26 março 2007

Retrato em branco e preto

A definição de raça agora é sacramentada por um tribunal de pureza racial que fotografa os candidatos a vestibular na UnB – Universidade de Brasília, e define os que podem ou não ser enquadrados nas cotas dos negros. Na escola aprendi que raça era uma coisa e cor era outra.
O que me interessa é que devem ser criadas cotas também para os portadores de letra K no nome. Desde a alfabetização sofri descriminação. Tudo por causa da reforma ortográfica de 1943 que eliminou o K do nosso alfabeto. Os portadores de letra W ou Y que juntem sua turma para formalizar seu pleito. Vou cuidar apenas daquilo que me diz respeito.
Somos poucos, pleiteamos uma cota de apenas 0,5%. Negros e mulatos ficam com 40%; deficientes físicos 20%; egressos de escolas públicas: 35:%; pobres: 20%; indígenas: 15%; asiáticos: 4,5%; judeus: 3%; desafinados: 5%; macrobióticos 2%; órfãos: 1%; analfabetos 18,37%.
O nosso caso não necessitará de nenhuma comissão especial para confirmação. Dispensaremos atestado de pobreza e exame de DNA. A identidade será suficiente para provar nosso enquadramento na cota. Particularmente tenho K por parte de pai e de mãe.
Feliz mesmo vai ser um amigo meu Zibgniev Chlowinsky, é pobre, estudou em escola pública do nordeste, não aprendeu a escrever, é preto de pai e indígena de vizinho, sem amídalas, careca, míope e na casa dele não tem televisão colorida. Com certeza vai entrar na faculdade, pois somando todas as cotas estará com 127,38%. O problema é que irá direto para o laboratório de antropologia.

17 março 2007

O grito do Ipiranga

Pedro apesar da fama de absolutista e mandão era uma pessoa dócil e bem mandada. Sempre atendia quando chamado. Miguel, Paula, ou Joaquim. Pedro atendia da forma que o chamassem. Também pudera, batizaram-no de Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon.
Apesar de todas aquelas opções preferíamos chamá-lo príncipe. Era uma coisa respeitosa. Apesar de que, entre nós, às vezes a gente falava do príííncipe puchando bem o iii e colocando o queixo no ombro e piscando rapidamente os olhos. Tínhamos que ser respeitosos, afinal sempre era bom viver às custas de Sua Riqueza.
Pedro tinha mania de se vestir de príncipe. Usava calças brancas tão apertadas que permitiam saber se a moeda do bolso estava cara ou coroa. Usava também umas jaquetas com ombreiras altas e enfeitada de medalhinhas douradas. Pedro era muito avançado para a época., este figurino só virou sucesso nos bailes gays do Rio de Janeiro 250 anos depois.
Pedro era casado com Leopoldina que era tão feia que era conhecida por trem. Por isso mesmo Pedro vivia viajando fugindo de casa. Ele sempre ia a Santos para surfar. Lá as ondas são pequenas de forma que ele dificilmente caia da prancha. Sob um guarda-sol ele foi apresentado a Maria Domitília, uma paulistana que todos diziam ser de Santos. Domitília, como Pedro, era muito avançada em termos de vestimentas. Ia para praia com uma touca minúscula. Ambos tinham 23 anos e se entendiam maravilhosamente sobre os lençóis de cetim. Pedro e Domitília tinham taras sexuais incríveis: se chamavam príncipe e marquesa respectivamente.
No início de setembro, depois de dois meses de praia, Pedro já estava muito bronzeado e deveria retornar a São Paulo e cuidar dos detalhes para a sua festa de aniversário. Pedro faria 24 anos dentro de dois meses e a expectativa era muito grande para o grande baile anual de aniversário. Tudo era motivo para baile.
O mordomo, José Bonifácio, juntou todo o pessoal, mandou selar os cavalos e preparou uma charrete acolchoada para Pedro. Retornamos lentamente subindo a Serra do Mar e atravessando a Mata Atlântica. No quinto dia de viagem, em pleno feriado, chegamos ao topo da serra com esplêndida vista da baixada santista. Montamos acampamento e preparamos uma peixada real.
Os peixes já não tinham sangue azul. Estavam verdes após calorosa viagem numa época em que não havia frizer nem geladeira.
Almoçamos e seguimos viagem. José Bonifácio queria chegar em São Paulo a tempo de ver o desfille no noticiário da tevê.
O peixe verde começou a saltar dentro da barriga de Pedro. Não tardou a achar a saída. Pedro borrou-se todo. Borrou também a bela carruagem aveludada. O cheiro da condução de Pedro ficou insuportável de modo que ele teve de montar um cavalo. Foi necessário limpar-se num riacho próximo. Na falta de papel higiênico utilizou-se da Gazeta do Rio de Janeiro onde leu que foi rebaixado de regente para delegado. Neste exato momento o outro peixe verde saltou de dentro da barriga da Sua Riqueza provocando enorme dor. Pedro urrou.
– Meeeeeerda!
O peixe buscou a independência e este episódio foi retratado anos depois por Pedro Américo e batizado como “O Grito do Ipiranga”.

