27 fevereiro 2007

Getúlio e Virgínia Lane

Segundo o Tutty Vasques, a história da ex-vedete Virgínia Lane mudou o tiro mais famoso do país: o que matou Getúlio Vargas.
Virgínia Lane concedeu a Roberto Canázio, da Rádio Globo, no último dia de Carnaval uma entrevista onde falaram sobre marchinhas de época e da atração que as pernas da ex-vedete ainda exerce sobre o público.Em um dado momento, a conhecida relação amorosa que ela manteve com o presidente Getúlio Vargas enveredou pelo delírio absoluto. Miss Lane resolveu falar e vejam no que deu:
- Eu tive paixão por esse cara (o Getúlio);
- E você freqüentava mesmo o Palácio do Catete?
- Você quer saber de uma coisa que vou dizer pela primeira vez. É meio perigoso... Eu estava na cama com ele quando entraram e o mataram. Ele foi assassinado, meu filho! Quando ouviu o barulho de gente entrando no quarto ele ainda chamou o Gregório Fortunato e mandou que ele me jogasse pela janela.
- Você viu o assassino?
- Eram quatro homens de máscaras que atiraram nele. Dois deles ainda correram para o Jardim, tiraram minha roupa, me deixaram nua em pêlo e disseram “vai, vagabunda, vai arrumar outro presidente. Vou contar toda essa história no livro que estou escrevendo, “Sua Excelência, a vedete que viu”. Sou uma testemunha viva da morte de um homem com quem não tive um casinho, não. Passei quinze anos dormindo e acordando com ele.
Eu escutei a entrevista e fiquei pensando: será que ela esclerosou ou a história é outra?

Logo após ler a coluna de Tutty Vasques em O Globo enviei e-mail com meu depoimento:

Pois eu, Roberto Klotz, afirmo: a história de Virgínia Lane é verdadeira.

Era quinta-feira. Passamos 24 horas fechados dentro de um armário escuro no hall de distribuição dos quartos do Palácio do Catete. Trezoito, era o líder, só poderíamos sair do armário após a ordem dele. Anos mais tarde soube que ele nos contratou a pedidos de Carlos Lacerda. Cicatriz estava ansioso, queria terminar o trabalho logo. Mão Negra não dizia palavra. Nós só poderíamos entrar no quarto após o grito do presidente. O presidente mantinha uma rotina impressionante, todos os dias, às vezes mais de uma vez, urrava igual ao Tarzan, seu ídolo, ao terminar sua relação fantasiosa com Jane. O nosso problema é que o presidente estava sempre disposto, não tinha hora certa. Virgínia tinha quatro roupas selvagens para agradar ao presidente. Não tínhamos certeza da hora, sabíamos apenas que iria acontecer e que sua excelência era dinâmico e rápido.
Deviam ser umas cinco e meia daquela fria madrugada quando Virgínia abriu o armário e escolheu a roupa de oncinha que estava num cabide logo à minha esquerda. Foi um momento inesquecível. Pude sentir o perfume de Miss Lane. Não era o perfume de uma vedete vulgar, era o cheiro de uma dama. Ela fechou a porta do armário e eu fechei meus olhos deixando fluir o aroma do perfume até chegar aos neurônios que instantaneamente acionaram a vitrola cantando sassaricando na voz maviosa e provocante de Virgína Lane. Aquela era a minha sensação predileta: medo e tesão. Meu desejo era entrar logo naquele quarto onde estava presidente. Por uma questão de ordem, eu aguardaria minha vez.
Cicatriz me cutucou:
– Será que Gegê ainda vai demorar muito?
Fiquei furioso. Odeio que interrompam minhas fantasias.
Neste exato segundo, o presidente imitou o Rei das Selvas e bateu com os punhos fechados no próprio peito.
Trezoito, Cicatriz e eu saímos do armário em direção ao quarto. Mão Negra, que também estava estimulado, ficou para trás porque estava com as com as calças arriadas.
Abri a porta, Cicatriz afastou a gostosa da Virgínia, Trezoito atirou. Mão Negra abriu a janela para Virgínia correr. O Tarzan, digo, o presidente ainda chamou por Fortunato antes de bater com as dez. Trezoito pegou a arma e colocou na mão de Getúlio. Corri atrás de Virgínia e tentei convencê-la que agora seria a minha vez e depois seria a vez de Mão Negra. Ela ficou brava, se esquivou e xingou com um sonoro palavrão. Mão, irritado ainda gritou:
– Vai, vagabunda, vai arrumar outro presidente.

