07 março 2017

Crônica da mitologia


— Por favor, Eustáquio. Conte-me tudo sobre o Francisco Duarte.

— Ele, o Chico, dizia trabalhar no jornal havia sete anos. Que graças ao ótimo desempenho como estagiário conseguira, logo de cara, um lugar na editoria de política. Cobrira vários ministérios: Trabalho, Transportes, Fazenda e especialmente o da Justiça. Por conhecimento jurídico passara a acompanhar o trabalho do Supremo Tribunal Federal, o que lhe rendera dois prêmios internacionais de jornalismo. Estava sendo sondado para trabalhar na Globo News.

Eustáquio, sentindo-se desconfortável, tomou um gole de água.

— Da noite para o dia puxaram-lhe o tapete. Estava arrasado. Dizia que suas matérias transformaram-se em papel higiênico. Alegava que o novo editor-chefe, o Azedo, um sujeito ranzinza, não fora com a cara dele. Dizia que o editor alucinava dizendo que ele tivera um caso com a mulher dele. Aí ele completava: — Bobagem, aquele bagulho não merecia.

— Teve um caso ou não teve?

— Nem sei se a conhecia. Eu só jogava bola com ele e tomava umas cervejas. Sei que ele reclamava que o editor fazia questão de ser chamado, apenas por ele, de doutor Azevedo. Que o perseguia sem dó nem piedade. Até mudou-lhe as atribuições. O Chico sentia-se um lixo.

— Continue, por favor.

— Não posso confirmar, mas dizia que passou a ser responsável pelo obituário, por atualizar a programação de cinema, verificar a temperatura do café e eventualmente escrever alguma matéria onde o Azedo procurava diminui-lo.

— É mesmo?

— Disse-me que anteontem, o chefe, em clima carnavalesco, ordenara que escrevesse sobre a festa em Nova Orleans. Queria uma crônica. O chefe jamais justificava, mas Chico sabia que o cronista faltara. Ficara felicíssimo. Era a oportunidade de viajar e esquecer a marcação cerrada do editor.

— Acabou aí?

— Não. Chico perguntou se pegava as passagens com dona Neide e o doutor teria respondido “Vai viajar no Google, meu camaradinha! E aí, o Chico fazendo uma cara de nojo imitou o doutor Azevedo:

— Nada de florear com as comidinhas, a arquitetura ou a música — finalizou com um sorriso sádico — ah, e antes que eu me esqueça, sabichão, quero que inclua a mitologia grega na crônica.

— O Chico, quase chorava, reclamando do assédio moral, mesmo assim falou que não daria o braço a torcer. Pesquisou loucamente. Descobriu que o sambódromo deles acontece na Avenida Clair Borne e que no Mardi Gras, ou Terça Gorda, sempre há um desfile contínuo de carros alegóricos com música altíssima. Que de cima dos carros distribuem ou jogam milhares de beads - colares de bolinhas plásticas brilhantes. Sempre verdes, amarelas ou roxas, simbolizando fé, poder e justiça. E que a graça, além da bebedeira, estava em encher o pescoço de colares coloridos. Quanto mais colares mais poder. Mas para receber colares havia uma contrapartida, as mulheres precisam levantar a blusa e mostrar os seios ao carro alegórico.


O Eustáquio levantou a camisa cinco centímetros.

— Aí, o Chico disse-me que foi interrompido com um telefonema do doutor: “A matéria deverá estar pronto até as dezoito horas se não quiser perder a cabeça”.

Eustáquio gesticulou com o indicador cortando o pescoço da esquerda para a direita.

— O meu amigo era um baita profissional. Alucinadamente pesquisou deuses e deusas: Poseidon, Zeus e Dionísio, Afrodite, Medusa e Pandora. Resolveu criar uma crônica carnavalesca silenciosa. Incendiou o teclado com fúria e entregou o texto a tempo de salvar o pescoço.

Fez uma pausa. Abaixou a cabeça.

— Não adiantou, né. Foi morto com um tiro no coração.

— O senhor, leu a crônica?

— Não por quê?

— O seu amigo escreveu que Atena era a deusa da festa. Era a que tinha mais colares.

— E daí, inspetor?

— Daí que Atena é o nome da esposa do doutor Azevedo.

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