28 abril 2017
Greve do cão
A nota do jornal dizia “Lambidas
de cachorro podem parecer carinho, mas na verdade são apenas uma forma que os
animais têm de identificar por onde o dono andou, diz a pesquisa
norte-americaana. Como são animais com muita sensibilidade a cheiros e sabores,
os cães fazem a festa, experimentando novas sensações quando seus donos voltam
da rua.”
Cronista
que sou, embaladao pelo clima de hoje, imaginei a cena abaixo:
Todos estavam tensos. Nervosos. Temiam a presença de
espiões entre eles. Ao entrarem no austero prédio foram vasculhados
minunciosamente e sequer uma pulga foi encontrada.
Civilizadamente caminharam sobre o piso de granito de Assuã
– o mesmo das pirâmidas egípcias – admirando as pinturas dos mestres Boticelli
e Donatello do renascimento florentino, para se acomodarem na mesa de jacarandá
doada por Rui Barbosa. Estava reunida em Haia, na Holanda, a cúpula dos cães
farejadores do planeta.
O artigo publicado nos jornais mundo afora encimava a pauta
da reunião extraordinária.
A mesa redonda distribui o poder de forma equilibrada entre
os presentes. O pastor alemão Lutero representa os farejadores de palavrões nos
livros escolares. O labrador golden
retriver Strongnose é o diretor de operaçãoe especias nos aeroportos da
costa oeste dos Estados Unidos. É capaz de identificar a cidade de origem de
qualquer americano pelo cheiro do chiclete. Batalão, é um premiado vira-latas
da Rocinha: localizou um torcedor do América em dia de Maracanã lotado. Talmud
é policial reformado do exército. Se aposentou antes de encontrar a paz no
terrítório israelense. O mastiff Eticus,
nascido em Roma, é especialista em fungar políticos. Em doze anos de serviço foi
capaz de localizar dois honestos.
Com o austrero cenário descrito, alguns personagens
apresentados e o microfone do tradutor simultâneo desligado para evitar
gravações, deu-se início à reunião.
Todos rosnaram simultaneamente.
– É um absurdo o que fazem conosco. Temos que dar um basta
nesta situação abusiva.
– Exigimos o máximo de oito horas de trabalhos diárias.
– Precisamos de descanso semanal.
– Chega de ração. Exigimos comida decente.
– Também temos direito à sobremesa.
– Chega de banhos em quartos de empregada. Reinvindicamos
banheiras com hidromassagem.
Apenas o sindicalista Arnoldo estava quieto no seu lugar.
No momento certo latiu mais alto, silenciou todos. O pitbull conhecido por seu temperamento agressivo e apelido de Exterminador
afirmou que precisavam de uma proposta única. Consequentemente todas as
reinvindicações foram anotadas e por unanimidade foi votada e aprovada que
iriam exigir o direito de lamber e cheirar bifes de filé mignon.
E agora sim, Arnoldo, com sua larga experiência apresentou
a grande arma secreta, o único meio de persuadir os homens a terem boa vontade.
Uma greve.
– Todos, até o cachorro do cafezinho latiram em coro:
Unidos unidos jamais seremos vencidos; unidos unidos jamais seremos vencidos.
Foi deflagrada a greve por
tempo indeterminado. A partir do dia seguinte todos os cães da face da terra
deixariam de abanar o rabo.
18 abril 2017
Quando eu morri
Quando eu morri
Levei três tiros antes mesmo do amanhecer. O primeiro, por trás, na nuca,
base do pescoço.
Uma rosa de sangue sujou meu colarinho. Procurei olhar no espelho, mas não
enxerguei nada. Eu me sentia bem, anotei o endereço peguei o carro e fui para a
casa. Desconhecidos me vestiram um pijama e pediram que eu fosse para a
varanda. Mandaram que eu me deitasse no chão. Levei os outros dois tiros. Foram
nas costas. Entre as costelas, na altura dos pulmões.
O sangue do pescoço já estava escuro e um enorme e pavoroso hematoma
assinalava a violência sofrida. Agora o sangue saía também por dois buracos do
meu pijama. O líquido, que imaginei ser quente, escorria gelado pelas costas
manchando o piso empoeirado.
A varanda era enorme, talvez uns trezentos metros quadrados. Churrasqueira,
bar. Os banheiros masculino e feminino
serviam também de apoio para a piscina e para a sauna. A varanda era o cenário
perfeito para grandes festas com políticos, jogadores de futebol, modelos e colunistas
sociais disputarem espaços e champanhes. Deduzi que a mesa espelhada fosse o
suporte para fileiras do pó da alegria. Ao lado da varanda havia um enorme
jardim assinado por um paisagista renomado. Observei que, apesar do sol já
estar no alto, as luzes do gramado permaneciam acesas.
É muito desconfortável morrer num chão duro e sob um sol escaldante.
A ambulância estacionou no meio do jardim. O carro da perícia também parou
no gramado da casa desenhando trilhas de pneus na grama japonesa. As luzes
estroboscópicas em cima da viatura anunciavam o fim da festa. Em vez de DJ, o
rádio berrava palavrões do delegado.
Os policiais e os paramédicos não deram a mínima importância. Ninguém
veio verificar meu pulso.
Minha mulher também levou três tiros e agora, ao invés da cama, dividia o
mesmo granito quente e empoeirado. Estava a um metro e meio de mim. O rosto
inchado pela bala estampada na têmpora direita a deixava pavorosamente irreconhecível.
Os olhos azuis contrastavam com o violeta da pele. Os cabelos loiros e cheirosos
estavam empapados de sangue endurecido. Mesmo estirada, ela continuava sensual
naquela camisola de seda branca maculada de púrpura brutal. Parecia lançar moda
de horror.
