28 fevereiro 2017

Credenciamento

Capítulo do Manual do escritor




2.7 Credenciamento
Significa dar créditos, valores ou poderes ao personagem para que suas ações sejam coerentes com as consequências.
Por exemplo, se ele for policial e acertar um tiro improvável, é necessário informar ao leitor que ele treina tiro sistematicamente ou que é sortudo por natureza. Outro exemplo: para o chefe explodir de raiva no departamento deve ser mostrado em cena anterior que ele se descontrola facilmente.

Credenciar é habilitar o personagem
antes do conflito em que alguma
característica seja importante.

O credenciamento pode ser sutil como a descrição de um cenário.
Se desejamos mostrar o sonho de um jovem romântico em conhecer a Áustria, podemos qualificá-lo ao penduramos um pôster amarelado retratando um castelo no topo da montanha. O amarelado indicará o desejo antigo.
Credencie com recortes da vida do personagem.
 Mostre o jovem alugando filmes que se passam na Áustria. Revele quanto deposita na caderneta de poupança. Conte como estuda o mapa austríaco ao som de valsas.
O credenciamento é diferente da caracterização.
Na caracterização se apresentam informações sobre as personagens como aparência, idade, gênero, profissão, posição social, motivações. Esses elementos permitem melhor concepção e desenvolvimento, tornando-os mais realistas e complexos.

Entre os jovens está na moda criar mangás, histórias em quadrinhos de origem japonesa. Neles, o poder elemental é um clássico absoluto. É gerado a partir dos elementos como água, fogo, terra, ar e derivados como a luz, a treva, a eletricidade, o gelo. A partir dessas forças, o herói ou o vilão – devidamente credenciado – poderá emanar rajadas de energia extremamente poderosas.
Observe um credenciamento:

O capote – Nicolau Gógol – conto
No departamento ninguém lhe prestava o menor respeito. Os guardas, além de não se levantarem quando ele passava, nem chegavam a lhe dirigir o olhar, como se fosse uma simples mosca que voava pela sala de recepção. Os superiores o tratavam com uma frieza despótica. Qualquer subchefezinho da repartição colocava-lhe a papelada sob o nariz sem sequer dar-se ao luxo de dizer: "Copie", ou “Eis um trabalhinho interessante, bom" ou algo agradável, como se faz entre funcionários bem educados. E ele ia recebendo, olhando apenas o papel, sem procurar ver quem lhe entregara e se tinha obrigação de fazê-lo. Recebia e no mesmo instante começava a escrever. Os funcionários jovens zombavam e gracejavam dele o quanto permitia o humor de chancelaria, contavam mesmo em sua presença toda sorte de histórias que envolviam a sua pessoa: a sua senhoria, uma velha de setenta anos; diziam que a velha lhe batia, perguntavam quando os dois iam casar-se, faziam-lhe chover sobre a cabeça bolinhas de papel e diziam que era neve. Mas Akaki Akakiévitch não respondia uma palavra, como se não houvesse ninguém diante dele: em meio a todas essas amolações não cometia um só erro no seu trabalho. Só mesmo quando a brincadeira passava do limite, quando alguém lhe empurrava o braço, perturbando-o no trabalho, é que ele falava: "Deixem-me em paz. Por que me magoam?"
Akaki Akakiévitch é um subordinado, submisso, alvo de zombaria, desrespeitado, pessoa de rotina e sem ambição. Tipicamente um personagem plano. Para ressaltar a qualidade imutável, empregou mesmo três vezes num único parágrafo.

Casamento em crise – Roberto Klotz – conto
Ela, Ana Maria, se diz dona-de-casa, mas os invejosos chamam de dondoca. Diariamente dorme até às nove horas para depois cuidar do corpo. Joga tênis duas vezes por semana e faz musculação na academia nos outros três dias. À tarde tem uma rotina árdua. Às segundas vai ao supermercado, às terças e quintas joga pife, às quartas tem aula de pintura e às sextas-feiras vai à massagista antes do cabeleireiro. Aos sábados, enquanto o marido joga golfe, visita lojas de moda e calçados. Desde pequena foi acostumada ao conforto pelo pai, dono da transportadora.
Contrariando a fala da protagonista, confirmou-se a maledicência mostrando o dia a dia dela.