Guardei este segredo desde aquele 24 de agosto de 1954 por amor, tesão e respeito a Virgínia. O crime já prescreveu e como ela abriu o bico, confirmo para quem quiser saber.

Minha única dúvida é quanto ao dia da semana, quinta-feira. O restante, é a mais absoluta verdade.

※ ※ ※ ※ ※
Hoje, dia 28 de fevereiro, em 1920, nasceu a cantora, vedete e compositora Virgínia Lane.

24 fevereiro 2007

Sombra da Figueira


Fim de tarde, sentei-me no banco da praça. Minhas companhias eram a sombra da figueira e um livro ilustrado. Acomodei-me, estiquei as pernas e abri o livro.
Uma carruagem parou na minha frente. Mexi interrogativamente a sobrancelha direita. O cocheiro, numa reverência com a cartola, fez um convite para um passeio. Depois de ser chamado Mi Lord, quem não iria?
Rapidamente chegamos a um enorme paredão de pedras cercado com água por todos os lados. Uma ponte de madeira era a única ligação para a ilha do castelo. Entramos. A parelha estancou bem à frente do arco principal. Desci. Antes mesmo do primeiro passo, ouvi o chicote estalar. A poeira se levantou e fiquei só. Pela amabilidade do cocheiro imaginei uma comissão de boas-vindas. Mas não. Nenhuma viva alma. Nem viva, nem morta. Observei toda a volta, o pátio estava deserto. Não vi ninguém nas duas torres. Não percebi nenhum movimento sobre os telhados. Na guarita não havia nenhum guarda. Ninguém.
Lentamente entrei. Pares de archotes sugeriam o caminho. A curiosidade levou-me ao átrio. Um grande espaço, o teto em abóbada, paredes de pedras retangulares e vários arcos, sugerindo vários caminhos. Lugar imponente embora mal iluminado. Posicionei-me exatamente no meio da grande sala. Entre o ponto mais alto do forro e a estrela negra marcada naquele chão de pedras regulares que formavam enormes círculos concêntricos. Nenhuma sombra denunciava presenças. Mantive-me em silêncio e girei meu corpo lentamente até completar a volta inteira. O único barulho era o da minha pulsação. Fechei os olhos e puxei o ar. Não me mexi. Percebi sutil odor de suor. Aspirei novamente. Abri os olhos, direcionei o nariz para minha axila. Maldita tensão! Em vez de sair, escolhi uma das aberturas curvas. Em frente, à esquerda. Não era a maior, era a mais iluminada. O corredor de pedras prosseguia largo e, da mesma forma que a entrada, guarnecido por pares de archotes produzindo luz amarela e trêmula. Andei uns cinqüenta passos e cheguei a uma escadaria. Para cima escura e para baixo mal iluminada. Optei descer.
Dei duas voltas antes de chegar ao piso inferior. Novo corredor largo. Neste ponto o olfato acusou cheiro de resinas de árvores, provavelmente alguma mistura para aquelas chamas acesas. A sensação era de umidade, desconforto e calor. Cheguei a uma sala com várias armaduras. Na parede, observei seis longas lanças metálicas terminadas em ponta ou em lâmina com se fossem machados. Estavam dispostas horizontalmente. Vi três bastões com correntes prendendo bolas cheias de pontas. Percebi nobreza nos vários escudos com brasões coloridos. Estavam dispostas, ainda, algumas armas que pareciam enormes foices, além de outros objetos estranhos. Nenhuma armadura tinha elmo. Não encontrei elmos nem nada que lembrasse capacetes. A outra parede ostentava espadas grossas e finas. E várias facas. Escolhi uma com bainha de couro desenhada e que poderia ser presa à cintura. Imaginei guerreiros guilhotinados. Resolvi sair daquele depósito de armas.
Mais alguns passos e cheguei à ampla adega. Estanquei na entrada. Sempre foi meu desejo servir-me de uma taça de vinho diretamente de um barril de carvalho. O coração começou a bater forte. Olhei em volta detalhadamente. Uns trinta tonéis. Cada tonel devia ter uns mil litros de vinho. Nenhum movimento. Nenhum ruído. Entrei e fui direto para a estante e, na ausência de taças, escolhi um copo de estanho. Fui ao tonel mais próximo e no momento em que pus a mão na torneirinha, senti o cheiro. Aquilo não era vinho. Em vez da torneira iluminada, escolhi outra, mais adiante, na penumbra. Desta vez não aceitei a proposta do castelo. Limpei o copo com a barra da camisa e posicionei-me para receber o líqüido dourado. Eu estava certo, não eram tonéis de vinho, eram barris de uísque. Uísque especial. Aspirei profundamente o centeio fermentado até ouvir uma gaita-de-foles. Molhei os lábios, estalei a língua e sentei-me à enorme mesa.
Jamais poderia ser vinho. Fui chamado Mi Lord. As armaduras sem elmos não eram resultado de francesas guilhotinas. Certamente estaria na Escócia, e em toda Grã-Bretanha usam a forca. Imaginei a corda no meu pescoço. Senti um arrepio na espinha. E senti também uma mão no meu ombro. Tomei um enorme susto.
– Vô, não quer dormir em casa?
Rapidamente me recompus, ajeitei a faca na cintura, peguei o livro sobre transportes antigos e caminhei abraçado com meu netinho até em casa, deixando para trás a sombra da figueira.


