Enquanto o café esquenta na velha chaleira, divido uma laranja com Bruna. Do pão francês fico com a parte de baixo. Ela escolheu a parte de cima há vinte e dois anos. Na metade superior, uma fatia de queijo, na inferior manteiga e geléia de uva. Cada um com sua xícara azul.
Escovo os dentes. Laceio a gravata em movimentos rápidos e automáticos.
Trocamos um beijo de hortelã.
– Vai com Deus!
– Fica com Deus!
Desço elevador. Ligo carro. Saio da garagem. Ouço noticiário. Estaciono no trabalho. Subo elevador.
– Bom-dia, Neuza! Bom-dia, José!
– Bom-dia, doutor Eduardo! – respondem os dois juntos com o office-boy.
Leio manchetes. Política, nacional, internacional, será que o Fluminense ganhou? Loterias, megassena: 06, 07, 09, 20, 27, 53. De novo: 06, 07, 09, 20, 27, 53. Será? Seis, sete, nove, vinte, vinte e sete, cinqüenta e três! Calma! Autocontrole! Fique na sua!
– Neuza, já tem café?
Meu Deus! Acumulada!
Abro a carteira e checo os números cuidadosamente mais uma vez. O número do concurso também é o mesmo. Dez, quinze anos, os mesmos números. Acaricio o papelzinho sentindo a euforia na ponta dos dedos. Parece que todos estão olhando para mim. Meu coração entra em ritmo de Marquês de Sapucaí, o sangue corre mais do que o Ayrton Senna. Descubro o que significa delirium tremens. Não é falta de álcool. Sinto falta de ar, de chão. Tudo internamente. Mantenho a fisionomia impassível, tal monge tibetano.
– Duas colheres, por favor. Pode levar o jornal.
– Me dá um volante da esportiva? É verdade que teve vencedor da Mega Sena daqui de Brasília?
– Sozinho! Cara rabudo! Se fosse eu largava emprego e mulher ao mesmo tempo. Ainda falava umas boas para cada um!
– Por favor, uma informação: acertei algumas quinas da megassena e gostaria de saber com quem devo conversar para retirar o dinheiro?
– Senhor, estamos na hora do almoço. Telefone mais tarde.
– Obrigado.
Ligo para o segundo número.
Para a mesma pergunta recebo a informação que devo conversar com o gerente Robson a partir das quatorze e trinta. Quinto andar.
– O seu Robson se encontra?
– Pois não, em que posso ajudá-lo?
Meu coração lateja, sacode, pula.
– Acertei umas quinas da megassena e quero saber como sacar o dinheiro?
– Parabéns! Vamos abrir uma conta, senhor... como é mesmo seu nome?
Exatos dez por cento em aplicação de seis meses. Novecentos mil em outra aplicação de médio prazo. Cinqüenta mil em curto prazo. Disponibilizo aproximadamente trinta mil reais e o restante – já estou pirado – chamando quatorze milhões e oitocentos mil de restante, investidos em várias opções.
Barba, banho, gravata para combinar com o dia. Café, chaleira, laranja, Bruna, queijo, geléia de uva, xícara azul.
Elevador, garagem, noticiário, estacionamento, elevador.
– Bom-dia, Neuza! Bom-dia, José!
– Bom-dia, doutor Eduardo! – Responde o trio, incluído o office-boy.
Leio as manchetes. Política, nacional, internacional, esportes.
– Neuza, já tem café?
Duas diferenças imperceptíveis estavam presentes. Um talão de cheques recheado e a cabeça em convulsão. Ninguém estava mais olhando para mim. Estou disfarçando bem! Estou orgulhoso da minha estratégia.
Minha mesa tem poucos papéis. Telefono para a matriz em São Paulo e resolvo uma das três pendências. Com José troco algumas idéias e passo todas as informações a respeito da grande licitação da qual a empresa participará em quinze dias. Numa folha de papel rascunho o roteiro e listo as pessoas envolvidas no processo do projeto de lei que interessa à empresa. O resto é apenas o resto. Vou cuidar da minha vida.