           Também credenciamos cenários e objetos. Um vale entre as montanhas pode ser fértil e propício para a vida ou pode ser um lugar sombrio que engole exploradores. Uma corda pode enforcar ou içar baldes d’água de um poço para salvar vidas.
Personagens, cenários, objetos, tudo pode ser credenciado para melhor desempenho da função na história

20 fevereiro 2017

Encontro com o autor


ROBERTO KLOTZ



Ele vai falar de seu processo de criação, estilo e influências.
Conquistou mais de 30 prêmios literários, foi jurado de vários concursos literários e promove oficinas literárias. Publicou contos e crônicas em Pepino e FarofaQuase pisei! e Cara de crachá. Divertiu crianças com os infantis A bruxinha que queria ser fada e o Monstro na caixa azul. Mostrou o trabalho de oficineiro em Manual do escritor.

O autor convidado vai falar sobre sua obra, influências e interesses. Haverá a interpretação de textos curtos. Depois a plateia poderá dirigir perguntas ao autor. Após o evento será servido um breve lanche, quando os convidados poderão interagir diretamente com o autor.
23 de fevereiro de 2017, quinta-feira, às 17h.
Salão de Leitura da Biblioteca da Câmara dos Deputados - Anexo II
Informações: 3215-8093
Entrada franca
Promoção do Centro Cultural da Câmara dos Deputados e
Centro de Documentação e Informação
Confirme sua presença em   nucleodeliteratura@camara.leg.br


14 fevereiro 2017

Operação Valquíria

Em 2007, escrevi como teria sido o dia do oficial alemão na véspera do famoso atentado em que ele colocou uma bomba aos pés do Führer no maior atentado contra o ditador.

Em 2009, nos cinemas de todo o mundo Tom Cruise interpreta Claus Schenk von Stauffenberg, oficial alemão em Operação Valquíria.