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Primeiro lugar no concurso de contos da comunidade ††† Vale das Sombras††† no Orkut

23 fevereiro 2007

Meu amor voltou

Passei uma semana muito triste. Fui abandonado por um longo amor. Os meus dias ficaram mais longos e vazios.
No fim de semana, não suportei e saí em busca de companhia. Tive duas relações pagas, uma no sábado e outra no domingo. Não é o mesmo prazer. Nessas coisas sou muito conservador. Acho que para algumas coisas existe hora certa. Gosto logo cedo pela manhã. Estou disposto e receptivo. E no fim-de-semana tive que sair e buscar meu prazer.
Ontem eu quase telefonei implorando a volta. Mas resisti bravamente no meu orgulho.
Hoje cedo, abri a porta e fiquei excitado, estava lá, aos meus pés, o meu jornal voltou.
Tive mais uma relação. Amo jornal logo cedo.

15 fevereiro 2007

Socorro!

Quais os passos para incluir endereços de outros blogs ou sites no meu blog?

Quais os passos para acabar com a obrigatoriedade de senhas para os comentários?

Quais os passos para ganhar na Mega-sena? Bom, isso já é outra história...

14 fevereiro 2007

A escrita

Escrever é um prazer. Ter a quem escrever, mais prazeroso ainda. Ser correspondido é o orgasmo.
Mudei de cidade no começo dos anos setenta. Deixei para trás amigos, parentes, paqueras, e muita saudade da adolescência. Jamais gostei de ficar ao telefone. Passei a escrever. Escrevia até vinte cartas semanais. Quase todos retornavam. Com um amigo iniciei uma partida de xadrez por carta, era época de Mequinho e Bobby Fisher, todos jogavam xadrez assim como todos hoje sabem tudo sobre tênis. Meu pretexto era escrever.
Sempre fui sonhador e romântico. Meus temas sempre foram uma espécie de crônica com humor. Acho delicioso brincar com as palavras. Palavras escritas. Estas podemos garimpar, peneirar, escolher. Namoro as letras, busco o tom da palavra. O som da palavra. O teor mais adequado. As ditas podem ser aveludadas, ácidas, carinhosas, odiosas, sensuais, vingativas, informativas, casuais, irônicas, adjetivas ou substantivas.
Ao escrever temos o tempo do mundo para refletir, mensurar cada letra. Apagar e reescrever. Podemos ir à prateleira e nos socorrermos de um livro, da enciclopédia, de um guia, de um manual ou do pai-dos-burros. Na estante sempre há um desmancha-dúvidas a nos servir de bengala.
