25 março 2013

Lavoura acaica

De Raduan Nasser
Companhia das letras

quase R$ 40,00
194 páginas
1 semana de leitura


O substantivo do título do livro remete a um cenário de uma fazenda enquanto o adjetivo coloca o cenário no passado. É o que acontece com André que cedo na vida, foge da vida na lavoura para uma cidade interiorana. Ele se afasta da severidade paterna e do sufoco de carinhos maternos. O irmão, Pedro, vai ao seu encontro provocando as lembranças de André.

É um livro denso, sufocante, que deixa você sem fôlego. O protagonista, André, penetra num fluxo de consciência onde esmiúça a memória e a história familiar. Para deixar o leitor sem ar, o autor usa o artifício de escrever capítulos em vez de parágrafos. O primeiro parágrafo e também diálogo só acontece quando já avançamos a 75% da sufocante leitura.

No encontro com o irmão percebe que “ele me abraçou, e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira.” E segue com “eu estava era escuro por dentro, não conseguia sair da carne dos meus sentimentos.” Na mesma linha de pensamento ainda segue quase a externar um grito de incitação: “não se constranja, meu irmão, encontre logo a voz solene que você, uma voz potente de reprimenda, pergunte sem demora o que acontece comigo desde sempre, componha gestos, me desconforme depressa a cara, me quebre contra os olhos a velha louça lá de casa.”

O pensamento de André é uma inspeção a todos os lados do prisma. Enxerga e opina tudo a partir de todos os ângulos possíveis como no momento em que rememora o pai: “digo que não há lugar para a blasfêmia em nossa casa, nem pelo dia feliz que custa a vir, nem pelo dia funesto que súbito se precipita, nem pelas chuvas que tardam mas sempre vêm, nem pelas secas bravas que incendeiam nossas colheitas; não haverá blasfêmia por ocasião de outros reveses, se as crias não vingam, se a rês definha, se os ovos goram, se os frutos mirram, se a terra lerda, se a semente não germina, se as espigas não embucham, se o cacho tomba, se o milho não grana, se os grãos caruncham, se a lavoura pragueja, se se fazem pecas as plantações, se desabam sobre os campos as nuvens vorazes dos gafanhotos, se raiva a tempestade devastadora sobre o trabalho da família;”. Fiz do ponto e vírgula o encerramento da frase, frase que só recebe um ponto uma página e meia depois.

Após muita reflexão, conclui que “não tive o meu contento, o mundo não terá de mim a misericórdia ; amar e ser amado era tudo o que eu queria, mas fui jogado à margem sem consulta, fui amputado, já faço parte da escória, vou me entregar de corpo e alma à doce vertigem de quem se considera, na primeira força da idade, um homem simplesmente acabado.” E segue com amargura “pertenço como nunca desde agora a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem sossego, dos intranquilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem de Caim.”

Finalmente, como uma peça que faltava num quebra-cabeças, volta com o irmão para recompor a família. Entretanto estraçalha todos os preceitos secularmente estabelecidos.

Particularmente, prefiro linguagem mais dinâmica, mais ágil e contemporânea e uma estrutura que permita ao leitor concluir por conta própria, mas Lavoura arcaica tem tantos méritos que foi premiado pela Academia Brasileira de Letras; recebeu o Jabuti da Câmara Brasileira do Livro e ainda foi escolhido Revelação pela Associação Paulista dos Críticos de Arte. Em 2001 recebeu uma premiadíssima adaptação cinematográfica.

19 março 2013

Por favor, qual meu nome?

Tudo aconteceu muito rapidamente. Eu e todos os outros milhares de vocábulos estávamos bem acomodados no nosso livro. Era um modelo importado de 1935. Objeto elegante, delicado, acabamento esmerado. Além de nós, havia seis mil gravuras e ainda 90 mapas. Na capa dura lia-se Diccionário prático illustrado. Dicionário com dois cês e ilustrado com dois eles. Era como se nossas poltronas estivessem numeradas. Cada termo estava assentado em lugar certo. E o conjunto estava de pé numa prateleira ao lado dos colegas, Português-Inglês / Inglês Português, Novo dicionário básico da língua portuguesa, Novíssima enciclopédia, Dicionário de sinônimos e antônimos.