Operação Valquíria



Era a noite do dia 19 de julho de 1944. Em Berlim, no seu alojamento solitário, o coronel alemão Claus Schenk von Stauffenberg repassava informações e o plano para colocar uma bomba no bunker de Adolph Hitler no dia seguinte.
Von Stauffenberg caminhava nervosamente de um canto ao outro do quarto e revivia a angústia da reunião de dissidentes do alto comando ocorrida há vinte dias. Naquela tarde ficara claro para todos os oficiais que a partir da invasão da Normandia, o Dia D, a guerra estava perdida. Seria apenas uma questão de tempo para que a Alemanha fosse arrasada e humilhada. Os aliados, entre si, acertaram, no tratado de Teerã, que só interessava a rendição incondicional da Alemanha nazista. Desta forma não havia nenhuma possibilidade de acordo de paz em separado. Mas, para evitar que a Alemanha fosse invadida e subjugada pelos bárbaros russos, seria necessário um pacto com os americanos e ingleses. A solução seria a eliminação do Führer e a neutralização da poderosa SS. O grupo resolveu se opor justamente ao lema da SS – Schutzstaff – “Minha honra é a lealdade”.
Von Staffenberg pegara sua caderneta e relera as palavras do General Ludwig Beck "A obediência de um soldado encontra seus limites onde seu conhecimento, sua consciência e sua responsabilidade proíbem-no de obedecer ordens.". O coronel alemão sabia que estas palavras, se lidas por alguém da SS, significariam a própria morte. Deu um sorriso de leve e questionou qual seria a sua condenação após o atentado. Considerou que não precisava se preocupar com anotações e concentrou pensamentos na ação.
A decisão está tomada. Amanhã, bem cedo, pego o avião e pouso por volta das dez horas em Rastenburg. O motorista estará me esperando para percorrer os seis quilômetros de poeira até a Toca do Lobo.
A reunião do alto comando está prevista para meio-dia. Às onze e meia faço um lanche rápido junto com meu ajudante de ordens, tenente von Häften, confirmo o horário da reunião, peço licença para trocar a camisa empoeirada com a ajuda de von Häften. Todos sabem que preciso de ajuda desde que perdi meu braço direito e ainda dois dedos da mão esquerda. Von Häften engatilhará as duas bombas quebrando a cápsula de ácido que dissolve o fio que retém a bomba. O petardo explodirá ente dez e vinte minutos depois. Terei apenas cinco minutos para posicionar a valise sob a mesa e sair. Não há como desarmá-las. Estarei na sala de reuniões e von Häften me chamará para atender um telefonema urgente. Sairemos juntos, passaremos pelo alojamento e pegaremos o carro para ir até a pista de Wilhelmsdorf, de onde voarei para Berlim para ir ao Ministério da Guerra participar do levante contra o governo. Estará realizada a operação Valquíria (3).
Não foi do dia para a noite que mudei de opinião.
Eu me lembro bem, embora já tenham passado dois anos, quando eu estava com Rommel no norte da África. Eu pouco conhecia o glorioso marechal-de-campo Erwin Rommel, a Raposa do Deserto. Ouvíamos as últimas notícias vindas da Alemanha.
“Hoje a polícia prendeu o judeu Davi Stern que convidou crianças a lamber chocolate numa chapa de ferro congelada. As crianças foram atraídas pelo doce e numa armadilha infernal ficaram grudadas pela língua molhada. Essas três inocentes crianças foram mutiladas gratuitamente por um ser desprezível que gargalhava de prazer ao ouvir os gritos do desespero infantil.”
— Schweinehund! – porco imundo – berrou Rommel desligando o rádio. — Maldito Heydrich! É insuportável esta maldita e mentirosa propaganda anti-semita. Este cachorro safado vive criando falsas histórias para colocar os alemães e o mundo contra os judeus.
Fiquei nervoso e balancei a cabeça negativamente, Rommel em vez de ficar chocado com a crueldade do judeu, xingara o número dois da SS. Rommel, um homem frio e calculista, externara sua opinião para mim, um quase desconhecido, e, percebendo meus olhos arregalados, resolveu argumentar para fundamentar sua opinião.
— Sabe Claus, eu acreditei e lutei pela nossa Alemanha durante todo este tempo até que descobri que Goebbels, nosso ilustre ministro da propaganda, que vive alardeando grandes vitórias e conquistas, é um grande mentiroso. Minhas vitórias no deserto, de acordo com a língua de Goebbels, foram estrondosas, foram épicas! Passei a ser um herói imbatível e um orgulho para a raça ariana, quando na verdade também tivemos perdas valorosas. Eu dispunha apenas de equipamento melhor, e, modéstia à parte, um pouco de esperteza. Goebbels exaltava os alemães enquanto a verdadeira função de Heydrich, no serviço secreto, era criar boatos para desestabilizar os inimigos e fazer o mundo acreditar que os judeus eram o demônio na face da terra.
— Mas está provado cientificamente, meu comandante, que somos uma raça superior...
— Haha! Os cientistas foram contratados pelo Führer. Você ainda se lembra da Noite dos Cristais?
— Como alguém pode se esquecer daquele inverno de 38?
— Aposto que você ficou chocado quando aquele moleque judeu assassinou com requintes de crueldade nosso diplomata, não é mesmo?
— Eu e toda a Alemanha.
— O judeu nunca existiu. Foi a SS que eliminou o idiota incompetente metido a diplomata, botou a culpa no judeu, depois colocou um monte de militares à paisana para empurrar a população incentivada pelo rádio. O resultado foi uma centena de judeus mortos, dúzias de sinagogas queimadas e a depredação do comércio judeu em toda Alemanha. — Rommel exibiu um sorriso irônico e continuou — O vidro quebrado das vitrines serviu apenas para criar um nome poético: Noite dos Cristais. — Das war der Anfang, mein Freund. — este foi o começo, meu amigo.
— Eu estou pasmo, meu marechal. Mas como o senhor me explica aquele discurso do Goebbels no ano passado, lá no Palácio dos Esportes? Goebbels perguntou para o povo se queriam a guerra total e catorze mil vozes animadas disseram sim e depois repetiram que sim.
            — Mentiras! O discurso foi uma encenação gravada para transmissão por rádio e para os cinemas. Depois da derrota em Stalingrado, a intenção era entusiasmar os ouvintes e principalmente recuperar o moral dos soldados nas frentes de batalha, por isso, Goebbels referiu-se ao apoio da platéia presente, com uma centena de vaquinhas amestradas infiltradas – ressaltou – como sendo uma amostra da sociedade em seu todo. Todos ficaram empolgados por conta de uma farsa, de uma mentira. Todos mentem, todos mentem. O discurso foi gravado durante a semana e no estádio só houve encenação, teatro. – Alle lügen – Todos mentem.
            Naquele fim de tarde meus olhos foram arregaçados para alguma coisa que eu já enxergara e em que não ousara crer. Em pouco tempo descobri que havia outros oficiais descontentes com a condução do governo da nossa Alemanha.
Jamais passou pela minha cabeça o assassinato do Führer. Jamais passou pela minha cabeça que eu seria o assassino do Führer. No mundo ninguém tem noção do que está acontecendo, nem os alemães, nem os nossos inimigos. A solução deve vir por aqueles que sabem. Pelos meus filhos e pelo futuro da Alemanha, estamos certos. Farei o que deve ser feito.
Olhei par o relógio.
Já são quase dez horas da noite, toda a Alemanha canta junto com Marlene Dietrich a bela canção Lili Marlene antes do encerramento das transmissões radiofônicas.
Von Stauffenberg abre sua caderneta e com um lápis anota:
“Fizemos o exame de consciência diante de Deus e a ação deve se realizar, pois este homem é a encarnação do mal. Queremos uma nova ordem, que faça todos os alemães portadores do Estado e que lhes garanta Direito e Justiça. Se tiver sucesso, serei considerado traidor de minha pátria; se falhar, me considerarei traidor de minha própria consciência.”


