29 dezembro 2015

Metas e ações para o Ano Novo


Meta – Emagrecer 15 kg. Cortar pastéis, salgadinhos e batatas fritas.
Ação – Procurar um barzinho que sirva cenouras, rabanetes e pepinos para acompanhar a cerveja. Se não houver legumes, levar uma faca para cortar as frituras em pedaços menores.

Meta – Ser promovido na empresa.
Ação – Nem que para isso tenha que trabalhar.

Meta – Ser pontual.
Ação – Comprar um relógio novo.

Meta – Viajar para a Europa por 30 dias, atendendo antigo sonho da esposa.
Ação – Jogar mais vezes na Mega-sena.

Meta - Ser mais companheiro, amigo e generoso com a mulher.
AçãoIr ao happy hour no máximo quatro vezes por semana e, se sobrar algum, levar quibes para casa.

MetaSer mais atencioso com a mulher.
AçãoAo menos olhar para ela quando estiver bronqueando por chegar bêbado.

MetaFrequentar a academia de musculação.
Ação Estudar inglês para comprar um tênis americano na Internet.

Meta – Fazer as pazes com a sogra.
Ação – Levá-la para dançar no clube dos aposentados e dançar com ela. Pagar a cerveja.

Meta – Quitar as dívidas (aluguel, empório, prestação do carro)

Ação – Pedir novo empréstimo à sogra. 

22 dezembro 2015

24 de dezembro
Como em todas as repartições, hoje é dia de trabalho. É bem verdade que as coisas estão lentas, quase paradas. O número de funcionários está reduzido à metade, ou menos. Muito menos.
Depois de dezenas de reuniões e acaloradas discussões, elaboraram o mapa de responsabilidades e presenças para o final de ano. Tudo começou em agosto, quando os que têm visão de futuro programaram suas férias somando Natal, réveillon e férias escolares. Os ajustes continuaram em todas as rodas de conversa. Na época, todas as premissas foram analisadas com muita dedicação. Quem vai viajar? Para onde? Quem vai receber visitas de parentes? Quem vai visitar parentes? Quem vai tirar recesso de Natal? Quem vai fazer o recesso do Ano Novo? Quem diz que vai trabalhar e na última hora diz que teve dentista? Quem não cumpriu o combinado do outro ano? Era hora de blefar, dizendo que fez um monte de horas extras durante o ano e que agora não queria nem saber: vai tirar uma folga compensatória, mais que justa e merecida. Quarenta dias! Assim mesmo: quarenta por extenso. De 17 de dezembro, uma segunda-feira, até o dia 26 de fevereiro, uma quinta-feira, logo após o carnaval.
Misturando a lógica, justos argumentos e chantagens emocionais, tudo foi acertado verbalmente: cada um por si e Deus por todos. Azar de quem está iniciando no serviço público e crê que todos cumprirão palavras e compromissos.
Mesmo em dias como hoje, sempre fui responsável e cônscio dos meus deveres e obrigações. Chego cedo, penduro o paletó no cabide, aponto meus lápis com meu canivete vermelho, leio o jornal do chefe e tomo cafezinho nos mesmos e rotineiros horários.
O dia está diferente. O telefone toca silêncios. Não há entra e sai de gente. No caminho da sala ouvi as pessoas se cumprimentando e, mecanicamente, desejando Feliz Natal. Alguns se queixaram por ainda terem de comprar presentes. José disse que irá, como todos os natais, cear com os pais até as dez e meia e depois deverá atravessar a cidade e cear novamente, agora com os sogros.
Abro dois envelopes com bonitas mensagens de Natal. Antigamente os fornecedores entregavam cestas de Natal, depois agendas ou garrafas de vinho. Agora, cartões. Amanhã, apenas um e-mail.
Hoje, não há escola. Muitas mães levam as crianças para o serviço. É impossível concentrar-se no trabalho com tantas crianças correndo e gritando pelos corredores. Particularmente, deixo minha porta fechada. Todos sabem que tenho muito a fazer. À minha frente, uma enorme lista de amigos e parentes. Ligo para todos, um por um, desejando boas-festas. Na maioria das vezes, respondem sem originalidade, desejando o dobro. Ao telefonar para os celulares, alcanço as pessoas no trânsito, à beira do fogão ou nas compras desesperadas. Todos muito atarefados e estressados com as últimas providências natalinas.
Enquanto isso, as odiosas crianças continuam agitando gritarias perto da minha sala. Murmuro baixinho minha prece para afastar moleques arteiros. Diabos, será que tenho de berrar ao telefone para transmitir mensagens de paz?
Lembro-me da minha infância. No Natal, reuníamos a família. Fazíamos uma oração. Trocávamos lembranças. Nada comprado. Essa regra era fundamental. Tínhamos que fazer o presente para cada pessoa. Era nossa maneira de demonstrar amor e carinho. Foi assim que eu me lambuzei com um vidro de geleia de jabuticaba, só para mim. Tia Juliana costurou o meu pijama predileto. Para o meu melhor estilingue, o Tio Alberto usou a borracha de uma câmara de pneu de bicicleta. Nós, que éramos crianças, cantávamos as canções de Natal.
Acho que o espírito natalino desapareceu. A magia foi apagada pelo egoísmo, pela propaganda e pela falta de tempo.
Agora, do corredor, ouço os gritos do Tonim. Fico arrepiado. Garoto irrequieto. Pirralho atrevido. Moleque arteiro.
Não deu outra. Minha porta é escancarada e...