Tenho orgulho da minha cultura geral. Ela nem sempre está disponível na linguagem falada. Demora... e as pessoas procuram outro interlocutor. A oratória não é minha praia. È no texto que tenho a oportunidade de externar minha cultura inútil. A quem importa saber que dracma é a moeda da Grécia? A quem importa saber que a frase “um pequeno passo para o homem e um grande passo para a humanidade” foi bolada pelo pessoal de marketing para Neil Armstrong dizer ao pisar na Lua? Que o Japão é formado basicamente por quatro ilhas e que a maior chama-se Hondo? Que nasdróvia é o que russos e poloneses brindam ao tomar vodka? Quem se importa em saber que foi Pedro Américo que pintou o famoso quadro da Independência do Brasil? Estas e outras filigranas, só têm graça e poder na tinta sobre o papel.
Alguém em sã consciência empregaria a palavra filigrana ao invés de detalhe? Perceba que delícia, em vez de empregar escrita novamente, empreguei alguma coisa criada neste segundo: tinta sobre o papel. Quando falamos não temos a preocupação em evitar a repetição de vocábulos. No papel está tudo registrado, usamos dos sinônimos e criatividade. É nossa obrigação. É no papel que temos a oportunidade de mostrar erudição, cultura e educação sem sermos petulantes ou arrogantes. O texto é lúdico.
Na escrita pensamos e externamos sem sermos interrompidos, possibilitando iniciar, desenvolver e fechar determinado assunto. Colocamos a nossa opinião por inteiro e com os nossos argumentos por completo. Outra grande vantagem, ao menos para mim, é conseguir externar os mais profundos sentimentos, coisa que olho-no-olho jamais faria. E jamais fiz. No papel não temos as sobrancelhas para mostrar o tom da palavra, não adianta sorrir, ninguém percebe, se estamos indignados temos que usar as palavras. Os internautas resolveram de uma forma bastante interessante colocando entre parênteses suas percepções. Sorrindo, gargalhando, nervoso, apaixonado...Penso ser uma alternativa genial. Entretanto acredito que ainda podemos sussurrar doces palavras gentilmente no ouvido de quem nos quer ler. Viu só como toquei no ponto?
Minha dificuldade é a digitação. Uso dois dedos apenas e tenho que olhar o teclado. No oral sinto-me pessoa sem comunicação. Tenho dificuldades em iniciar uma conversa. Prefiro o silêncio a tomar a iniciativa. Não sou de falar alto e comandar uma boa roda de pate-papo. Sou o tête-à-tête. Prefiro aquela conversa particular. Mais intimista e menos balaqueira (termo gaúcho que se refere às pessoas que contam vantagens e de preferência em voz alta).
Abandonei o hábito de escrever por falta de tempo e de interlocutores. Ao menos não parei de ler. Não com a intensidade e qualidade que gostaria. Agora, trinta anos depois, ao estar desempregado e ocioso, resolvi buscar uma paquera pela internet. Não sei se vou encontrar o que busco, mas com certeza encontrei a quem escrever.
E tenho dito! Ou melhor: e tenho escrito!
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Retrato de Erasmo de Rotterdam por Quentyn Metsys em 1517