As luzes do quartel são apagadas.



1 - A Schutzstaffel – escudo de proteção – ou SS, foi uma organização paramilitar ligada ao partido nazista.
2 - Toca do Lobo – Wolfschanze – o QG de Hitler em Rastenburg, na Prússia Oriental.
3 -  Valquíria, é o título da ópera de Richard Wagner – segunda parte da tetralogia “O Anel do Nibelungo”.



O desfecho do atentado

A reunião foi transferida na última hora do bunker para um barraco de madeira. O bunker por ser de concreto armado teria os efeitos da bomba multiplicados.

A reunião também foi antecipada em meia hora assim, o mutilado von Stauffenberg conseguiu ativar apenas um dos dois explosivos previstos.

A bomba colocada sob a mesa, a meio metro de Hitler, foi afastada por um general que ficou incomodado com a presença da maleta.

A explosão matou quatro e feriu outras onze pessoas, mas não foi o suficiente para matar o ditador.

Von Stauffenberg foi preso e executado no dia seguinte.

Hitler ordenou vingança implacável a Himmler, chefe da SS. Consequentemente foram mortos quase 5.000 pessoas.

O herói Rommel foi convidado a se suicidar

08 fevereiro 2017

Quarto de despejo



Quarto de despejo

Carolina Maria deJesus
Editora Ática
R$ 45,00

198 páginas




O Quarto de despejo é uma edição das anotações diárias de uma moradora da extinta favela do Canindé, à beira do rio Tietê, no centro de São Paulo. Escrito na segunda metade dos anos 1950. É de uma realidade contundente.
Numa época em que os autores brasileiros dificilmente conseguiam edições maiores que dois, três mil exemplares, Carolina Maria de Jesus superou barreiras. Após o lançamento, seguiram-se três edições, com um total de 100 mil exemplares vendidos, tradução para 13 idiomas e vendas em mais de 40 países.
— Por que alguém deve ler Quarto de despejo?
— Poderia ser uma homenagem pelos 40 anos da morte da autora (13 de fevereiro de 1977), mas prefiro dizer que é informação. Aqui você vai saber, pela voz de uma favelada o que é fome. Que os miseráveis brigam, se matam e fazem sexo como animais. Que quando falta o respeito a si mesmo não pode haver respeito ao próximo. Carolina Maria de Jesus se respeitava e respeitava o próximo.
A autora era negra, favelada, mulher, miserável, três vezes mãe solteira, mas guerreira e de coração generoso.
O livro não tem história. Não tem enredo. Não tem começo dramático, não tem final feliz. Nem final tem. É um relato do cotidiano. É um diário. É um manual de sobrevivência no meio do lixo. É um depoimento-denúncia isento de ódio.
— Mas porque afinal fez tanto sucesso?
— É que naquele meio são raros os que sabem ler e escrever. Mais raros ainda os que apesar destas qualidades, têm garra, permanecem sóbrios, usam o papel e a caneta para acusar sem ódio, sobrevivem e conseguem, a despeito de tudo, ainda ter lampejos poéticos, persistência e sorte de ser publicados. Tudo o que se lê à respeito da favela é escrito pelo olhar de quem come três vezes ao dia.
Se você pensa que a sua vida é ruim. Você não sabe de nada.
A personagem principal é a fome e a cada cinco páginas há ao menos uma morte, por fome, doença, aborto ou assassinato.

