19 dezembro 2017
A crista de festa
Nas minhas caminhadas
candangas encontrei objetos e pessoas improváveis: lâmpada mágica, pegada de
onça, tênis tarado, girafa barulhenta, cartomante, vendedor de mapas, velha
incendiária.
Hoje, dia chuvoso, quase
chutei uma crista de festa. Causou-me curiosidade. Parei, retornei e me
abaixei. Tomei-a em minhas mãos. Li uma palavra francesa antes de levá-la ao
nariz. O cheiro espumava festa.
Envolvo a rolha do
champanhe com as duas mãos para que saiba que percebo o seu poder secular.
Revela que propiciou
brindes de marechais de campo após vitórias nas batalhas de baionetas.
Incentivou condes a dançar valsas com plebeias. Coroou príncipes
transformando-os em reis.
Aliso-a com suavidade.
Trago-a mais perto do peito.
— O que dizes?
Com voz de uva espremida responde ser de safra
recente. Não frequentou castelos nem palacetes. Não preciso empolar a
linguagem. Vaidosa, confessa que ama ser o êxtase das comemorações.
Celebra casamento, sobe
ao alto do pódio, junto com uma vela vê casal se beijar e os une ao prazer. Abre
caminho para as bolhas explodirem sorrisos. Também inaugura fábricas, batiza
navios e crianças. Diploma advogados e médicos. Consagra conquistas, mas embriaga
quem abusa dela.
Olhei em volta. Não há
nenhuma casa ou prédio próximo. Meus conhecimentos de balística deduzem que ela
não saltou de nenhuma janela libertando alegria.
Continuo a caminhar. Ela
sussurra dizendo-se talismã que escapou de bolso desleixado.
Convicta diz que odeia
clausura. Até consegui fugir de gaiola de aço no topo da garrafa. Gosta de
festa. Jamais serão capazes recolocá-la na garrafa.
12 dezembro 2017
Babaca do Eixão
Quando se vai
criar uma história, o mais difícil é encontrar o tema, o mote ou a inspiração para
desenvolver a escrita. Depois do mote definido, a criatividade se faz presente.
Imagine você
declarar que sabe falar grego. Logo surge o pedido.
—
Que legal! Fale uma frase!
Aí, você empaca
sem saber o que dizer. Seria mais fácil se pedissem: traduza para mim.
No meio do meu
blablablá solitário fui alcançado por um sujeito barbudo que me encarou de supetão:
— Estou
seguindo o senhor há mais de cinco minutos. Ouvi o senhor didático, depois
tenro e doce. Subitamente alterou a voz para bravo. Gesticulando como se
espantasse mosquitos. Agora que se acalmou novamente, tomei a liberdade de
abordá-lo. O senhor é peripatético?
Fiquei sem
saber se também o ofendia, se saía logo no tapa ou ficava na minha para saber
qual era a do cara.
Caprichei um
olhar enfastiado.
— Você me
desconcentrou! Perdi a minha linha de raciocínio!
O cara pediu desculpas
e apressou o passo.
Irritado, o
pensamento mudou de rumo. Desliguei o gravador.
O sujeitinho nem
me conhece e me chama de pateta da periferia! De idiota da região! De palerma do
pedaço! De bobo do trecho! Falta de respeito! Ele deve ser parlamentar. Usa um
pronome de tratamento respeitoso e em seguida xinga com palavras de dicionário
sem saber o significado.
Consigo imaginá-lo
na tribuna da Câmara dos Deputados, apontando o indicador para um colega.
— Vossa
Excelência é um bordalenga apandilhado.
Fiquei indignado.
Possesso! Perdi o prazer da caminhada. Precisei de um calmante e um dicionário.
Em casa, enquanto
engolia o Lexotan, consultava o Aurélio:
“Peripatético:
discípulos de Aristóteles. Em razão do hábito do filósofo de ensinar ao ar
livre, caminhando enquanto lia e dava preleções.”
De imediato, a
tentativa de diálogo e a imagem do barbudo intrometido modificaram-se na minha
mente.
— O senhor é
peripatético?
— Peripatético
é sua mãe.
— Não.
Peripatético é o mote que o senhor precisava para escrever sua crônica.
05 dezembro 2017
Monotonia
Durante um bate-papo
com um amigo, piloto de asa-delta, em determinada hora afirmou.
— Caminhar é
monótono.
Advogando em
causa em causa própria respondi que monótono é estar a um quilômetro de altura
sem estar inserido no cenário. Vê-se tudo pequenininho. Nem com binóculos
percebe-se os detalhes que tornam a vida exuberante.
Foi com esse
pensamento que iniciei a minha caminhada dominical no Eixão – uma enorme pista
de alta velocidade que uma vez por semana ao se transformar em Eixão do Lazer recebe
caminhantes, corredores, skatistas, ciclistas e todos que se propõem a acelerar
o coração.
— Será que é
monótono observar as pessoas?
Não creio.
Tanto que, naquela manhã sem sombras, notei que muitos usavam bonés, chapéus e
viseiras. Alguns poucos com óculos escuros como se fossem estrelas hollywoodianas
fingindo se esconder.
Comecei a me
divertir ao questionar as roupas dos atletas de fim de semana. Um senhorzinho
de um metro e sessenta passou correndo por mim com camiseta e calção cor de laranja
fosforescentes como os tênis. As meias brancas iam até o joelho e nas costas saltitava
uma mochila azul celeste.

Observei e
analisei uma revoada de pessoas. Quando me perguntava qual seria o coletivo
correto para esportistas, alcancei uma senhora de porte elegante com um
acompanhante nu em pelo. As minhas luzes de alerta piscaram vermelho. Fixei bem
o olhar e não era roupa cor da pele tampouco usava tênis para se proteger do
asfalto. Estava pelado. Total e indubitavelmente nu.
Eu não estava
alucinando por excesso de sol. Nem havia sol. Em vez dos óculos escuros sem
grau, meus óculos eram os de sempre, com grau: eu via a nudez nitidamente.
Além do
estranhamento e perplexidade da ousadia, causou-me estranheza a falta de choque
ou mesmo curiosidade e comentários dos passantes. Tudo parecia normal como se o
Eixão fosse um tradicional campo de nudismo.
Ouvi o barulho
de uma moto. Era um policial montado numa Harley-Davidson. Na mesma hora
imaginei que iria prender o maluco por atentado ao pudor. Mas não, nem
advertência nem olhar. Para novo espanto, passou reto como se nada houvera.
Pensei que Brasília,
afinal, tornara-se uma cidade cosmopolita como Londres ou Nova Iorque onde
cidadãos de cabelos lilás com corte moicano passam despercebidos na multidão.
— Como sou
tolo! Não é nada disso. Certamente é o inverso da história da “Roupa nova do
rei” de Andersen. Lá todos elogiavam a magnífica roupa real de sedas e veludos.
Apenas um meninote se atreveu a gritar “o rei está nu”. Aqui é o oposto. Todos
estamos pelados e apenas eu que enxergo roupas nas pessoas.
Olho novamente
para a dupla.
Mesmo de
costas para mim, eu enxergava o porte elegante e vestido da moça enquanto o
companheiro balançava a genitália desavergonhada entre as pernas. Um horror!
Apressei o
passo para encarar e desaprovar a figura atrevida.
Ele respondeu com um latido nada monótono.
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