Eu havia observado uma construção nova na Asa Norte, bairro nobre do Plano Piloto. Construtora séria, cumpridora de prazos, bons acabamentos. Alguns telefonemas depois descubro que o lançamento das unidades, apartamentos de três quartos, só deverá acontecer em duas ou três semanas. Agendo uma visita ao canteiro de obras com a finalidade de conhecer o projeto e os acabamentos. O engenheiro é obrigado a disponibilizar o memorial descritivo. Do corretor quero apenas conhecer as condições de compra e financiamento.
Após o expediente procuro Aninha. Minha doce e querida Aninha. Ela mora numa pequena quitinete. Eram conhecidos por apartamentos JK. Janela e Kuarto. Na cabeceira, um porta-retratos com uma foto onde aparecemos abraçados. Ao fundo o Pão de Açúcar. Quando completou vinte anos a levei para conhecer o Rio de Janeiro. Lá se vão outros dois anos. Debaixo do porta-retratos está o boleto para o aluguel da kit. Aninha fica muito constrangida e eu também não gosto do assunto. Deixo o dinheiro junto do porta-retratos e ninguém fala disso. Aninha é esforçada, durante o dia trabalha em escritório e à noite estuda. Forma-se no fim do ano em administração de empresas. O dinheiro está muito curto. Apesar da insistência de Aninha, saio para não aborrecer Bruna.
O jantar e a novela me aguardam.
O encontro para a sagrada feijoada dos sábados tem hora certa para começar. Terminar, só quando o dia virar noite. Entupidos de alegria, feijoada e cerveja.
Domingo é dia de preguiçar. Sempre foi. Sempre será. Preguiça de levantar, preguiça de fazer a barba, preguiça de ler o jornal, preguiça de tirar o pijama, preguiça de mudar de canal... Não pode ter preguiça de fazer o almoço nem de dormir depois do almoço. O dia acabou depois do futebol e o dos fantásticos gols. E o segredo não foi revelado, nem descoberto.
Barba, banho, gravata para combinar com o dia. Café, chaleira, laranja, Bruna, queijo, geléia de uva, xícara azul.
Elevador, garagem, noticiário, estacionamento, elevador.
– Bom-dia, Neuza! Bom-dia, José!
– Bom-dia, doutor Eduardo! – Respondeu o grupo, incluindo o office-boy.
Leio as manchetes. Política, nacional, internacional, loterias, megassena. Prêmio do vencedor: novecentos e sessenta mil reais.
Seu Robson acertou em cheio: o valor do prêmio do vencedor seria em torno de novecentos e cinqüenta mil reais.
– Neuza, por favor, providencie uma passagem para São Paulo, amanhã no primeiro horário, com volta prevista ao fim do dia.
Tenho sorte mais uma vez. Somente um ganhador. Meu álibi está pronto. Escrevo a carta de demissão em caráter irrevogável, por razões pessoais. Preparo um breve relatório das minhas atividades e esboço um mapa para futuras intervenções da empresa em terras e gabinetes candangos. Elogios para José que já está em condições de pegar no timão e comandar a nau brasiliense.
À tarde visito o canteiro da obra. Certifico-me da posição solar. Sala em forma de ele, suíte e banheiro social, pisos em granito. Vista para o lago. Varanda na sala. Aninha terá uma varanda para colocar suas plantas e eu terei espaço para dormir na rede após um delicioso almoço. Aninha tem muitos predicados. A cozinha é um deles. Eu ainda terei que comprar os móveis. Aninha é exigente e tem muito bom gosto.
Com o corretor a conversa é fácil. Quinto andar, de canto. Ele quer vender e eu comprar. Consigo um contrato diferenciado. Cinqüenta por cento de entrada, trinta por cento na entrega das chaves e o restante assim que não houver nenhuma pendência construtiva no imóvel. Ainda escolho a melhor vaga da garagem. Guardo num envelope com timbre da Construtora.
Chego cedo em casa. Bruna me recebe alegre dizendo que fez uma canja de galinha especial, do jeitinho que eu gostava. Se fosse por ela, teríamos faisão. Eu só estava pensando naquela dinheirama toda. No meu segredo e no apartamento que comprei à tarde.
– Deliciosa canja! – Murmurei, ao servir-me pela segunda vez. – Terei que viajar para São Paulo amanhã. Retorno à noite.
– O que você tem, Edu? Está tão quieto! Alguma coisa no trabalho?
– Apenas cansado. Tem café?