09 fevereiro 2007

Já fui vampiro

Diz a lenda que vampiros mordem pescoços. Não se enxergam no espelho. Que só saem à noite à procura das suas donzelas vítimas. Que são ameaçados com crucifixos. E que se afugentam com alho.
Adoro dar um chupão em pescoço, feminino é claro. Melhor que vampiros, procuro as donzelas e não donzelas, de dia e à noite também. Perguntam se não tenho espelho em casa, julgam que estou muito velho para caçar moças e mocinhas. Já os crucifixos não me ameaçam. Até faço o sinal da cruz de vez em quando. Que o bom Deus me perdoe, mas as moças valem o pecado.Minha maior identificação com os vampiros está no repúdio ao cheiro de alho. Tenho uma vizinha linda, gostosa e malcheirosa. Exala alho por todos os poros. O alho é invenção dos franceses. O Chanel número 5 também. Pois é, na minha outra encarnação, já fui vampiro.

04 fevereiro 2007

Despertar

Ao invés do despertador fui acordado pelo telefone.
– Alô!
Silêncio.
– Alô. Alô. Alô?
Silêncio.
– Alô?
Tém, tém, tém. Foi a resposta desligada que recebi.
Voltei para cama.
Sempre que o telefone toca de madrugada fico ligado imaginando desgraças e tragédias. A taquicardia pelo susto do barulho do telefone libera a adrenalina do despertar.
Eu deveria atender dizendo:
– Você ligou na minha casa. No momento estou dormindo. Após o sinal deixe seu recado.
Também poderia ter atendido de outra forma:
– Se você quer me acordar digite 1.
– Se você se enganou e já me acordou, digite 2.
– Se você é um chato e não tem o que fazer neste horário, digite 3.
– Se você quiser fazer uma cobrança desligue imediatamente.
– Se você for mulher, bonita, jovem, sensual e solitária venha correndo me encontrar, pois estou já estou acordado.

02 fevereiro 2007

Ode ao Cigarro

Este longo texto, para mim, tem um significado muito especial. Sempre fumei de forma alucinada e, tal qual todos fumantes, precisava parar. Nunca mais fumar era um compromisso muito forte. Parei numa espécie de acordo pessoal: ficaria sem fumar durante um ano. Ao se aproximar o vencimento do contrato entrei em paranóia. Eu estava louco de desejo para fumar, entretanto seria irracional voltar. Numa catarse escrevi “Ode ao Cigarro”. Ao chegar a data renovei o contrato por mais um ano. Hoje, dia 02 de fevereiro de 2007, renovo meu contrato por mais um ano.
Dediquei ao Dr Dráuzio Varella que o divulgou no site durante dois anos.
De brinde, este texto despertou o prazer da escrita: foi meu primeiro texto no mundo das letras.

