18 abril 2017
Quando eu morri
Quando eu morri
Levei três tiros antes mesmo do amanhecer. O primeiro, por trás, na nuca,
base do pescoço.
Uma rosa de sangue sujou meu colarinho. Procurei olhar no espelho, mas não
enxerguei nada. Eu me sentia bem, anotei o endereço peguei o carro e fui para a
casa. Desconhecidos me vestiram um pijama e pediram que eu fosse para a
varanda. Mandaram que eu me deitasse no chão. Levei os outros dois tiros. Foram
nas costas. Entre as costelas, na altura dos pulmões.
O sangue do pescoço já estava escuro e um enorme e pavoroso hematoma
assinalava a violência sofrida. Agora o sangue saía também por dois buracos do
meu pijama. O líquido, que imaginei ser quente, escorria gelado pelas costas
manchando o piso empoeirado.
A varanda era enorme, talvez uns trezentos metros quadrados. Churrasqueira,
bar. Os banheiros masculino e feminino
serviam também de apoio para a piscina e para a sauna. A varanda era o cenário
perfeito para grandes festas com políticos, jogadores de futebol, modelos e colunistas
sociais disputarem espaços e champanhes. Deduzi que a mesa espelhada fosse o
suporte para fileiras do pó da alegria. Ao lado da varanda havia um enorme
jardim assinado por um paisagista renomado. Observei que, apesar do sol já
estar no alto, as luzes do gramado permaneciam acesas.
É muito desconfortável morrer num chão duro e sob um sol escaldante.
A ambulância estacionou no meio do jardim. O carro da perícia também parou
no gramado da casa desenhando trilhas de pneus na grama japonesa. As luzes
estroboscópicas em cima da viatura anunciavam o fim da festa. Em vez de DJ, o
rádio berrava palavrões do delegado.
Os policiais e os paramédicos não deram a mínima importância. Ninguém
veio verificar meu pulso.
Minha mulher também levou três tiros e agora, ao invés da cama, dividia o
mesmo granito quente e empoeirado. Estava a um metro e meio de mim. O rosto
inchado pela bala estampada na têmpora direita a deixava pavorosamente irreconhecível.
Os olhos azuis contrastavam com o violeta da pele. Os cabelos loiros e cheirosos
estavam empapados de sangue endurecido. Mesmo estirada, ela continuava sensual
naquela camisola de seda branca maculada de púrpura brutal. Parecia lançar moda
de horror.
O nosso filho estava junto de nós, eterno egoísta, tinha sua própria poça
de sangue, resultado de três tiros no peito e um na testa. Nossa família,
sempre unida, estava agora, sujando um pequeno espaço do piso da varanda.
Ficar naquela posição defunta era muito desconfortável.
Perguntei para minha esposa se ela estava pronta para ser colocada no
saco preto e ser lacrada com um zíper. Como sempre, não respondeu.
Minha posição, deitado de lado, não permitia um bom ângulo de visão. Além
disso, não sabia onde foram parar meus óculos. No máximo, via os sapatos
daqueles que nos rodeavam. Muitos sapatos diferentes.
O sol de meio-dia esturricava nossa pele. O suor se misturou ao sangue. Estávamos
sem protetor solar.
Um moço de tênis cotelê verde providenciou três guarda-sóis. O alívio foi
imediato. Desejei que aquele moço fosse um eunuco e então providenciasse
ventinho com um enorme abano de plumas.
Apareceu uma sandália havaiana. A dona se abaixou e perguntou se eu
queria uma água de coco.
Respondi, irônico, que naquela posição só poderia tomar água de coco se
me arrumasse um canudinho. A sandália não voltou mais.
Dizem que o sangue é doce. E eu acreditei. As formigas começaram a fazer
fila indiana nas minhas costas.
Um par de sapatos pretos com solado grosso se aproximou e começou a me
fotografar. Os flashes pipocavam e minhas pupilas acusavam o incômodo.
— Puxa, quando será vão me deixar em paz? – resmunguei baixinho.
Atrás de mim ouvi um diálogo:
— São só esses três?
— Não. Tem mais um ali, na ambulância.
Eu reconheci aquelas vozes: Selton Mello e Carlos Alberto Riccelli.
Então a morte é lírica com canto de passarinhos e vozes de atores
globais. Concluo que morrer pode ser interessante.
O par de sapatos pretos com solado grosso retornou e voltou a pipocar
flashes. As vozes de Selton e Riccelli repetiram o mesmo diálogo mais umas três
vezes.
— São só esses três?
— Não. Tem mais um ali, na ambulância.
Morrer pode ser interessante, mas muito repetitivo.
Agora apareceu um sapato marrom. O dono do sapato se abaixou e com uma
fita crepe marcou no chão a minha posição. Quando os contornos estavam
assinalados ordenou:
— Preste bem atenção para retomar sua posição depois. Agora os atores vão
descansar e depois retomaremos a filmagem no mesmo ponto. E cuidado para não
melar a casa com a gelatina vermelha.
● Resultado da minúscula participação
no filme “O Federal”
● Premiado no concurso de contos de São João da Boa
Vista - 2009
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