O primeiro relato é de 15 de julho de 1955, dia do aniversário da filha. Em vez de bolo, velinhas e balões, a menina ganhou um par de sapatos achados no lixo, lavados e remendados pela mãe e autora.
Em 19 de julho anota que não conseguiu armazenar para viver. Resolveu armazenar paciência. E adiante, após relatar uma queixa da vizinha diz “Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não podem compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos”.
Em 22 de julho Diz que é muito alegre. “Todas manhãs eu canto. Sou como as aves, que cantam apenas ao amanhecer”.
Em 10 de maio, depois de citar políticos opina que “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.”
No dia 15 de maio encontra a poesia: “O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.”
Em 27 de maio: “Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.”
Em 16 de junho: “Eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnações, eu quero voltar sempre preta.”
Em 6 de julho, em relação à catação de papel: “Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.”
No dia 8 de julho anotou que o filho (de uns nove anos) fora acusado de molestar uma menina de dois anos. E que iriam denunciá-lo ao juizado de menores. Ela mesmo tomou a iniciativa de ir ao Juizado para interná-lo “porque agora tudo que aparecer de mal vão dizer que foi ele.”
No mesmo dia anota que o doutor do juizado “disse-me que se os meus filhos fossem para o Abrigo que ia sair ladrões. Fiquei horrorizada ouvindo um Juiz dizer isto.”
Em 16 de agosto: “O custo de vida faz o operario perder a simpatia pela democracia.”
No dia 18 de julho do ano seguinte reflete: “Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer.”
É lógico que selecionei o lado poético.
Para nós, moradores de casa de alvenaria, a pobreza, a fome, a morte são invisíveis como os miseráveis.

07 fevereiro 2017

Casa dos espíritos



Minha vida estava sem sentido. A empregada roubou meu cedê do Raul Seixas. O cachorro roeu minha máquina fotográfica. Fiquei preso no elevador durante cinco horas. Com o síndico. Embriagado! Minha namorada engordou 32 quilos e antes que eu acabasse o relacionamento me abandonou. Sumiu!

Tentei de tudo; alho, sal grosso, pé de pato mangalô três vezes, arruda e guiné para espantar o mau olhado.

A grande mudança ocorreu quando um amigo, sabendo da minha fase agourenta, presenteou-me com uma Casa dos Espíritos. Uma espécie de templo budista, utilizada pelos tailandeses, para ser colocado na entrada e que deve ser bem provida de incensos, alimentos e objetos para trazer sorte e conforto.

Por morar em apartamento, a instalei no hall dos elevadores do meu andar. Procurando seguir as tradições e o manual de instruções, promovi uma festa de boas vindas. Recheei o telhadinho com uma foto da Juliana Paes, uma nota de dez Euros e um pedaço de frango à passarinho com muito alho. O DJ mandou ver um pagode legal. Foi uma festa para ninguém botar defeito.

No dia seguinte a filha da zelador brincou de casinha no hall. O dinheiro sumiu, a foto estava rasgada. Sobrou apenas uma barbie impregnada com o cheiro do alho.


Mesmo assim, depois de uma semana a minha namorada retornou. Estava linda. Voltou de um spa parecendo top model. Magra, cabelos de salão, roupa mostrando todas as curvas. O problema é que entrou na porta vizinha. 

03 fevereiro 2017

BBB

Esse negócio de fazer merchandising é muito sério.


No final da noite de autógrafos do lançamento do Manual do escritor, peguei a caixa para guardar os cinco livros que sobraram, aí, apareceu um jornalista querido, todo esbaforido, perguntando se eu ainda poderia autografar um livro para ele.  Fizemos um escambo duplo: trocamos dedicatórias, recebi o livro Terminal, de poesia, e em troca ofereci o Manual do Escritor.

Será que ele, Rômulo Neves, vai falar do livro no Big Brother? Será que ele vai dizer que seu próximo livro será um romance com dicas extraídas do Manual do escritor?


Enquanto o merchan global não é definido, modestamente vou aqui propagandeando a gráfica Teixeira que publicou três livros meus. 