※ ※ ※ ※ ※


ODE AO CIGARRO

Alguns anos atrás li um artigo da Cláudia Raia em que ela fez uma verdadeira apologia ao cigarro. Jamais fui fã de la Raia. Mas aquelas palavras... – Ah... como gostaria que tivessem sido minhas. Era exatamente o que eu gostaria de ter dito: – Pô, deixem-me fumar, ora bolas!
Não guardei o texto, mas lembro que era contra aqueles caras inoportunos que se incomodavam com nossa fumaça nos restaurantes ou filas. Até na casa da gente vêm esses xiitas incomodar.
Acordar no meio da noite... Fumar um cigarrinho e voltar a dormir. Só quem é profissional sabe como isso é gostoso.
Acordar cedo e, antes mesmo do cafezinho, dar aquela tragadinha é indispensável.
Eu só sei falar ao telefone com um cigarro aceso. O cigarro me dá segurança. Além da segurança, ele me dá tempo de escolher melhor as palavras entre um trago e outro. As palavras estão difíceis? Acendo outro cigarro e, com charme, tenho a resposta pronta.
Paquerar com um cigarro é ótimo. A mão fica ocupada e a gente esconde a timidez atrás da fumaça. Na euforia, eu celebro fumando. Na tristeza, eu choro fumando. Sono? O cigarro me desperta. Tesão? O cigarro me deixa ainda mais ligado. Hoje estou nervoso, preciso de um tragada profunda. Almocei uma feijoada, ora, que delícia! (Tô falando do cigarro, logo após, e mais um após o café). Cara, é muito bom! Jogar pôquer sem cigarro, nem pensar. Temos de esvaziar o cinzeiro que começa a transbordar pela segunda vez. Eu me lembro, uma vez eu fui à casa de uma menina e estava literalmente apaixonado. Acendi meu cigarro adolescente. Ela reparou que eram três os cigarros simultâneos. Ah, meu Deus do céu, que mancada!
Quantas recordações! Sou profissional desde os 15 anos, e olha que já estou com quase 51.
Todos nós fumávamos. O incomodado que se mudasse. Os tempos mudaram. Muitos amigos traíram e largaram o cigarro. Mais de uma vez fumei em lugares proibidos, ostensivamente. Marcando território. Igual a cachorro mijando em poste.
A cigarrilha era mais charmosa ainda, era cara e a tragada era pesada. Não agüentei e voltei ao meu cigarro. Estou falando de cigarro, jamais usei o tal do baseado, nada contra, mas minha praia é outra. Sempre tive pavor de ficar viciado. Sempre gostei de tomar um chope. Jamais me viciaria em bebidas. Cachimbo: caramba, que charme! Fumei um período. Mas tinha muitas desvantagens. As pessoas reclamavam que produzia muita fumaça forte, o seu trago, quando chegava aos pulmões, não era muito bem recebido. O cachimbo tem de esfriar. Tem de ser limpo. Quanta pantomina! Quero fumar logo!
Eu tenho a minha marca. Marca é fundamental! Se você não tem marca, fuma o que te derem, você não é fumante. É um chato filador.
Uma coisa eu sempre detestei: fumar na frente do espelho, dar aquela tragada profunda e ver que a cor da fumaça que desce é diferente da cor da fumaça que volta. Sempre acreditei que o filtro do cigarro retivesse as coisas ruins. É pra isso que serve o filtro.
Em outras épocas, acendia um cigarro no filtro do anterior.
O trabalho estressante. Um telefonema. Um chope. Uma transa. Uma fossa. Uma alegria. Um funeral. Outro telefonema. Uma negociação. Um passeio de carro. Uma conversa. Nenhuma conversa. Cigarro, companheiro de todas horas.
Cigarro tem de ser aceso com isqueiro a gás. A tragada com gosto de fósforo é muito ruim.
Eu me lembro de um isqueiro Ronson dourado que meu pai me deu. Aquilo é que era isqueiro. Era o Rolls Royce dos isqueiros. Dei para o meu irmão, que sempre desejou um isqueiro igual àquele, que, por outro lado tinha de ser recarregado de vez em quando e às vezes falhava. Isso me irritava profundamente. Nunca vou me esquecer do meu pai dando-me aquela maravilha. A cena era meio funesta. Mas o isqueiro! Meu pai havia sofrido um enfarte e, na condução da maca, no hospital, deu-me aquela pequena jóia, com uma lágrima no olho. Ele ficou bom, nunca mais fumou, e também não se importava quando as pessoas fumavam.
