Credenciar é habilitar o personagem
antes do conflito em que alguma
característica seja importante.
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28 fevereiro 2017
Credenciamento
Capítulo do Manual do escritor
2.7 Credenciamento
Significa
dar créditos, valores ou poderes ao personagem para que suas ações sejam
coerentes com as consequências.
Por
exemplo, se ele for policial e acertar um tiro improvável, é necessário
informar ao leitor que ele treina tiro sistematicamente ou que é sortudo por
natureza. Outro exemplo: para o chefe explodir de raiva no departamento deve
ser mostrado em cena anterior que ele se descontrola facilmente.
O
credenciamento pode ser sutil como a descrição de um cenário.
Se
desejamos mostrar o sonho de um jovem romântico em conhecer a Áustria, podemos
qualificá-lo ao penduramos um pôster amarelado retratando um castelo no topo da
montanha. O amarelado indicará o desejo antigo.
Credencie
com recortes da vida do personagem.
Mostre o jovem alugando filmes que se passam
na Áustria. Revele quanto deposita na caderneta de poupança. Conte como estuda
o mapa austríaco ao som de valsas.
O
credenciamento é diferente da caracterização.
Na
caracterização se apresentam informações sobre as personagens como aparência,
idade, gênero, profissão, posição social, motivações. Esses elementos permitem
melhor concepção e desenvolvimento, tornando-os mais realistas e complexos.
Entre
os jovens está na moda criar mangás, histórias em quadrinhos de origem
japonesa. Neles, o poder elemental é um clássico absoluto. É gerado a partir
dos elementos como água, fogo, terra, ar e derivados como a luz, a treva, a
eletricidade, o gelo. A partir dessas forças, o herói ou o vilão – devidamente
credenciado – poderá emanar rajadas de energia extremamente poderosas.
Observe
um credenciamento:
O capote – Nicolau Gógol – conto
No departamento ninguém lhe prestava o menor respeito. Os
guardas, além de não se levantarem quando ele passava, nem chegavam a lhe
dirigir o olhar, como se fosse uma simples mosca que voava pela sala de
recepção. Os superiores o tratavam com uma frieza despótica. Qualquer
subchefezinho da repartição colocava-lhe a papelada sob o nariz sem sequer
dar-se ao luxo de dizer: "Copie", ou “Eis um trabalhinho
interessante, bom" ou algo agradável, como se faz entre funcionários bem
educados. E ele ia recebendo, olhando apenas o papel, sem procurar ver quem lhe
entregara e se tinha obrigação de fazê-lo. Recebia e no mesmo instante começava
a escrever. Os funcionários jovens zombavam e gracejavam dele o quanto permitia
o humor de chancelaria, contavam mesmo em sua presença toda sorte de histórias
que envolviam a sua pessoa: a sua senhoria, uma velha de setenta anos; diziam
que a velha lhe batia, perguntavam quando os dois iam casar-se, faziam-lhe
chover sobre a cabeça bolinhas de papel e diziam que era neve. Mas Akaki Akakiévitch
não respondia uma palavra, como se não houvesse ninguém diante dele: em meio a
todas essas amolações não cometia um só erro no seu trabalho. Só mesmo quando a
brincadeira passava do limite, quando alguém lhe empurrava o braço,
perturbando-o no trabalho, é que ele falava: "Deixem-me em paz. Por que me
magoam?"
Akaki
Akakiévitch é um subordinado, submisso, alvo de zombaria, desrespeitado, pessoa
de rotina e sem ambição. Tipicamente um personagem plano. Para ressaltar a
qualidade imutável, empregou mesmo
três vezes num único parágrafo.
Casamento em crise – Roberto Klotz – conto
Ela, Ana Maria, se diz dona-de-casa, mas os
invejosos chamam de dondoca. Diariamente dorme até às nove horas para depois
cuidar do corpo. Joga tênis duas vezes por semana e faz musculação na academia
nos outros três dias. À tarde tem uma rotina árdua. Às segundas vai ao
supermercado, às terças e quintas joga pife, às quartas tem aula de pintura e
às sextas-feiras vai à massagista antes do cabeleireiro. Aos sábados, enquanto
o marido joga golfe, visita lojas de moda e calçados. Desde pequena foi acostumada
ao conforto pelo pai, dono da transportadora.
Contrariando
a fala da protagonista, confirmou-se a maledicência mostrando o dia a dia dela.
