada índia que mora nos
fundos da casa. O narrador, desprezado pela família, quer saber quem é o pai.
Quem são os pais dos gêmeos?
Halim, marido de Zana e pai dos gêmeos
era comerciante. “Vendia coisas de qualquer um. Vendia sem prosperar muito, mas
atento à ameaça da decadência, que um dia ele me garantiu ser um abismo. Não
caiu nesse abismo, nem exigiu de si grandes feitos. O abismo mais temível
estava em casa, e este Halim não pode evitar”.
“A intimidade com os filhos, isso o
Halim nunca teve. Uma parte de sua história, a valentia de uma vida, nada disso
ele contou aos gêmeos”.
“Mas acreditava, bêbado de idealismo, no
amor excessivo, extático, com suas metáforas lunares. Um romântico tardio, um
tanto deslocado ou anacrônico, alheio às aparências poderosas que o ouro e o
roubo propiciam. Talvez pudesse ter sido poeta, um flâneur da província; não
passou de um modesto negociante possuído de fervor passional”.
E quem era a esposa Zana?
“Era possuída por uma teimosia
silenciosa, matutada, uma insistência em fogo brando; depois, armada por uma
convicção poderosa, golpeava ferinamente e decidia tudo, deixando o outro
estatelado.”
E a pergunta lançada o primeiro
capítulo?
“O duelo entre os irmãos era uma
centelha que prometia explodir”.
“Duelo? Melhor chamar de rivalidade,
alguma coisa que não deu certo ente os gêmeos ou entre nós e eles, revelou-me
Halim, mirando a seringueira centenária no quintal.”
Antes que eu, nas transcrições, revele
mais do que deveria, adianto que se trata de uma história triste, uma história
sem advertências ou opiniões de moral. É história de seduções consanguíneas. É
história de incestos, paixões e ódios.
Em vez de responder a pergunta, elaboro
outra: porque levei tanto tempo para conhecer a escrita de Milton Hatoum?
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