— Tiooooooooooô, Feliiiiiiz Nataaaaaaaal! Hô, hô, hô!
Era o Tonim em carne e osso e gorro de Papai Noel, correndo ao meu encontro e tascando um delicioso beijo lambuzado.
Rápido como um cometa: veio, deixou a luz e saiu.
Uma lágrima rolou.

O espírito natalino ainda vive!

15 dezembro 2015

Salada russa

Salada russa

Outro dia fui a um jantar na casa de amigos. A dona da casa serviu um jantar impecável e delicioso. Leitão, batata palha, farofa, salpicão, arroz e autêntica salada russa. Saxofone, bateria e piano embriagavam inclusive os abstêmios. Alegria e descontração no ar. Noite memorável! Memorável porque recordou-me a salada que minha mãe aprendeu com minha avó: salada russa.


Durante décadas a salada russa foi a contribuição da minha mãe, sucedendo minha avó, para a ceia natalina. Esta salada é tradição familiar. As garfadas trazem recordações de tios e tias, parentes queridos. Muitos nasceram, cresceram e também aprenderam a saborear a salada russa. Alguns se foram. Todos envelheceram.
No ano passado, pela primeira vez fiz a refrescante salada para o Natal em casa. Foi aprovada. É muito simples e rápida.

15 vagens picadas cozida
1 maçã crocante ou 2, se forem pequenas
1 lata de ervilhashoje existem ervilhas congeladas, são muito mais saborosas
½ vidro de pepinos em conserva ou o vidro inteiro
2 ovos cozidos
1 cebola grande
cenoura ralada no ralador grosso
presunto em cubinhos
os ingredientes devem ser picados como se fosse para um vinagrete
½ xícara de vinagre
3 colheres de maionese
pimenta-do-reino em
azeite a gosto
misture tudo  e enfeite a vasilha, em uma das laterais, com uma folha de alface

Assim como está, é a receita que consta na página 37 do meu caderno. Traduzi das receitas da minha mãe. O caderno materno é escrito em alemão, parcialmente com caneta tinteiro. Letra redonda e caprichada. Curiosamente, ela anotou datas logo abaixo do nome do prato. A salada russa consta com data de 21 de dezembro de 1949, Muschka. Curioso? Muschka era como minha mãe chamava carinhosamente minha avó. Isto faz supor que este deve ter sido o ano em que minha avó teria passado a incumbência e responsabilidade para minha mãe para as então solenes reuniões natalinas. Ainda lembro que, no início dos anos sessenta, o traje era terno e gravata para os homens e meninos. Longo para as senhoras e senhoritas. E eu considerava aquilo absolutamente natural!
Conversei reminiscências com minha mãe e ela pegou uma desbotada caixa de papelão do fundo do armário. Lembranças. Medalhas de natação, uma rosa vermelha seca pelo tempo, um crucifixo de prata, cartas amarradas com uma fita verde, várias fotos em preto e branco da minha avó com meu avô e seu inseparável charuto. Uma foto amarelada dos meus avós a bordo de navio na migração para o Brasil. Livro de poesias com dedicatória do meu pai para minha mãe e o caderno de receitas da minha avó.
Era isso que eu buscava. Minha mãe, com mais de oitenta anos de experiência, não teve dificuldade em localizar na letra gótica a receita de Russische Salat. Percebi de onde minha mãe aprendeu a anotar data e origem das receitas. Russische Salat, Franzl, 28 April 1920. Minha mãe contou que a mãe dela fez a salada a pedidos dele no aniversário do meu avô, quando ficaram noivos. Franzl era a forma amorosa como ela o chamava.
Que bonito, mãe!
– Aqui, junto da foto do noivado, tem uma anotação do seu avô dizendo que ele aprendeu esta salada quando esteve na Rússia, na primeira guerra mundial. Esta é a receita em russo com a letra dele. Tem até carimbo do ministério do czar.

Não tenho mais dúvidas: esta sim é que é a autêntica salada russa.