Você fuma? Tem uma coisa que me incomoda no cigarro. Soltar a fumaça dos pulmões de encontro a um guardanapo de papel colado nos lábios. Puxa, que coisa mais asquerosa! O papel fica mais sujo que o filtro. Sempre acreditei que o filtro do cigarro retivesse as coisas ruins. É pra isso que serve o filtro.
Eu jamais deixo as pontas se acumularem no cinzeiro; além de ser antiestético, fede.
Escrever, ler, descansar, prosear, cagar, pensar, concentrar, diga qualquer verbo: o cigarro sempre é companheiro.
Com meus vinte e poucos anos, peguei uma hepatite B e praticamente fui desenganado pelo médico. Eu odeio médicos. Só vou em último caso. Eu já havia desmaiado duas vezes. Não precisei de exames: hepatite. Entre outras proibições, veio a do cigarro. Médicos sempre são contra. Fiquei de cama 75 longos e intermináveis dias. Lá pelo sexagésimo dia, na fossa, fumei escondido, às 4 da manhã. Não desceu fácil. O segundo desceu redondo. Companheirão.
No dia seguinte, estava em forma. Vinte cigarros, um maço. Profissional é assim. Não, não sou compulsivo, sou profissional.
Como se chama mesmo aquela doença em que as pessoas não conseguem respirar? Eu ouvi falar pela primeira vez por um chefe de trabalho. Nossa, ele fumava demais, e tinha medo dessa tal doença, pois o pai dele havia morrido e ele presenciou o sofrimento do pai. Anos mais tarde o grande Ney faleceu com a mesma doença. A hereditariedade é fatídica.
Sempre adorei a água, e sempre fiz demonstrações de como meu fôlego é bom. Nos áureos tempos ficava dois minutos sem respirar. Estou meio fora de forma, mas acho que ainda consigo ficar um minuto nos dias de hoje. Apesar de profissional.
Sou capaz de escrever um livro: Meu Amigo: O Cigarro. Quantos momentos!
Quando minha mulher engravidou, teve uma grandeza enorme. Parou de fumar. Temporariamente. Na segunda gravidez, a mesma firmeza de caráter. Temporariamente parou. E lá se vão 19 anos. Pela primeira vez fiz algum esforço para parar.
Uma vez, meu irmão mais velho me perguntou quantos cigarros eu fumava por dia. Quanto custava o maço. Como bom engenheiro, fez as contas e castigou: “Com o dinheiro do cigarro, você já poderia ter comprado um carro zero”. Vai se danar! Cadê o seu carro zero? Você nunca fumou. Pois é, 16 anos de cigarro dão para comprar um carro novo. Já entrei no meu terceiro carro.
Você sabe o que é paixão? É amor desenfreado, irracional, ilógico.
Pois o que sinto pelo cigarro é paixão.
Compulsão... Um atrás do outro e quero mais.
Ilógico... Já fizemos as contas da grana que vai embora.
Irracional e irresponsável... Todo fumante sabe dos malefícios, não vou nem tentar relacionar. Odeio os médicos.
É por isso que fumo: PAIXÃO.
Sabe, tentei parar diversas vezes, diminuí inúmeras vezes. Mas a paixão é avassaladora, te devora e te leva para os prazeres do cigarro.
Foram tantas as tentativas! Foram tantas as derrotas! Meu Deus, como é gostoso fumar!
O pai do meu melhor amigo também foi fumante profissional. Ele já não conseguia respirar, por causa de um tal de enfisema (só de me lembrar dessa maldita palavra já deu vontade de tossir). Ele fumava escondido da esposa e dos filhos. Eu o visitei no seu último dia de vida. O Gus é de longe meu amigo mais querido. Mas muito chato, sempre foi um antitabagista militante. Muitas vezes fumei na casa dele. E ele sempre reclamou.
Chato mesmo foi a transformação da sociedade.
Repartições públicas, shopping centers, restaurantes, aviões, alguns hotéis, banheiros (até banheiros); elevadores, tudo bem; cinema e ônibus urbano nunca pôde. Escola pode. Criança também aprendeu a reclamar. Onde já se viu pirralho mandando contra cigarro de adulto? Os tempos mudaram.
