28 dezembro 2012

Trem noturno para Lisboa




 Autor: Pascal Mercier

Editora Record

460 páginas que levei 20 dias para ler

50 pratas nas melhores casas do ramo


O livro conta a história de Raimund Gregorius um convencional e ortodoxo professor de grego, hebraico e latim que aos 57 anos, de um estalo, resolve mudar tudo em sua vida. Abandona os alunos da escola no meio de uma aula em Berna, na Suiça, e pega um trem para Lisboa motivado pela sonoridade da palavra “português”. Tem a curiosidade aguçada pela descoberta do livro Um Ourives das Palavras escrito por Amadeu Inácio de Almeida Prado. Gregorius, na procura de remontar a biografia do autor encontra muitas reflexões sobre a vida e a morte.

O autor foi muito feliz na escolha das metáforas. Um trem para transportar o personagem para uma nova paisagem e vida. Na nova cidade, por um incidente é obrigado a trocar os óculos que permitem que enxergue novas realidades. Os cenários escolhidos, Berna e Lisboa são opostos entre si. Uma incrustrada nos sufocantes e gelados Alpes enquanto a outra ao nível do mar tem clima quase tropical. Por fim troca dois idiomas: grego e hebraico com sons e grafias diferentes do português com o alfabeto romano.

As palavras são o elo da cadeia filosófica que transporta o personagem na história.

Por exemplo, em relação a aneurisma escreveu à página 99: “Qualquer instante pode ser o último. Sem o mínimo pressentimento, no mais completo desconhecimento, vou transpor uma parede invisível atrás da qual não existe nada, nem sequer a escuridão. O meu próximo passo pode muito bem ser o passo através dessa parede. Não seria ilógico sentir medo disso, uma vez que nem vou vivenciar esse súbito apagar e sabendo de antemão que tudo é assim mesmo?” Ou para as sombras da alma escreveu à página 152: “As histórias que os outros contam sobre nós e as histórias que nós mesmos contamos – quais delas se aproximam mais da verdade?” Para medo anotou: “medo se tem de algo que ainda está por acontecer, que ainda temos que enfrentar.” E ainda à página 327 meditou: “Cheguei a pensar que o espírito de Amadeus era, antes de mais nada, linguagem, – que a sua alma era feita de palavras.”

Há frases dignas de registro: “Um ruído alto, que parecia vir de uma distância medieval.” (página 112); “silencioso como um navio sepultado no fundo do mar.” (página 176); “na escuridão, o ranger da porta parecia bem mais ruidoso do que durante o dia, mais ruídoso e mais proibitivo.” (página 177);

De todo modo, acho que a algumas consultas à Internet são importantes para a melhor compreensão de algumas passagens:
Cartão postal com a ponte Kirchenfeld e os Alpes ao fundo, em Berna na Suíça

Cartão postal com a ponte Kirchenfeld, Hotel Bellevue, Palácio Nacional e cassino



Tarrafal: É um presídio de segurança máxima construído nas Ilhas de Cabo Verde. Para lá foram enviados os presos políticos da era Salazar. Pelo menos 37 deles morreram sob tortura.

Biblioteca Joanina de Coimbra, maravilhosa na aparência e na descrição à página 401.

E, para finalizar as consultas à Internet, confirmo que o livro Um Ourives das Palavras e o autor Amadeu Inácio de Almeida Prado são ficção.

Não sei como o tradutor, o revisor e o editor deixaram passar seis “ele” em cinco linhas à página 41. Por falar em estranhezas, o verbo recender aparece quase uma dúzia de vezes. Estranheza por ser uma palavra nada usual, pelo menos no meu vocabulário.

Se eu gostei? É de difícil digestão, mas gostei. Gostei e recomendo.

12 dezembro 2012

Casamento em crise

Aurélio estava no banheiro, com o rosto coberto de espuma de barba e com uma toalha na cintura, quando a esposa, furiosa, escancarou a porta da privacidade.

– Aurélio! O que é isso no seu pijama?

Essa foi a primeira investida irada de Ana Maria enquanto quase esfregava a mancha da calça do pijama na cara do marido. Antes mesmo da resposta desferiu perguntas como uma metralhadora.