Também credenciamos cenários e
objetos. Um
vale entre as montanhas pode ser fértil e propício para a vida ou pode ser um
lugar sombrio que engole exploradores. Uma corda pode enforcar ou içar baldes
d’água de um poço para salvar vidas.
Personagens,
cenários, objetos, tudo pode ser credenciado para melhor desempenho da função
na história
20 fevereiro 2017
Encontro com o autor
ROBERTO KLOTZ
Ele vai falar de seu processo de criação, estilo e
influências.
Conquistou mais de 30 prêmios literários,
foi jurado de vários concursos literários e promove oficinas literárias.
Publicou contos e crônicas em Pepino e Farofa, Quase pisei! e Cara
de crachá. Divertiu crianças com os infantis A bruxinha que queria
ser fada e o Monstro na caixa azul. Mostrou o trabalho de
oficineiro em Manual do escritor.
O autor
convidado vai falar sobre sua obra, influências e interesses. Haverá a
interpretação de textos curtos. Depois a plateia poderá dirigir perguntas ao
autor. Após o evento será servido um breve lanche, quando os convidados poderão
interagir diretamente com o autor.
23 de
fevereiro de 2017, quinta-feira, às 17h.
Salão de
Leitura da Biblioteca da Câmara dos Deputados - Anexo II
Informações:
3215-8093
Entrada
franca
Promoção do
Centro Cultural da Câmara dos Deputados e
Centro de Documentação
e Informação
Confirme sua
presença em nucleodeliteratura@camara.leg.br
14 fevereiro 2017
Operação Valquíria
Em 2007, escrevi como teria sido o dia do oficial alemão na véspera do
famoso atentado em que ele colocou uma bomba aos pés do Führer no maior
atentado contra o ditador.
Em 2009, nos cinemas de todo o mundo Tom Cruise interpreta Claus Schenk
von Stauffenberg, oficial alemão em Operação Valquíria.
Operação Valquíria
Era a noite do dia 19 de julho de 1944. Em Berlim, no
seu alojamento solitário, o coronel alemão Claus Schenk von Stauffenberg
repassava informações e o plano para colocar uma bomba no bunker de Adolph
Hitler no dia seguinte.
Von Stauffenberg caminhava nervosamente de um canto ao
outro do quarto e revivia a angústia da reunião de dissidentes do alto comando ocorrida há vinte dias. Naquela
tarde ficara claro para todos os oficiais que a partir da invasão da Normandia,
o Dia D, a guerra estava perdida. Seria apenas uma questão de tempo para que a
Alemanha fosse arrasada e humilhada. Os aliados, entre si, acertaram, no
tratado de Teerã, que só interessava a rendição incondicional da Alemanha
nazista. Desta forma não havia nenhuma possibilidade de acordo de paz em separado. Mas , para
evitar que a Alemanha fosse invadida e subjugada pelos bárbaros russos, seria
necessário um pacto com os americanos e ingleses. A solução seria a eliminação
do Führer e a neutralização da poderosa SS. O grupo resolveu se opor justamente
ao lema da SS – Schutzstaff –
“Minha honra é a lealdade”.
Von Staffenberg pegara sua caderneta e relera as palavras do General Lu dwig
Beck "A obediência de um soldado encontra seus limites onde seu
conhecimento, sua consciência e sua responsabilidade proíbem-no de
obedecer ordens.". O coronel alemão sabia que estas palavras, se lidas por
alguém da SS, significariam a própria morte. Deu um sorriso de leve e
questionou qual seria a sua condenação após o atentado. Considerou que não
precisava se preocupar com anotações e concentrou pensamentos na ação.
A decisão está tomada. Amanhã,
bem cedo, pego o avião e pouso por volta das dez horas em Rastenburg. O
motorista estará me esperando para percorrer os seis quilômetros de poeira até
a Toca do Lobo.
A reunião do alto comando está
prevista para meio-dia. Às onze e meia faço um lanche rápido junto com meu
ajudante de ordens, tenente von Häften,
confirmo o horário da reunião, peço licença para trocar a camisa empoeirada com
a ajuda de von Häften. Todos sabem que preciso de ajuda desde que perdi meu
braço direito e ainda dois dedos da mão esquerda. Von Häften engatilhará as duas
bombas quebrando a cápsula de ácido que dissolve o fio que retém a bomba. O
petardo explodirá ente dez e vinte minutos depois. Terei apenas cinco minutos
para posicionar a valise sob a mesa e sair. Não há como desarmá-las. Estarei na
sala de reuniões e von Häften me chamará para atender um telefonema urgente.