O nosso filho estava junto de nós, eterno egoísta, tinha sua própria poça
de sangue, resultado de três tiros no peito e um na testa. Nossa família,
sempre unida, estava agora, sujando um pequeno espaço do piso da varanda.
Ficar naquela posição defunta era muito desconfortável.
Perguntei para minha esposa se ela estava pronta para ser colocada no
saco preto e ser lacrada com um zíper. Como sempre, não respondeu.
Minha posição, deitado de lado, não permitia um bom ângulo de visão. Além
disso, não sabia onde foram parar meus óculos. No máximo, via os sapatos
daqueles que nos rodeavam. Muitos sapatos diferentes.
O sol de meio-dia esturricava nossa pele. O suor se misturou ao sangue. Estávamos
sem protetor solar.
Um moço de tênis cotelê verde providenciou três guarda-sóis. O alívio foi
imediato. Desejei que aquele moço fosse um eunuco e então providenciasse
ventinho com um enorme abano de plumas.
Apareceu uma sandália havaiana. A dona se abaixou e perguntou se eu
queria uma água de coco.
Respondi, irônico, que naquela posição só poderia tomar água de coco se
me arrumasse um canudinho. A sandália não voltou mais.
Dizem que o sangue é doce. E eu acreditei. As formigas começaram a fazer
fila indiana nas minhas costas.
Um par de sapatos pretos com solado grosso se aproximou e começou a me
fotografar. Os flashes pipocavam e minhas pupilas acusavam o incômodo.
— Puxa, quando será vão me deixar em paz? – resmunguei baixinho.
Atrás de mim ouvi um diálogo:
— São só esses três?
— Não. Tem mais um ali, na ambulância.
Eu reconheci aquelas vozes: Selton Mello e Carlos Alberto Riccelli.
Então a morte é lírica com canto de passarinhos e vozes de atores
globais. Concluo que morrer pode ser interessante.
O par de sapatos pretos com solado grosso retornou e voltou a pipocar
flashes. As vozes de Selton e Riccelli repetiram o mesmo diálogo mais umas três
vezes.
— São só esses três?
— Não. Tem mais um ali, na ambulância.
Morrer pode ser interessante, mas muito repetitivo.
Agora apareceu um sapato marrom. O dono do sapato se abaixou e com uma
fita crepe marcou no chão a minha posição. Quando os contornos estavam
assinalados ordenou:
— Preste bem atenção para retomar sua posição depois. Agora os atores vão
descansar e depois retomaremos a filmagem no mesmo ponto. E cuidado para não
melar a casa com a gelatina vermelha.
● Resultado da minúscula participação
no filme “O Federal”
● Premiado no concurso de contos de São João da Boa
Vista - 2009
04 abril 2017
Indigestão
Chamam-me
verme.
Tenho
orgulho em ser verme. Ofendido ficaria se me chamassem homem.
Sou
feliz. O destino colocou-me num sebo, no paraíso. Farto-me com livros antigos.
A minha dieta são livros saudáveis, produzidas com celulose importada. Evito os
atuais que têm gosto de petróleo plastificado.
Nessa
semana mudei de prateleira. Delicio-me com O
Cruzeiro, revista semanal ilustrada. Comecei roendo uma moça de batom
vermelho e cabelos encaracolados na altura dos ombros. Fiz um furinho no quepe
da enfermeira. A capa da revista era macia como a cútis da moça.
Em
seguida encontrei o cardápio que percorri na diagonal. Apenas o número da
página e o nome do prato ou matéria, como os homens dizem, eram insuficientes. Resolvi
mordiscar diversas páginas como se fosse rodízio de antepasto.
Desprezei
a página que informava que em 1942 os submarinos alemães torpedearam 24 navios
mercantes na costa brasileira e que 767 homens morreram.
Poupei
o bebê ensaboado com Eucalol.
Adiante
uma imagem de um homem me chocou. Deveria estar triste por causa da guerra.
Mas, não. A legenda dizia que era o desalento pelo estado de inércia
carnavalesca. Nos anos anteriores os pré-festejos se alastravam desde o centro
até à orla. por causa da guerra, deram lugar ao desânimo carnavalesco.
Eu
queria provocar o paladar. Não apenas uma escolha bonita. Por isso não dei bola
para o sabor fútil do desfile de modas no Copacabana Palace.
Sei
que a gente não deve falar de boca cheia. Fiz pior. Chorei com um desenho num
cenário de exposição. Uma senhora segura um vaso e comenta que fora feito há 75
anos. Ao lado, metido num summer
branco, o Amigo da Onça pergunta se foi ela que fez.
Depois
roí as cordas do violão do Tonico ou do Tinoco. Não me lembro! Recordo que a
dupla de sucesso era formada pelo fotógrafo Jean Mazon e pelo jornalista David
Nasser. Na imagem em preto e branco, um homem de bigodinho fino, camisa listrada
dentro das calças folgadas e de chapéu de palha, segurava um instrumento
próximo de uma fogueira. A legenda completava: “Nesta cena, os tamborins de
pele de gato sendo retesados. Os gatos do morro do Rio de Janeiro viviam
alarmados com a incessante busca.”
Evitei
mastigar a página venenosa com um homem empunhando uma bombinha Flit assassinando
baratas e mosquitos.
A
minha sobremesa foram as frutas do chapéu da Carmem Miranda. Eu preferiria que
as frutas estivessem com as cores vibrantes, tropicais, exuberantes. As frutas
estavam um pouco amareladas, como o sorriso da atriz por causa do contrato com
o estúdio que a forçava a aparecer em eventos com seus figurinos extravagantes.
Depois de tudo preciso de um licor, um
digestivo.
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