08 fevereiro 2017

Quarto de despejo



Quarto de despejo

Carolina Maria deJesus
Editora Ática
R$ 45,00

198 páginas




O Quarto de despejo é uma edição das anotações diárias de uma moradora da extinta favela do Canindé, à beira do rio Tietê, no centro de São Paulo. Escrito na segunda metade dos anos 1950. É de uma realidade contundente.
Numa época em que os autores brasileiros dificilmente conseguiam edições maiores que dois, três mil exemplares, Carolina Maria de Jesus superou barreiras. Após o lançamento, seguiram-se três edições, com um total de 100 mil exemplares vendidos, tradução para 13 idiomas e vendas em mais de 40 países.
— Por que alguém deve ler Quarto de despejo?
— Poderia ser uma homenagem pelos 40 anos da morte da autora (13 de fevereiro de 1977), mas prefiro dizer que é informação. Aqui você vai saber, pela voz de uma favelada o que é fome. Que os miseráveis brigam, se matam e fazem sexo como animais. Que quando falta o respeito a si mesmo não pode haver respeito ao próximo. Carolina Maria de Jesus se respeitava e respeitava o próximo.
A autora era negra, favelada, mulher, miserável, três vezes mãe solteira, mas guerreira e de coração generoso.
O livro não tem história. Não tem enredo. Não tem começo dramático, não tem final feliz. Nem final tem. É um relato do cotidiano. É um diário. É um manual de sobrevivência no meio do lixo. É um depoimento-denúncia isento de ódio.
— Mas porque afinal fez tanto sucesso?
— É que naquele meio são raros os que sabem ler e escrever. Mais raros ainda os que apesar destas qualidades, têm garra, permanecem sóbrios, usam o papel e a caneta para acusar sem ódio, sobrevivem e conseguem, a despeito de tudo, ainda ter lampejos poéticos, persistência e sorte de ser publicados. Tudo o que se lê à respeito da favela é escrito pelo olhar de quem come três vezes ao dia.
Se você pensa que a sua vida é ruim. Você não sabe de nada.
A personagem principal é a fome e a cada cinco páginas há ao menos uma morte, por fome, doença, aborto ou assassinato.

O primeiro relato é de 15 de julho de 1955, dia do aniversário da filha. Em vez de bolo, velinhas e balões, a menina ganhou um par de sapatos achados no lixo, lavados e remendados pela mãe e autora.
Em 19 de julho anota que não conseguiu armazenar para viver. Resolveu armazenar paciência. E adiante, após relatar uma queixa da vizinha diz “Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não podem compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos”.
Em 22 de julho Diz que é muito alegre. “Todas manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer”.
Em 10 de maio, depois de citar políticos opina que “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.”
No dia 15 de maio encontra a poesia: “O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.”
Em 27 de maio: “Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.”
Em 16 de junho: “Eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.”
Em 6 de julho, em relação à catação de papel: “Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.”
No dia 8 de julho anotou que o filho (de uns nove anos) fora acusado de molestar uma menina de dois anos. E que iriam denunciá-lo ao juizado de menores. Ela mesmo tomou a iniciativa de ir ao Juizado para interná-lo “porque agora tudo que aparecer de mal vão dizer que foi ele.”
No mesmo dia anota que o doutor do juizado “disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões. Fiquei horrorizada ouvindo um Juiz dizer isto.”
Em 16 de agosto: “O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.”
No dia 18 de julho do ano seguinte reflete: “Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer.”
É lógico que selecionei o lado poético.
Para nós, moradores de casa de alvenaria, a pobreza, a fome, a morte são invisíveis como os miseráveis.

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