Sairemos juntos, passaremos pelo alojamento e pegaremos o carro para ir até a
pista de Wilhelmsdorf, de onde voarei para Berlim para ir ao Ministério da
Guerra participar do levante contra o governo. Estará realizada a operação
Valquíria (3).
Não foi do dia para a noite
que mudei de opinião.
Eu me lembro bem, embora já
tenham passado dois anos, quando eu estava com Rommel no norte da África.
Eu pouco conhecia o glorioso marechal-de-campo Erwin
Rommel, a Raposa do Deserto. Ouvíamos as últimas notícias vindas da Alemanha.
“Hoje a polícia prendeu o judeu Davi Stern que convidou crianças a lamber
chocolate numa chapa de ferro congelada. As crianças foram atraídas pelo doce e
numa armadilha infernal ficaram grudadas pela língua molhada. Essas três
inocentes crianças foram mutiladas gratuitamente por um ser desprezível que
gargalhava de prazer ao ouvir os gritos do desespero infantil.”
— Schweinehund! – porco imundo – berrou Rommel
desligando o rádio. — Maldito Heydrich! É insuportável esta maldita e mentirosa
propaganda anti-semita. Este cachorro safado vive criando falsas histórias para
colocar os alemães e o mundo contra os judeus.
Fiquei nervoso e balancei a cabeça negativamente, Rommel em vez de ficar
chocado com a crueldade do judeu, xingara o número dois da SS. Rommel, um homem
frio e calculista, externara sua opinião para mim, um quase desconhecido, e,
percebendo meus olhos arregalados, resolveu argumentar para fundamentar sua
opinião.
— Sabe Claus, eu acreditei e lutei pela nossa Alemanha durante todo este
tempo até que descobri que Goebbels, nosso ilustre ministro da propaganda, que
vive alardeando grandes vitórias e conquistas, é um grande mentiroso. Minhas
vitórias no deserto, de acordo com a língua de Goebbels, foram estrondosas,
foram épicas! Passei a ser um herói imbatível e um orgulho para a raça ariana,
quando na verdade também tivemos perdas valorosas. Eu dispunha apenas de
equipamento melhor, e, modéstia à parte, um pouco de esperteza. Goebbels
exaltava os alemães enquanto a verdadeira função de Heydrich, no serviço
secreto, era criar boatos para desestabilizar os inimigos e fazer o mundo
acreditar que os judeus eram o demônio na face da terra.
— Mas está provado cientificamente, meu comandante, que somos uma raça
superior...
— Haha! Os cientistas foram contratados pelo Führer. Você ainda se lembra
da Noite dos Cristais?
— Como alguém pode se esquecer daquele inverno de 38?
— Aposto que você ficou chocado quando aquele moleque judeu assassinou
com requintes de crueldade nosso diplomata, não é mesmo?
— Eu e toda a Alemanha.
— O judeu nunca existiu. Foi a SS que eliminou o idiota incompetente
metido a diplomata, botou a culpa no judeu, depois colocou um monte de
militares à paisana para empurrar a população incentivada pelo rádio. O
resultado foi uma centena de judeus mortos, dúzias de sinagogas queimadas e a
depredação do comércio judeu em toda Alemanha. — Rommel exibiu um sorriso irônico
e continuou — O vidro quebrado das vitrines serviu apenas para criar um nome
poético: Noite dos Cristais. — Das war
der Anfang, mein Freund. — este foi o começo, meu amigo.
— Eu estou pasmo, meu marechal. Mas como o senhor me explica aquele
discurso do Goebbels no ano passado, lá no Palácio dos Esportes? Goebbels
perguntou para o povo se queriam a guerra total e catorze mil vozes animadas
disseram sim e depois repetiram que sim.
— Mentiras! O discurso foi uma encenação gravada para
transmissão por rádio e para os cinemas. Depois da derrota em Stalingrado, a
intenção era entusiasmar os ouvintes e principalmente recuperar o moral dos
soldados nas frentes de batalha, por isso, Goebbels referiu-se ao apoio da
platéia presente, com uma centena de vaquinhas amestradas infiltradas –
ressaltou – como sendo uma amostra da sociedade em seu todo. Todos ficaram
empolgados por conta de uma farsa, de uma mentira. Todos mentem, todos mentem.
O discurso foi gravado durante a semana e no estádio só houve encenação,
teatro. – Alle lügen – Todos mentem.