08 março 2007

Apaguei ontem após longa, extenuante e celestial seção de amor e sexo sob as luzes do eclipse lunar. Acordei com passarinhos alvorando na minha janela.
Antes mesmo de saber a cor do céu liguei a música do computador e o aleatório escolheu “Arpan” de George Harrison na sua fase Hare Krishna. Fechei os olhos e a minha imaginação sentou-me de cueca branca no frio piso da varanda, cruzou-me as pernas e, ioguísticamente, juntou-me o polegar e o indicador de cada mão. Posição ereta olhos fechadas num looooogo e sonoro OOOOMMMM. O sol bateu-me à testa. Reabri os olhos. É impressionante como existem dias em que nossas antenas captam melhor a energia presente na luz solar. Amén!
Li o jornal enquanto alimentava o corpo com laranja doce. Corrupção, bandalheira, desvio de dinheiros públicos, nepotismo, suborno, impunidade. Nem nos fins de semana os políticos dão folga! Vade retro!
Apliquei um filtro solar na pele e saí pelo eixão domingueiro.
Manhã maravilhosa. A cabeça a mil por hora pensando projetos. Olhos como sempre, à procura de curvas femininas. Braços se exercitando em dessintonia com o caminhar das pernas. Os órgãos do corpo não estavam em harmonia, cada um defendendo seus interesses. Caminhei roboticamente. Até que... sempre há um: até que... Até que, lá de longe, ouvi um barulho grave de tambores. Ritmo espaçado. Cadência forte e marcada. Parei e virei a cabeça para o oeste na direção da praça da Harmonia Universal. Um gramado enorme entre duas superquadras da Asa Norte. Vi um amontoado de pessoas sob um espaçoso toldo multicolorido. Um cartaz anunciava o novo ano chinês. Independentemente de qualquer comando, as pernas começaram a se movimentar naquela direção que os ouvidos perscrutaram e os olhos indicaram. As pernas correram. Pulmões foram oxigenados na corrida. O meu todo queria chegar antes daquela apresentação terminar.
Quarenta jovens, quase todos orientais, numa ginástica marcial batiam tambores e pandeiros em ritmo compassado. Movimentos amplos. Baquetas verdes, coletes vermelhos cardinais e longas meias brancas brilhantes. Tudo protegido por seis guardiões ostentando enormes bandeiras amarelas que balançavam ao vento.
Muitos aplausos e assobios. Gente de toda idade, cor e credo.
Todas as manhãs às seis ou sete e meia, há trinta anos, o mestre Moo Shong Woo promove seções de tai chi chuan. Sob as nuvens, a comunidade chinesa promove gratuitamente a ginástica e prega a paz e a harmonia. Já estiquei meus músculos e alonguei minha coluna algumas vezes em conjunto com eles. Admiro profundamente o trabalho do quase octogenário mestre Woo. Pena que os horários e a distância não sejam muito favoráveis. Gostaria que a montanha fosse a Maomé.
Agora, sob o enorme toldo colorido um grupo de vinte e cinco pessoas uniformizadas formou um retângulo e graciosamente iniciou movimentos de tai chi. A música de Enya bateu fundo. No Natal, Jorge, meu sobrinho, presenteou-me com cedê com trocentas músicas deliciosas. Entre as quais esta, de Enya, e aquela do guru Harrison bebendo das fontes indianas. Eu poderia fazer parte daquele grupo, ao menos a idade era compatível.
Muitas pessoas sob e ao redor do toldo. Um grupo de camisas douradas ensaiando coreografia com espadas. Um senhor com roupa negra de samurai. Outro senhor de vastos bigodes trajando cetim azul celeste. Uma menininha se lambuzando de sorvete de chocolate. Dezenas de fotógrafos amadores. Alguns profissionais. Um sujeito com microfone buscando entrevistas. Um político abraçando quem lhe passasse à frente. Uma grisalha oriental de mãos dadas com o netinho na bicicleta. Os alto falantes anunciando nova apresentação e pedindo que todos jogassem seu lixo nos lugares certos para devolver a praça tão limpa quanto encontrada antes do evento. Todos os tipos de gentes: crianças, gordos, pretos, maiorias e minorias.
Antes de ir embora fui olhar os quiosques. Sabonetes cheirosos. Toalhas pintadas à mão. Sushis de legumes. Budas de cerâmica e dragões de resina. Nossas Senhoras de Aparecidas. Pães de queijo e vatapás. Maravilhas de quiosques ecumênicos.
Levantei os olhos e a cinco metros, bem à minha frente estava um senhor em roupa de cetim creme, calvo, ereto, sessenta anos aparentes, sorridente, olhos puxados. Juntei minhas mãos no peito, fechei os olhos e lentamente abaixei a cabeça em reverência carinhosa. Quando abri meus olhos recebi um acolhedor aperto de mão do mestre Wu.
Já tive a oportunidade de trocar algumas palavras com ele anteriormente. Olá, bom-dia, obrigado, para o senhor também. Desta vez foi diferente. Não falei nem ouvi. Foi apenas um aperto de mão. Não qualquer aperto de mão. Fiquei mais leve. Recebi uma energia indescritível. Meus olhos marejaram. Não sei o que aconteceu. Sei apenas que o corpo estremeceu e rumou para casa.
Jamais segui qualquer tipo de religião. Mesmo respeitosamente, critico sempre o fanatismo cego e a religiosidade interesseira.
Estive na Esplanada dos Ministérios na vinda do papa João Paulo II. Milhões de pessoas reverenciando o carisma de Sua Santidade. O momento foi inesquecível. Mas não captei a mesma energia.
Só captei a mesma energia no começo dos anos oitenta quando estava nos corredores de um órgão público e pouco a minha frente caminhava um senhor de cabelos loiros encimados por solidéu. Eu arrisquei chamar: – Rabino Sobel?
O rabino virou-se, caminhou em minha direção me abraçou forte disse uma palavra carinhosa no meu ouvido e retornou ao seu grupo. Meus joelhos quase dobraram com a energia que recebi daquele homem.
E agora de novo: o mesmo magnetismo.
São dez e quinze. Eu já estou pronto. O mundo já pode acabar.