Foi aí que um descuidado puxou o compêndio pela lombada e o derrubou ao chão. Várias páginas se soltaram e voaram assustadas com o sopro do ventilador. Eu, uma palavrinha azarada, bati a cabeça e perdi a memória. Esqueci meu nome. Em vez de me levarem a um médico, levaram-me a um lexicógrafo.

Essa figura de nome esquisito ajeitou os óculos de lente grossa sentou-se à minha frente, ordenou as minhas cinco letras e chamou-me de chusma. Ele afirmou que eu era uma chusma. Retruquei que não era esse o meu nome. Ele então me chamou de ruma, que dava na mesma. Eu disse que exigia respeito, e que sem querer ofender ninguém, meu nome era muito mais bonito.

O doutor ergueu uma das sobrancelhas e afirmou que eu era uma pessoa muito irritadiça, nervosa.

– Doutor, sei das suas boas intenções em tentar me ajudar a recuperar o meu nome, mas as suas tentativas foram vãs até agora. Meu nome não significa nada para ninguém?

– Seu nome também é o de um jogo de cartas.

– Poquer, trinca, paciência, buraco, truco, blackjack? - indaguei curioso.

– Muito bom. Gosto quando você se esforça para recordar. Mas são apenas cinco letras. Infelizmente essa dica foi fraca: é um jogo pouco comum, – o lexicógrafo faz uma pausa, mexe com os olhos para cima como se buscasse a memória, e continua – seu nome também é um verbo. O mesmo que saqueia, furta ou surrupia. Lembrou?

Eu neguei com a cabeça. – Eu sou do bem – respondi. – Será que não há nada melhor para dizer do meu nome?

– Há sim. Vou dar uma última chance.

– Qual é a dica?

– Você também é um sistema que transforma energia química em energia elétrica. Lembrou do seu nome?








Pense.



Lembrou?



Isso não é piada, nem pilhéria.





Se você pensou em pilha, acertou.






12 março 2013

Nem com Espírito Santo



Ônibus da Viplan em Roma?

Não.

A fumaça preta era do conclave.

05 março 2013

O vrum que me levou ao passado





O sol ainda estava sob as cobertas, mas eu, madrugador que sou, já estava de pé na frente da geladeira pegando um pacote plástico com pão de forma. Ouvi, do quinto andar, o barulho da moto do entregador de jornal. – VRUM.

No mesmo instante, como um flash, lembrei tempos antigos. Salivei pão francês e leite fresco.

Eu explico: o padeiro, no alvorecer do meu passado, pilotava uma lambreta verde com um baú de madeira. Parava na frente de quase todas as casas. Sabia de cabeça quantos filões, pãezinhos, roscas e litros de leite deveria entregar em cada casa. Entrava, deixava as garrafas de vidro e tampa de alumínio ao lado dos saquinhos de papel e retornava apressado.

Os sons que eu ouvia da minha cama, na infância, ainda reverberam na memória.

Primeiro ouvíamos ao longe o liga e desliga da lambreta se aproximando até chegar sob a nossa janela. Depois de embrulhar os pães mornos ouvíamos a tampa fechando barulhos no baú. – POW! Em seguida os passos corridos – TOCTOCTOCTOC – ecoando no quintal até a caixa protegida do tempo. Dois segundos depois retornava de mãos vazias, com os mesmos passos sonoros – TOCTOCTOTOC. Batia o portão de ferro – CLANC – e ligava a moto se afastando alguns metros até o próximo vizinho. – VRUM.

Hoje, devolvi o pão de forma à geladeira e caminhei silencioso até a padaria em busca de um sonho.

 
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