Eu não quero conversar. Poderei externar meus sentimentos e o meu segredo. Bruna vai saber na hora certa. Da forma que merece! Não agora.
Durante a novela Bruna ainda pergunta, mais uma vez, se está tudo bem. E mais uma vez respondo que estou um pouco cansado. Levanto e vou dormir.
Às nove horas em ponto estou na matriz. Sou logo recebido pelo Dr. Rubens. Com o café ainda na xícara entrego a minha demissão e o planejamento para as futuras ações da empresa em Brasília.
Dr. Rubens sempre que tem um problema fica silencioso por um longo minuto esfregando o lóbulo da orelha esquerda entre o polegar e o indicador.
– Ok, Eduardo. Entendi e respeito sua posição. Agora, cá entre nós, qual é o verdadeiro motivo?
Pergunto se ele ainda se lembrava da história daquela tia querida que morava seis meses em Paris e seis meses no Rio de Janeiro. Logo após a afirmativa explico que ela faleceu algum tempo atrás e que no espólio fiquei como herdeiro único. Terei que viajar em breve para a França para resolver algumas questões burocráticas.
Dr. Rubens sempre foi muito prático. Aproveitou minha presença e questionou sobre a capacidade do José, o quanto estava a par dos interesses da empresa, se conhecia nossos clientes, se eu poderia indicar alguém para a atual função de José e todas aquelas coisas que se perguntam num momento destes. Declinei do convite para almoçarmos juntos. Ainda queria aproveitar a tarde para resolver mais uma coisinha.
Saio a pé. Necessito caminhar um pouco para aliviar minha tensão de blefador. No centro da cidade não sinto segurança. Entro no metrô, troco de linha na estação Paraíso e desembarco em frente ao MASP. Caminho uma quadra e faço um lanche rápido. Encontro uma agência de turismo de gente graúda.
Eu sei o que quero. Um mês na França, ou mais. Dez dias em Paris. Torre Eiffel, Arco do Triunfo, Louvre, Sena, Notre Dame, Moullin Rouge, Sorbonne, Maxim´s, Place Vendôme, Museu Baccarat, Ópera de Paris, Basílica Sacré-Coeur, Folies Pigalle. Meu Deus, quantas opções! Bordeaux, Montpellier, Marseille, St.Tropez, Toulon, Nice, Cannes, Lyon. Quantos roteiros! Quantas possibilidades! Vualá!
A experiência da agente foi fundamental. Preparou um pacote para turistas de primeira viagem. Pacote embrulhado com laço de fitas, para presente!
Antes do terceiro cafezinho estava com as duas passagens na mão. Guardo as passagens e os roteiros em envelope branco.
Em dez dias embarcaremos e ela conhecerá um pouco mais do que o Rio de Janeiro.
Ainda na agência de turismo ligo para Aninha.
– Aninha, vou falar rápido porque estou quase sem bateria! Sei que você tem aula, entretanto me espere às oito, lá no Beirute. Tenho que conversar com você! Chame também sua mãe. Vou desligar. Estou falando de São Paulo. Beijos, até daqui a pouco.
– Garçom, por favor, dê uma olhada na minha mesa. Vou até o carro e já volto.
Retorno rapidamente com o envelope branco.
Aninha chegou esbaforida e quase de forma mal-educada perguntou o que é que havia de tão urgente?
Estou muito ansioso. Guardando segredos e fazendo mistérios, pedindo demissão – tanto dinheiro... Resolvo entrar em erupção.
Estendo o envelope com o timbre da construtora.
– Não estou entendendo direito. Você comprou um enorme apartamento? ... você... eu... está no meu nome...
Aninha pulou da cadeira e me abraçou como criancinha, e como criancinha sentou no meu colo. Não parava de rir e de me abraçar.
Neste exato momento, Bruna aparece.
E grita de longe.
– Que bagunça é essa?
Todos olham para mim.
– Mãe, papai comprou um apartamento para mim!
Bruna sempre foi muito esbanjadora e ciumenta e logo perguntou de onde veio o dinheiro para isso.
– Antes de responder, gostaria que abrisse este envelope. Estendo a mão com envelope branco, o das passagens e o roteiro.
Será que a cadeira aguenta? Somos três figuras abraçadas pulando loucamente de alegria.
2 comentários:
Otima estoria!!
Obrigado pela visita e leitura.
Postar um comentário