Naquele
fim de tarde meus olhos foram arregaçados para alguma coisa que eu já enxergara
e em que não ousara crer. Em pouco tempo descobri que havia outros oficiais
descontentes com a condução do governo da nossa Alemanha.
Jamais passou
pela minha cabeça o assassinato do Führer. Jamais passou pela minha cabeça que
eu seria o assassino do Führer. No mundo ninguém tem noção do que está
acontecendo, nem os alemães, nem os nossos inimigos. A solução deve vir por
aqueles que sabem. Pelos meus filhos e pelo futuro da Alemanha, estamos certos.
Farei o que deve ser feito.
Olhei par o
relógio.
Já são quase
dez horas da noite, toda a Alemanha canta junto com Marlene Dietrich a bela
canção Lili Marlene antes do
encerramento das transmissões radiofônicas.
Von
Stauffenberg abre sua caderneta e com um lápis anota:
“Fizemos o exame de consciência diante de Deus e a ação
deve se realizar, pois este homem é a encarnação do mal. Queremos uma nova
ordem, que faça todos os alemães portadores do Estado e que lhes garanta
Direito e Justiça. Se tiver sucesso, serei considerado traidor de minha pátria;
se falhar, me considerarei traidor de minha própria consciência.”
As luzes do quartel são apagadas.
1 - A Schutzstaffel – escudo de
proteção – ou SS, foi uma organização paramilitar ligada ao partido nazista.
2 - Toca do Lobo – Wolfschanze –
o QG de Hitler em Rastenburg, na Prússia Oriental.
3 - Valquíria, é o título da ópera de Richard
Wagner – segunda parte da tetralogia “O Anel do Nibelungo”.
A reunião foi transferida na última hora do bunker para um barraco de madeira. O bunker por ser de concreto armado teria os efeitos da bomba multiplicados.
A reunião também foi antecipada em meia hora assim, o mutilado von Stauffenberg conseguiu ativar apenas um dos dois explosivos previstos.
A bomba colocada sob a mesa, a meio metro de Hitler, foi afastada por um general que ficou incomodado com a presença da maleta.
A explosão matou quatro e feriu outras onze pessoas, mas não foi o suficiente para matar o ditador.
Von Stauffenberg foi preso e executado no dia seguinte.
Hitler ordenou vingança implacável a Himmler, chefe da SS. Consequentemente foram mortos quase 5.000 pessoas.
O herói Rommel foi convidado a se suicidar
08 fevereiro 2017
Quarto de despejo
Carolina Maria deJesus
Editora Ática
R$ 45,00
198 páginas
O Quarto de despejo é uma edição das anotações
diárias de uma moradora da extinta favela do Canindé, à beira do rio Tietê, no
centro de São Paulo. Escrito na segunda metade dos anos 1950. É de uma
realidade contundente.
Numa época em
que os autores brasileiros dificilmente conseguiam edições maiores que dois,
três mil exemplares, Carolina Maria de Jesus superou barreiras. Após o
lançamento, seguiram-se três edições, com um total de 100 mil exemplares
vendidos, tradução para 13 idiomas e vendas em mais de 40 países.
— Por que
alguém deve ler Quarto de despejo?
— Poderia ser
uma homenagem pelos 40 anos da morte da autora (13 de fevereiro de 1977), mas
prefiro dizer que é informação. Aqui você vai saber, pela voz de uma favelada o
que é fome. Que os miseráveis brigam, se matam e fazem sexo como animais. Que quando
falta o respeito a si mesmo não pode haver respeito ao próximo. Carolina Maria
de Jesus se respeitava e respeitava o próximo.
A autora era
negra, favelada, mulher, miserável, três vezes mãe solteira, mas guerreira e de
coração generoso.
O livro não
tem história. Não tem enredo. Não tem começo dramático, não tem final feliz.
Nem final tem. É um relato do cotidiano. É um diário. É um manual de
sobrevivência no meio do lixo. É um depoimento-denúncia isento de ódio.
— Mas porque
afinal fez tanto sucesso?
— É que naquele
meio são raros os que sabem ler e escrever. Mais raros ainda os que apesar destas
qualidades, têm garra, permanecem sóbrios, usam o papel e a caneta para acusar
sem ódio, sobrevivem e conseguem, a despeito de tudo, ainda ter lampejos
poéticos, persistência e sorte de ser publicados. Tudo o que se lê à respeito
da favela é escrito pelo olhar de quem come três vezes ao dia.
Se você pensa
que a sua vida é ruim. Você não sabe de nada.