02 fevereiro 2017

ODE AO CIGARRO

Este longo texto, para mim, tem um significado muito especial. Sempre fumei de forma alucinada e, tal qual todos fumantes, precisava parar. Nunca mais fumar era um compromisso muito forte. Parei numa espécie de acordo pessoal: ficaria sem fumar durante um ano. Ao se aproximar o vencimento do contrato fiquei paranoico. Eu estava louco de desejo para fumar, entretanto seria irracional voltar. Numa catarse escrevi “Ode ao Cigarro”. Ao chegar a data renovei o contrato por mais um ano. Hoje, exatos quinze anos depois, dia 02 de fevereiro de 2017, renovo meu contrato por mais um ano.
Dediquei ao Dr Dráuzio Varella que o divulgou no site durante dois anos.
De brinde, este texto despertou o prazer da escrita: foi meu primeiro texto no mundo das letras.

ODE AO CIGARRO

Alguns anos atrás li um artigo da Cláudia Raia em que ela fez uma verdadeira apologia ao cigarro. Jamais fui fã de la Raia. Mas aquelas palavras... – Ah... como gostaria que tivessem sido minhas. Era exatamente o que eu gostaria de ter dito: – Pô, deixem-me fumar, ora bolas!
Não guardei o texto, mas me lembro de que era contra aqueles caras inoportunos que se incomodavam com nossa fumaça nos restaurantes ou filas. Até na casa da gente vêm esses xiitas incomodar.
Acordar no meio da noite... Fumar um cigarrinho e voltar a dormir. Só quem é profissional sabe como isso é gostoso.
Acordar cedo e, antes mesmo do cafezinho, dar aquela tragadinha é indispensável.
Eu só sei falar ao telefone com um cigarro aceso. O cigarro me dá segurança. Além da segurança, ele me dá tempo de escolher melhor as palavras entre um trago e outro. As palavras estão difíceis? Acendo outro cigarro e, com charme, tenho a resposta pronta.
Paquerar com um cigarro é ótimo. A mão fica ocupada e a gente esconde a timidez atrás da fumaça. Na euforia, eu celebro fumando. Na tristeza, eu choro fumando. Sono? O cigarro me desperta. Tesão? O cigarro me deixa ainda mais ligado. Hoje estou nervoso, preciso de um tragada profunda. Almocei uma feijoada, ora, que delícia! (Tô falando do cigarro, logo após, e mais um após o café). Cara, é muito bom! Jogar pôquer sem cigarro, nem pensar. Temos de esvaziar o cinzeiro que começa a transbordar pela segunda vez. Eu me lembro, uma vez eu fui à casa de uma menina e estava literalmente apaixonado. Acendi meu cigarro adolescente. Ela reparou que eram três os cigarros simultâneos. Ah, meu Deus do céu, que mancada!
Quantas recordações! Sou profissional desde os 15 anos, e olha que já estou com quase 51.
Todos nós fumávamos. O incomodado que se mudasse. Os tempos mudaram. Muitos amigos traíram e largaram o cigarro. Mais de uma vez fumei em lugares proibidos, ostensivamente. Marcando território. Igual a cachorro mijando em poste.
A cigarrilha era mais charmosa ainda, era cara e a tragada era pesada. Não agüentei e voltei ao meu cigarro. Estou falando de cigarro, jamais usei o tal do baseado, nada contra, mas minha praia é outra. Sempre tive pavor de ficar viciado. Sempre gostei de tomar um chope. Jamais me viciaria em bebidas. Cachimbo: caramba, que charme! Fumei um período. Mas tinha muitas desvantagens. As pessoas reclamavam que produzia muita fumaça forte, o seu trago, quando chegava aos pulmões, não era muito bem recebido. O cachimbo tem de esfriar. Tem de ser limpo. Quanta pantomina! Quero fumar logo!
Eu tenho a minha marca. Marca é fundamental! Se você não tem marca, fuma o que te derem, você não é fumante. É um chato filador.
Uma coisa eu sempre detestei: fumar na frente do espelho, dar uma tragada profunda e ver que a cor da fumaça que desce é diferente da cor da fumaça que volta. Sempre acreditei que o filtro do cigarro retivesse as coisas ruins. É pra isso que serve o filtro.
Em outras épocas, acendia um cigarro no filtro do anterior.
            O trabalho estressante. Um telefonema. Um chope. Uma transa. Uma fossa. Uma alegria. Um funeral. Outro telefonema. Uma negociação. Um passeio de carro. Uma conversa. Nenhuma conversa. Cigarro, companheiro de todas horas.