– Você agora deu para sair com vagabundas? Essa coisa molhada não é seu gozo, que eu conheço. O que é isso? Você não me respeita mais não? Sai com piranhas e depois vem deitar na minha cama, ao meu lado, com essa coisa pingando? Eu vou te capar! Não pense você que eu não sabia do seu caso com a Juliana! Ela até é bonitinha, chego a ter simpatia por ela, mas agora você passou dos limites. Você arrumou mais outra! Está se deitando com mulher ordinária, com pistoleira, com mulher da zona. Você, meu querido Aurélio, está trocando cetim por lençóis impregnados de sujeira, de piolhos, de vermes da escória. Onde você foi parar? Que decadência, Aurélio. Que decadência!

O marido segurava o aparelho de barbear com a mão direita enquanto com a esquerda tentava fechar a porta para interromper a represália que ninguém mais ousava.

– Olhe-se no espelho. Cadê aquele Aurélio cheio de orgulho? De dignidade? De poder? Você nunca foi homem de rastejar na sarjeta dos ratos. Seu lugar é na ponta da mesa, onde o coloquei. E, largue o trinco desta porta que eu ainda não disse tudo que eu tinha para dizer.

Ele, constrangido, tira a mão do trinco da porta e ajeita a toalha que ameaça a cair junto com a vergonha.

– Isso mesmo, segure esta toalha, junte com o pijama e a cueca melada para levar para a lavanderia. – fez uma pequena pausa – ou queime se preferir. Só não me espalhe essa doença suburbana na casa da sua família. – jogou o pijama nos pés do marido e virou-lhe as costas.

Eles já estavam casados há 22 anos. Com os filhos na universidade e vida estabilizada. Uma casa em condomínio fechado e outra casa na praia. Ele diretor numa empresa de transportes de carga e ela dona-de-casa.

Ana Maria é aquilo que os invejosos chamam de dondoca. Levanta depois das nove. Joga tênis duas vezes por semana e vai para a academia nos outros dias. À tarde tem uma rotina árdua. Nas segundas-feiras vai ao supermercado, nas terças e quintas joga pife, às quartas-feiras tem aula de pintura e nas sextas-feiras é dia de massagem e cabeleireiro. Aos sábados, enquanto o esposo joga golfe, ela visita lojas de moda e calçados. Desde pequena foi acostumada ao conforto pelo pai, dono da transportadora.

A esposa sempre soube do caso do marido com Juliana. Era impossível ignorar uma sombra. A amante era uns dez anos mais nova. O que tinha de bonita , tinha de insegura. Tão insegura que procurava imitar Ana Maria em tudo. Frequentava o mesmo cabeleireiro, ia às mesmas lojas, jogava tênis, estudava piano em vez da pintura. Adicionou silicone aos peitos e era paciente do mesmo ginecologista. Tudo bancado pela mesmo homem.

Ele já se encantara por mulheres mais novas outras duas vezes. Ana Maria, sempre segura e autoconfiante, soube dos casos. Eram apenas casos, duraram semanas, talvez alguns meses. Aurélio cansava e sossegava, retornando à vida caseira e familiar. Agora era diferente, sentia-se ameaçada pela ambiciosa concorrente. O caso já durava dois anos e Aurélio sequer disfarçava inventando viagens. Tanto que fora visto com a rival ocupando a mesa de canto no restaurante antes ocupado em família. Não se incomodava em ouvir comentários maldosos.

A preocupação de Ana Maria consistia em perder um casamento confortável. Uma escolha calculada na adolescência. Ele era um rapaz atraente, esforçado, inteligente, culto e refinado embora de classe mediana. Nada que um bom emprego não resolvesse. O rapaz transformou-se em senhor, depois em doutor, trabalhou muito e chegou merecidamente a diretor na firma do sogro.

Ana Maria soube que Juliana inocentemente perguntara a um lojista o preço de um vestido de noiva. Começou a respirar o ar da separação. Esse foi o limite. Mesmo transtornada não seria capaz de se vingar deitando-se com outro homem. Ficou tentada. Aurélio não suportaria ser passado para trás, jamais conseguiria tolerar a traição, seria um tiro no orgulho. Mesmo cobiçada, jamais dividiu cobertas com outro homem, não seria agora, por vingança. Mas estava decidida a vencer a noivinha inexperiente.

Numa quarta-feira, desmarcou o jogo de pife e marcou com o ginecologista.

Em vez das queixas e consulta habitual Ana perguntou pelo filho do doutor, se ele estava feliz no emprego, que ela havia arrumado para ele, e mais algumas perguntas que pareciam sem nexo até que deu a ordem ao médico:

– Quero que você contagie a Juliana com gonorreia.

Desnecessário dizer que Aurélio sentiu-se traído por Juliana, comprou um pijama novo e retornou para as cobertas de cetim.

 
Search Engine Optimisation
Search Engine Optimisation