A personagem
principal é a fome e a cada cinco páginas há ao menos uma morte, por fome,
doença, aborto ou assassinato.
O primeiro
relato é de 15 de julho de 1955, dia do aniversário da filha. Em vez de bolo,
velinhas e balões, a menina ganhou um par de sapatos achados no lixo, lavados e
remendados pela mãe e autora.
Em 19 de julho
anota que não conseguiu armazenar para viver. Resolveu armazenar paciência. E
adiante, após relatar uma queixa da vizinha diz “Os meus filhos estão
defendendo-me. Vocês são incultas, não podem compreender. Vou escrever um livro
referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me
fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me
fornece os argumentos”.
Em 22 de julho
Diz que é muito alegre. “Todas manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam
apenas ao amanhecer”.
Em 10 de maio,
depois de citar políticos opina que “O Brasil precisa ser dirigido por uma
pessoa que já passou fome. A fome também é professora.”
No dia 15 de
maio encontra a poesia: “O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica
gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.”
Em 27 de maio:
“Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a
comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves
tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.”
Em 16 de
junho: “Eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o
cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de
preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento
na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações,
eu quero voltar sempre preta.”
Em 6 de julho,
em relação à catação de papel: “Parece que eu vim ao mundo predestinada a
catar. Só não cato a felicidade.”
No dia 8 de
julho anotou que o filho (de uns nove anos) fora acusado de molestar uma menina
de dois anos. E que iriam denunciá-lo ao juizado de menores. Ela mesmo tomou a
iniciativa de ir ao Juizado para interná-lo “porque agora tudo que aparecer de
mal vão dizer que foi ele.”
No mesmo dia
anota que o doutor do juizado “disse-me que se os meus filhos fossem para o
Abrigo que ia sair ladrões. Fiquei horrorizada ouvindo um Juiz dizer isto.”
Em 16 de
agosto: “O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.”
No dia 18 de
julho do ano seguinte reflete: “Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer.”
É lógico que selecionei
o lado poético.
Para nós, moradores de casa de alvenaria, a
pobreza, a fome, a morte são invisíveis como os miseráveis.
07 fevereiro 2017
Casa dos espíritos
Minha vida estava sem sentido. A empregada
roubou meu cedê do Raul Seixas. O cachorro roeu minha máquina fotográfica. Fiquei
preso no elevador durante cinco horas. Com o síndico. Embriagado! Minha
namorada engordou 32 quilos e antes que eu acabasse o relacionamento me
abandonou. Sumiu!
Tentei de tudo; alho, sal grosso, pé de pato mangalô três vezes, arruda e guiné para espantar o mau
olhado.

Por
morar em apartamento, a instalei no hall dos elevadores do meu andar. Procurando
seguir as tradições e o manual de instruções, promovi uma festa de boas vindas.
Recheei o telhadinho com uma foto da Juliana Paes, uma nota de dez Euros e um pedaço
de frango à passarinho com muito alho. O DJ mandou ver um pagode legal. Foi uma
festa para ninguém botar defeito.
No dia seguinte a filha da zelador brincou de casinha no hall. O
dinheiro sumiu, a foto estava rasgada. Sobrou apenas uma barbie impregnada com
o cheiro do alho.
Mesmo
assim, depois de uma semana a minha namorada retornou. Estava linda. Voltou de
um spa parecendo top model. Magra, cabelos de salão, roupa mostrando todas as
curvas. O problema é que entrou na porta vizinha.
03 fevereiro 2017
BBB
Esse negócio de fazer
merchandising é muito sério.
No final da noite de autógrafos
do lançamento do Manual do escritor, peguei a caixa para guardar os cinco
livros que sobraram, aí, apareceu um jornalista querido, todo esbaforido,
perguntando se eu ainda poderia autografar um livro para ele. Fizemos um escambo duplo: trocamos
dedicatórias, recebi o livro Terminal, de poesia, e em troca ofereci o Manual do
Escritor.
Será que ele, Rômulo Neves, vai
falar do livro no Big Brother? Será que ele vai dizer que seu próximo livro
será um romance com dicas extraídas do Manual do escritor?
Enquanto o merchan global não é
definido, modestamente vou aqui propagandeando a gráfica Teixeira que publicou
três livros meus.
02 fevereiro 2017
ODE AO CIGARRO
Este longo texto, para mim, tem um significado muito especial.
Sempre fumei de forma alucinada e, tal qual todos fumantes, precisava parar.