Cigarro tem de ser aceso com isqueiro a gás. A tragada com gosto de fósforo é muito ruim.
Eu me lembro de um isqueiro Ronson dourado que meu pai me deu. Aquilo é que era isqueiro. Era o Rolls-Royce dos isqueiros. Dei para o meu irmão, que sempre desejou um isqueiro igual àquele, que, por outro lado tinha de ser recarregado de vez em quando e às vezes falhava. Isso me irritava profundamente. Nunca vou me esquecer do meu pai dando-me aquela maravilha. A cena foi funesta. Mas o isqueiro! Meu pai havia sofrido um enfarte e, na condução da maca, no hospital, deu-me aquela pequena jóia, com uma lágrima no olho. Ele ficou bom, nunca mais fumou, e também não se importava quando as pessoas fumavam.
Você fuma? Tem uma coisa que me incomoda no cigarro. Soltar a fumaça dos pulmões de encontro a um guardanapo de papel colado nos lábios. Puxa, que coisa mais asquerosa! O papel fica mais sujo que o filtro. Sempre acreditei que o filtro do cigarro retivesse as coisas ruins. É pra isso que serve o filtro.
Eu jamais deixo as pontas se acumularem no cinzeiro; além de ser antiestético, fede.
Escrever, ler, descansar, prosear, cagar, pensar, concentrar, diga qualquer verbo: o cigarro sempre é companheiro.
Com meus vinte e poucos anos, peguei uma hepatite B e praticamente fui desenganado pelo médico. Eu odeio médicos. Só vou em último caso. Eu já havia desmaiado duas vezes. Não precisei de exames: hepatite. Entre outras proibições, veio a do cigarro. Médicos sempre são contra. Fiquei de cama 75 longos e intermináveis dias. Lá pelo sexagésimo dia, na fossa, fumei escondido, às 4 da manhã. Não desceu fácil. O segundo desceu redondo. Companheirão.
No dia seguinte, estava em forma. Vinte cigarros, um maço. Profissional é assim. Não, não sou compulsivo, sou profissional.
Como se chama mesmo aquela doença em que as pessoas não conseguem respirar? Eu ouvi falar pela primeira vez por um chefe de trabalho. Nossa, ele fumava demais, e tinha medo dessa tal doença, pois o pai dele havia morrido e ele presenciou o sofrimento do pai. Anos mais tarde o grande Ney faleceu com a mesma doença. A hereditariedade é fatídica.
Sempre adorei a água, e sempre fiz demonstrações de como meu fôlego é bom. Nos áureos tempos ficava dois minutos sem respirar. Estou meio fora de forma, mas acho que ainda consigo ficar um minuto nos dias de hoje. Apesar de profissional.
Sou capaz de escrever um livro: Meu Amigo: O Cigarro. Quantos momentos!
Quando minha mulher engravidou, teve uma grandeza enorme. Parou de fumar. Temporariamente. Na segunda gravidez, a mesma firmeza de caráter. Temporariamente parou. E lá se vão 19 anos. Pela primeira vez fiz algum esforço para parar.
Uma vez, meu irmão mais velho me perguntou quantos cigarros eu fumava por dia. Quanto custava o maço. Como bom engenheiro, fez as contas e castigou: “Com o dinheiro do cigarro, você já poderia ter comprado um carro zero”. Vai se danar! Cadê o seu carro zero? Você nunca fumou. Pois é, 16 anos de cigarro dão para comprar um carro novo. Já entrei no meu terceiro carro.
Você sabe o que é paixão? É amor desenfreado, irracional, ilógico.
Pois o que sinto pelo cigarro é paixão.
Compulsão... Um atrás do outro e quero mais.
Ilógico... Já fizemos as contas da grana que vai embora.
Irracional e irresponsável... Todo fumante sabe dos malefícios, não vou nem tentar relacionar. Odeio os médicos.
É por isso que fumo: PAIXÃO.
Sabe, tentei parar diversas vezes, diminuí inúmeras vezes. Mas a paixão é avassaladora, te devora e te leva para os prazeres do cigarro.
Foram tantas as tentativas! Foram tantas as derrotas! Meu Deus, como é gostoso fumar!
O pai do meu melhor amigo também foi fumante profissional. Ele já não conseguia respirar, por causa de um tal de enfisema (só de me lembrar dessa maldita palavra já deu vontade de tossir). Ele fumava escondido da esposa e dos filhos. Eu o visitei no seu último dia de vida. O Gus é de longe meu amigo mais querido. Mas muito chato, sempre foi um antitabagista militante. Muitas vezes fumei na casa dele. E ele sempre reclamou.