※ ※ ※ ※ ※
Desenho de Eduardo Bonfim do HQ Os Barbudão

05 março 2007

Estréia



Chegou o dia 5.
É minha vez. O dia cinco de março é dia da minha estréia no Bar do Escritor.
Três dias antes disseram que eu ficaria nervoso.
Eu me lembro de ter dito que eu tiraria de letra. O alfabeto inteiro. Estava tranqüilo. Tranqüilíssimo.
Isso foi três dias antes. Era começo de noite do dia dois.
Passei a noite em claro. Contei carneirinhos. Pensei no meu texto. Contei mais carneirinhos. Tomei água com açúcar. Contei carneirinhos. Bobagem, água com açúcar. Aguinha com açúcar e carneirinhos. Daqui a pouco aparece o lobo mau e bota um fim essa história infantil. Pensei num texto e virei um vidro de maracujina. Apaguei rapidinho.
Texto que é bom, nada.
Graças à maracujina, meu dia 3 começou lá pela uma da tarde. Aí tive que recuperar o tempo perdido fazer aquilo que deixei de fazer pela manhã.
Por que diabos fui escolher o dia cinco? O mês tem trinta dias e fui escolher logo um dia lá do comecinho. O calendário estava todo aberto e escolhi aquele número. Sou burro mesmo. Poderia, por exemplo, ter escolhido uma das dezenas do burro: nove a doze. Teria ganho uma semana.
Rogaram praga.
Já chegou outra noite, não preparei meu escrito e os lençóis já começaram a pesar. Apesar de você, amanhã há de ser outro dia... A cabeça gira, gira e gira e gira e nada de fixar um conto ou uma crônica. Levanto da cama, pego um copo com água e digo com voz firme e alta:
– Não vou fazer a besteira de tomar outro vidro de maracujina. Eu sou um escritor responsável. Olhei para o copo de novo e de acordo com minha palavra, rapidamente engoli uma bolinha vermelha de Lexotan.
O dia 4 começou sonolento às três da tarde.
Meu tempo está acabando. Tenho de ter a idéia, escrever, revisar e postar. A contagem regressiva está próxima do dois , um fogo!
Ai! Deu dor de barriga.
Por que as estréias são assim?
Eu poderia ter ganho dois dias e escolhido o dia sete. Sete são as notas musicais. Sete são as cores do arco-íris. Sete são os motivos pelos quais não consigo escrever.
Meu tempo está se esgotando rapidamente e ainda tenho que organizar tudo para uma festa aqui em casa amanhã.
Tudo o que eu sempre quis na vida era escrever e ser lido. Minha grande oportunidade chegou. Dia cinco, por quê?
No fundo eu sei. Dia cinco de março completo 55 anos. É meu aniversário.
Este é meu melhor presente para quem escreve: escrever e ter alguém que leia até aqui.
Obrigado.


Enzine Bar do Escritor http://www.bardoescritor.blogspot.com/
 
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