Nunca mais fumar era um compromisso muito forte. Parei numa espécie de acordo
pessoal: ficaria sem fumar durante um ano. Ao se aproximar o vencimento do
contrato fiquei paranoico. Eu estava louco de desejo para fumar, entretanto
seria irracional voltar. Numa catarse escrevi “Ode ao Cigarro”. Ao chegar a
data renovei o contrato por mais um ano. Hoje, exatos quinze anos depois, dia
02 de fevereiro de 2017, renovo meu contrato por mais um ano.
Dediquei ao Dr
Dráuzio Varella que o divulgou no site durante dois anos.
De brinde, este
texto despertou o prazer da escrita: foi meu primeiro texto no mundo das
letras.
ODE AO CIGARRO
Alguns anos atrás li um artigo da
Cláudia Raia em que ela fez uma verdadeira apologia ao cigarro. Jamais fui fã
de la Raia. Mas
aquelas palavras... – Ah... como gostaria que
tivessem sido minhas. Era exatamente o que eu gostaria de ter dito: – Pô,
deixem-me fumar, ora bolas!
Não guardei o texto, mas me lembro
de que era contra aqueles caras inoportunos que se incomodavam com nossa fumaça
nos restaurantes ou filas. Até na casa da gente vêm esses xiitas incomodar.
Acordar no meio da noite... Fumar
um cigarrinho e voltar a dormir. Só quem é profissional sabe como isso é
gostoso.
Acordar cedo e, antes mesmo do
cafezinho, dar aquela tragadinha é indispensável.
Eu só sei falar ao telefone com
um cigarro aceso. O cigarro me dá segurança. Além da segurança, ele me dá tempo
de escolher melhor as palavras entre um trago e outro. As palavras estão
difíceis? Acendo outro cigarro e, com charme, tenho a resposta pronta.
Paquerar com um cigarro é ótimo.
A mão fica ocupada e a gente esconde a timidez atrás da fumaça. Na euforia, eu
celebro fumando. Na tristeza, eu choro fumando. Sono? O cigarro me desperta.
Tesão? O cigarro me deixa ainda mais ligado. Hoje estou nervoso, preciso de um
tragada profunda. Almocei uma feijoada, ora, que delícia! (Tô falando do
cigarro, logo após, e mais um após o café). Cara, é muito bom! Jogar pôquer sem
cigarro, nem pensar. Temos de esvaziar o cinzeiro que começa a transbordar pela
segunda vez. Eu me lembro, uma vez eu fui à casa de uma menina e estava
literalmente apaixonado. Acendi meu cigarro adolescente. Ela reparou que eram
três os cigarros simultâneos. Ah, meu Deus do céu, que mancada!
Quantas recordações! Sou
profissional desde os 15 anos, e olha que já estou com quase 51.
Todos nós fumávamos. O incomodado
que se mudasse. Os tempos mudaram. Muitos amigos traíram e largaram o cigarro.
Mais de uma vez fumei em lugares proibidos, ostensivamente. Marcando
território. Igual a cachorro mijando em poste.
A cigarrilha era mais charmosa
ainda, era cara e a tragada era pesada. Não agüentei e voltei ao meu cigarro.
Estou falando de cigarro, jamais usei o tal do baseado, nada contra, mas minha
praia é outra. Sempre tive pavor de ficar viciado. Sempre gostei de tomar um
chope. Jamais me viciaria em bebidas. Cachimbo : caramba, que charme! Fumei um
período. Mas tinha muitas desvantagens. As pessoas reclamavam que produzia
muita fumaça forte, o seu trago, quando chegava aos pulmões, não era muito bem
recebido. O cachimbo tem de esfriar. Tem de ser limpo. Quanta pantomina! Quero
fumar logo!
Uma coisa eu sempre detestei:
fumar na frente do espelho, dar uma tragada profunda e ver que a cor da fumaça
que desce é diferente da cor da fumaça que volta. Sempre acreditei que o filtro
do cigarro retivesse as coisas ruins. É pra isso que serve o filtro.
Em outras épocas, acendia um
cigarro no filtro do anterior.
O
trabalho estressante. Um telefonema. Um chope. Uma transa. Uma fossa. Uma
alegria. Um funeral. Outro telefonema. Uma negociação. Um passeio de carro. Uma
conversa. Nenhuma conversa. Cigarro, companheiro de todas horas.
Cigarro tem de ser aceso com
isqueiro a gás. A tragada com gosto de fósforo é muito ruim.