Minha mulher deixou de fumar. Os filhos, incomodados, assumiram postura de xiita intransigente, contra o cigarro, naturalmente. Naturalmente era fumar. Era.
Tentei parar outra dúzia de vezes. Uma vez eu me lembro de ter perguntado desesperadamente: o que um não fumante faz com as mãos?
De outra vez, fui diminuindo até o dia do embarque de nossa viagem internacional em família. Na hora do embarque, faltou o tal do último cigarro que eu pretendia filar no aeroporto. Maravilha! Passei oito, oito, repito oito meses sem fumar.
Numa roda de chope senti as pessoas fumarem deliciosamente seus cigarros e fumei um. Deu trabalho. O segundo e o terceiro desceram maravilhosamente bem.
Passei outros períodos menores sem fumar. Uma vez 10 dias, de outra vez 20 dias.
Eu me sinto traído pela minha família brasiliense, nós éramos seis fumantes. Só eu continuo. Meu irmão, paulistano, também profissional, já não tem o isqueiro dourado e nunca saiu desesperado para comprar cigarros pela noite afora. Bom profissional, compramos de pacote.
Minha voz estava muito rouca. Ela vinha piorando muito. Até a poeira no meu trabalho me incomodava. Ninguém mais me ouvia. O médico disse que teria de fazer uma cirurgia, para tirar o calo das cordas vocais. Decretou: você tem de parar de fumar! Odeio médicos. Nos 15 dias que antecederam a cirurgia eu não fumei. Era páscoa de 2001. Aproveitei para fazer uma cirurgia que diminuísse o meu ronco. A cicatrização foi dolorosa e sem cigarros. O drama foi abrir o envelope com o resultado da biópsia. Câncer? Levei um dia para abrir o maldito envelope.
Negativo. Eu sabia, meu companheiro não iria me trair.
Eu deveria retornar depois de seis meses para nova laringoscopia. Sem fumar.
Jamais retornei ao médico, somente ao cigarro.
Já tentei diversas formas. Combinação das diversas formas. Acho que existem tantas formas quantos existem de regimes para emagrecer.
Pouco importa. Juntei tudo, analisei minhas fraquezas e derrotas e marquei mais uma data. Sábado. Descobri depois que a data era cabalística ou metafísica: 02.02.2002.
Algumas coisas foram diferentes desta vez. Eu estava decidido a mudar muitas coisas na minha vida. Um livro me ajudou a ter auto-estima e trabalhar com metas.
Parei, fiz exercícios, não engordei, não substituí por comida, tomei muita água, comi muita cenoura.
Sou profissional. Já faz um ano que estou sem fumar. Mas continuo profissional. Muitas vezes já estive prestes a comprar um maço vermelho e branco. Aspirei a fumaça de vizinhos. Não me tornei xiita. Não senti melhora no meu fôlego, nem no meu bem-estar. O dentista já fez uma limpeza nos meus dentes. Tá bom, eu confesso, o meu olfato melhorou.
Sempre tive medo do vício. Sou profissional. Passei o pior ano da minha vida. Com pressões que não desejo ao meu pior inimigo. Separação, depressão, desemprego, solidão, vontade de ir ao Inferno, ansiedade, venda de casa própria. Mas não fumei.
Os artigos em que descrevem que as fábricas de cigarro escondem uma química viciante na fumaça dos cigarros me deu uma força enorme ao descobrir que não sou fraco. Minha luta é solitária contra uma poderosa e milionária máquina.
Nesse período de ausência de cigarro, teve um médico – odiosos médicos! – Dráuzio Varella, que me deu uma ajuda, ao mostrar que eu era do tipo especial: profissional, e por isso a minha luta seria inglória. Não sou profissional, o meu primeiro cigarro será o retorno ao vício. Sou um viciado.


ODE AO CIGARRO. Ou seria ÓDIO AO CIGARRO?





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O maravilhoso desenho é de Maurenilson, um jovem talento brasiliense.


 
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