Chato mesmo foi a transformação da sociedade.
Repartições públicas, shopping centers, restaurantes, aviões, alguns hotéis, banheiros (até banheiros); elevadores, tudo bem; cinema e ônibus urbano nunca pôde. Escola pode. Criança também aprendeu a reclamar. Onde já se viu pirralho mandando contra cigarro de adulto? Os tempos mudaram.
Minha mulher deixou de fumar. Os filhos, incomodados, assumiram postura xiita intransigente, contra o cigarro, naturalmente. Naturalmente era fumar. Era.
Tentei parar outra dúzia de vezes. Uma vez eu me lembro de ter perguntado desesperadamente: o que um não fumante faz com as mãos?
De outra vez, fui diminuindo até o dia do embarque de nossa viagem internacional em família. Na hora do embarque, faltou o tal do último cigarro que eu pretendia filar no aeroporto. Maravilha! Passei oito, oito, repito oito meses sem fumar.
Numa roda de chope senti as pessoas fumarem deliciosamente seus cigarros e fumei um. Deu trabalho. O segundo e o terceiro desceram maravilhosamente bem.
Passei outros períodos menores sem fumar. Uma vez 10 dias, de outra vez 20 dias.
Eu me sinto traído pela minha família brasiliense, nós éramos seis fumantes. Só eu continuo. Meu irmão, paulistano, também profissional, já não tem o isqueiro dourado e nunca saiu desesperado para comprar cigarros pela noite afora. Bons profissionais: compramos de pacote.
Minha voz estava muito rouca. Ela vinha piorando muito. Até a poeira no meu trabalho me incomodava. Ninguém mais me ouvia. O médico disse que teria de fazer uma cirurgia, para tirar o calo das cordas vocais. Decretou: você tem de parar de fumar! Odeio médicos. Nos 15 dias que antecederam a cirurgia eu não fumei. Era páscoa de 2001. Aproveitei para fazer uma cirurgia que diminuísse o meu ronco. A cicatrização foi dolorosa e sem cigarros. O drama foi abrir o envelope com o resultado da biópsia. Câncer? Levei um dia para abrir o maldito envelope.
Negativo. Eu sabia, meu companheiro não iria me trair.
Eu deveria retornar depois de seis meses para nova laringoscopia. Sem fumar.
Jamais retornei ao médico, somente ao cigarro. 
Já tentei diversas formas. Combinação das diversas formas. Acho que existem tantas formas quantos existem de regimes para emagrecer.
Pouco importa. Juntei tudo, analisei minhas fraquezas e derrotas e marquei mais uma data. Sábado. Descobri depois que a data era cabalística ou metafísica: 02.02.2002.
Algumas coisas foram diferentes desta vez. Eu estava decidido a mudar muitas coisas na minha vida. Um livro me ajudou a ter auto-estima e trabalhar com metas.
Parei, fiz exercícios, não engordei, não substituí por comida, tomei muita água, comi muita cenoura.
Sou profissional. Já faz um ano que estou sem fumar. Mas continuo profissional. Muitas vezes já estive prestes a comprar um maço vermelho e branco. Aspirei a fumaça de vizinhos. Não me tornei xiita. Não senti melhora no meu fôlego, nem no meu bem-estar. O dentista já fez uma limpeza nos meus dentes. Tá bom, eu confesso, o meu olfato melhorou.
Sempre tive medo do vício. Sou profissional. Passei o pior ano da minha vida. Com pressões que não desejo ao meu pior inimigo. Separação, depressão, desemprego, solidão, vontade de ir ao Inferno, ansiedade, venda de casa própria. Mas não fumei.
Os artigos em que descrevem que as fábricas de cigarro escondem uma química viciante na fumaça dos cigarros me deu uma força enorme ao descobrir que não sou fraco. Minha luta é solitária contra uma poderosa e milionária máquina.
Nesse período de ausência de cigarro, teve um médico – odiosos médicos! – Dráuzio Varella, que me deu uma ajuda, ao mostrar que eu era do tipo especial: profissional, e por isso a minha luta seria inglória. Não sou profissional, o meu primeiro cigarro será o retorno ao vício. Sou um viciado.


ODE AO CIGARRO. Ou seria ÓDIO AO CIGARRO?

 
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