Eu me lembro de um isqueiro
Ronson dourado que meu pai me deu. Aquilo é que era isqueiro. Era o Rolls-Royce
dos isqueiros. Dei para o meu irmão, que sempre desejou um isqueiro igual
àquele, que, por outro lado tinha de ser recarregado de vez em quando e às vezes
falhava. Isso me irritava profundamente. Nunca vou me esquecer do meu pai
dando-me aquela maravilha. A cena foi funesta. Mas o isqueiro! Meu pai havia
sofrido um enfarte e, na condução da maca, no hospital, deu-me aquela pequena
jóia, com uma lágrima no olho. Ele ficou bom, nunca mais fumou, e também não se
importava quando as pessoas fumavam.
Você fuma? Tem uma coisa que me
incomoda no cigarro. Soltar a fumaça dos pulmões de encontro a um guardanapo de
papel colado nos lábios. Puxa, que coisa mais asquerosa! O papel fica mais sujo
que o filtro. Sempre acreditei que o filtro do cigarro retivesse as coisas
ruins. É pra isso que serve o filtro.
Eu jamais deixo as pontas se
acumularem no cinzeiro; além de ser antiestético, fede.
Escrever, ler, descansar,
prosear, cagar, pensar, concentrar, diga qualquer verbo: o cigarro sempre é
companheiro.
Com meus vinte e poucos anos,
peguei uma hepatite B e praticamente fui desenganado pelo médico. Eu odeio
médicos. Só vou em último caso. Eu já havia desmaiado duas vezes. Não precisei
de exames: hepatite. Entre outras proibições, veio a do cigarro. Médicos sempre
são contra. Fiquei de cama 75 longos e intermináveis dias. Lá pelo sexagésimo
dia, na fossa, fumei escondido, às 4 da manhã. Não desceu fácil. O segundo desceu
redondo. Companheirão.
No dia seguinte, estava em forma. Vinte
cigarros, um maço. Profissional é assim. Não, não sou compulsivo, sou
profissional.
Como se chama mesmo aquela doença
em que as pessoas não conseguem respirar? Eu ouvi falar pela primeira vez por
um chefe de trabalho. Nossa, ele fumava demais, e tinha medo dessa tal doença,
pois o pai dele havia morrido e ele presenciou o sofrimento do pai. Anos mais
tarde o grande Ney faleceu com a mesma doença. A hereditariedade é fatídica.
Sempre adorei a água, e sempre
fiz demonstrações de como meu fôlego é bom. Nos áureos tempos ficava dois
minutos sem respirar. Estou meio fora de forma, mas acho que ainda consigo
ficar um minuto nos dias de hoje. Apesar de profissional.
Sou capaz de escrever um livro: Meu
Amigo: O Cigarro. Quantos momentos!
Quando minha mulher engravidou,
teve uma grandeza enorme. Parou de fumar. Temporariamente. Na segunda gravidez,
a mesma firmeza de caráter. Temporariamente parou. E lá se vão 19 anos. Pela
primeira vez fiz algum esforço para parar.
Uma vez, meu irmão mais velho me
perguntou quantos cigarros eu fumava por dia. Quanto custava o maço. Como bom
engenheiro, fez as contas e castigou: “Com o dinheiro do cigarro, você já
poderia ter comprado um carro zero”. Vai se danar! Cadê o seu carro zero? Você
nunca fumou. Pois é, 16 anos de cigarro dão para comprar um carro novo. Já
entrei no meu terceiro carro.
Você sabe o que é paixão? É amor
desenfreado, irracional, ilógico.
Pois o que sinto pelo cigarro é
paixão.
Compulsão... Um atrás do outro e
quero mais.
Ilógico... Já fizemos as contas
da grana que vai embora.
Irracional e irresponsável...
Todo fumante sabe dos malefícios, não vou nem tentar relacionar. Odeio os
médicos.
É por isso que fumo: PAIXÃO.
Sabe, tentei parar diversas vezes,
diminuí inúmeras vezes. Mas a paixão é avassaladora, te devora e te leva para
os prazeres do cigarro.
Foram tantas as tentativas! Foram
tantas as derrotas! Meu Deus, como é gostoso fumar!
O pai do meu melhor amigo também
foi fumante profissional. Ele já não conseguia respirar, por causa de um tal de
enfisema (só de me lembrar dessa maldita palavra já deu vontade de tossir). Ele
fumava escondido da esposa e dos filhos. Eu o visitei no seu último dia de
vida. O Gus é de longe meu amigo mais querido. Mas muito chato, sempre foi um
antitabagista militante. Muitas vezes fumei na casa dele. E ele sempre
reclamou.
Chato mesmo foi a transformação
da sociedade.
Repartições públicas, shopping
centers, restaurantes, aviões, alguns hotéis, banheiros (até banheiros); elevadores, tudo bem; cinema e ônibus urbano nunca
pôde. Escola pode. Criança também aprendeu a reclamar. Onde já se viu pirralho
mandando contra cigarro de adulto? Os tempos mudaram.
Minha mulher deixou de fumar. Os
filhos, incomodados, assumiram postura xiita intransigente, contra o cigarro,
naturalmente. Naturalmente era fumar. Era.
Tentei parar outra dúzia de
vezes. Uma vez eu me lembro de ter perguntado desesperadamente: o que um não
fumante faz com as mãos?
De outra vez, fui diminuindo até
o dia do embarque de nossa viagem internacional em família. Na hora do
embarque, faltou o tal do último cigarro que eu pretendia filar no aeroporto.
Maravilha! Passei oito, oito, repito oito meses sem fumar.
Numa roda de chope senti as
pessoas fumarem deliciosamente seus cigarros e fumei um. Deu trabalho. O
segundo e o terceiro desceram maravilhosamente bem.
Passei outros períodos menores
sem fumar. Uma vez 10 dias, de outra vez 20 dias.
Eu me sinto traído pela minha
família brasiliense, nós éramos seis fumantes. Só eu continuo. Meu irmão,
paulistano, também profissional, já não tem o isqueiro dourado e nunca saiu
desesperado para comprar cigarros pela noite afora. Bons profissionais:
compramos de pacote.
Minha voz estava muito rouca. Ela
vinha piorando muito. Até a poeira no meu trabalho me incomodava. Ninguém mais
me ouvia. O médico disse que teria de fazer uma cirurgia, para tirar o calo das
cordas vocais. Decretou: você tem de parar de fumar! Odeio médicos. Nos 15 dias
que antecederam a cirurgia eu não fumei. Era páscoa de 2001. Aproveitei para
fazer uma cirurgia que diminuísse o meu ronco. A cicatrização foi dolorosa e
sem cigarros. O drama foi abrir o envelope com o resultado da biópsia. Câncer?
Levei um dia para abrir o maldito envelope.
Negativo. Eu sabia, meu
companheiro não iria me trair.
Eu deveria retornar depois de
seis meses para nova laringoscopia. Sem fumar.
Jamais retornei ao médico,
somente ao cigarro.
Já tentei diversas formas.
Combinação das diversas formas. Acho que existem tantas formas quantos existem
de regimes para emagrecer.
Pouco importa. Juntei tudo,
analisei minhas fraquezas e derrotas e marquei mais uma data. Sábado. Descobri
depois que a data era cabalística ou metafísica: 02.02.2002.
Algumas coisas foram diferentes
desta vez. Eu estava decidido a mudar muitas coisas na minha vida. Um livro me
ajudou a ter auto-estima e trabalhar com metas.
Parei, fiz exercícios, não
engordei, não substituí por comida, tomei muita água, comi muita cenoura.
Sou profissional. Já faz um ano
que estou sem fumar. Mas continuo profissional. Muitas vezes já estive prestes
a comprar um maço vermelho e branco. Aspirei a fumaça de vizinhos. Não me
tornei xiita. Não senti melhora no meu fôlego, nem no meu bem-estar. O dentista
já fez uma limpeza nos meus dentes. Tá bom, eu confesso, o meu olfato melhorou.
Sempre tive medo do vício. Sou
profissional. Passei o pior ano da minha vida. Com pressões que não desejo ao
meu pior inimigo. Separação, depressão, desemprego, solidão, vontade de ir ao
Inferno, ansiedade, venda de casa própria. Mas não fumei.
Os artigos em que descrevem que
as fábricas de cigarro escondem uma química viciante na fumaça dos cigarros me
deu uma força enorme ao descobrir que não sou fraco. Minha luta é solitária
contra uma poderosa e milionária máquina.
Nesse período de ausência de
cigarro, teve um médico – odiosos médicos! – Dráuzio Varella, que me deu uma
ajuda, ao mostrar que eu era do tipo especial: profissional, e por isso a minha
luta seria inglória. Não sou profissional, o meu primeiro cigarro será o retorno
ao vício. Sou um viciado.
ODE AO
CIGARRO. Ou seria ÓDIO AO CIGARRO?
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