08 dezembro 2015

Número na cabeça


Publicado no jornal:
Na Estrutural, uma das cidades mais carentes do Distrito Federal, a inspiração dos jovens ao mudar o visual passa longe das celebridades dos campos e palcos. Agora, os pedidos mais comuns nas barbearias da região são artigos do Código Penal, números que representam a incredulidade – como o 666 –, além de listras que servem para identificá-los como integrantes de determinados grupos criminosos. CB – Comportamento – 16/01/2011


Por volta das seis horas da tarde de uma quarta-feira, a viatura encostou no meio-fio ainda com as luzes piscando e a sirene ligada. Parece que encontraram o grupo que constrange e ameaça com apologia ao crime. São facilmente identificados pelo corte de cabelo curtíssimo formando desenhos tribais. Os agentes saltaram empunhando armas e ordenando que os rapazes, que corriam na calçada, levantassem as mãos.

– Quietos aí. Não se movam! De costas! Encostem na parede! Mãos pra cima!

– É para não se mover ou levantar as mãos?

Sob a ameaça da arma de um dos policiais, os outros dois começaram a revistar os quatro elementos imobilizados.

– Documentos! – Gritou o homem com a ponto 40 destravada apontando o meliante mais próximo.

Habituado à falta de gentileza, o garoto de pele parda estava mais calmo que os agentes. – Posso botar a mão no bolso para pegar o documento?

Sem responder o policial consentiu gesticulando com arma.

O agente de polícia observa a cabeça raspada em recortes imitando as tatuagens agressivas e assustadoras.

O que é isso na sua cabeça?

É a moda.

O que significa esse 666?

Besta.

O policial dá um safanão na boca do delinquente. – Me respeita!

666 é o número do apocalipse. Da Besta.

E tu? – Cutucando com a pistola – Pensa que me assusta com esse 148 recortado no cabeção? Tô sacando! Código Penal, Artigo 148: Sequestro e cárcere privado.

Que é isso seu guarda, tá me estranhando? Sou da paz. Eu moro naquela casa, aí da frente. Pode olhar: número 148.

E tu? – Cutucando o terceiro – Exibindo terror para cima da comunidade? Tô de olho! 155 de um lado e 121 do outro. Não nasci ontem. Furto e homicídio.

Sou sangue bom! Trabalhador. Dou um duro danado para sustentar a minha lôra. Tenho que levantar às 4 da matina, preparar a matula e pegar o busão às 4 e meia. 155 é o número da linha na ida. Na volta pego o 121. Tudo lotado.

O quarto elemento nem se mexia, parecia mais assustado.
Tira o capacete!

Que diabos de números são esses? 4348? Se reponder cavalo e elefante vai levar um catiripapo no pé do escutador, só para ficar esperto.

Pega leve. Sou motobói. Entrego pizzas.

Agora só falta me dizer que a pizzaria tem 4.348 opções. – Ou vai me dizer que 4348 é o número da pizza calabresa tamanho grande?

Eu estava dizendo que sou entregador de telepizza e esse é o número do telefone.

4348? Tá gozando com a minha cara?

São quatro 3 e quatro 8. 3333-8888.

Os homens uniformizados se entreolharam, aquele que parecia ser o chefe da operação ordenou:


Três três um. Todos presos por desacato à autoridade.

01 dezembro 2015

Chatô o rei do Brasil

Esta foi a primeira vez que ousei comentar sobre um livro lido,
a data acusa 30/01/2005



Chatô o rei do Brasil

Fernando Morais

Companhia das Letras

736 páginas

Não anotei o valor da compra.




O polêmico Chatô na escrita de F. Morais



Sempre tive muita curiosidade em saber dos mistérios de poder do Velho Capitão. Guardava na memória um registro dele trajando elegante fraque encimado por brilhante cartola. Como paulistano passei na frente da Casa Amarela várias vezes. Uma vez parei para admirar os colibris confinados numa enorme gaiola. Ele era um mito. Tive a oportunidade de vê-lo uma vez.

O que mais aguçava minha curiosidade, foi ter visto no MASP, ainda na Rua 7 de Abril, uma obra de Manet com uma nota de agradecimento à família Lundgren pela doação. Fiquei impactado. Mesmo menino eu sabia quanto valia um quadro de um mestre. Os Lundgren são parentes e meu pai teve convívio com eles bastante próximo na década de 50. Ao voltar para casa elogiei o desprendimento na doação desta magnífica obra. Meu pai protestou. Disse que não se tratara de benemerência e sim de resultado de chantagem. E que dessa forma Chateubriand teria montado o maior museu do hemisfério sul. Um dia eu precisava tirar isso a limpo. O livro confirmou as palavras do meu pai.

Por essas e outras amei conhecer tanto sobre a figura.
                                                                       
Que aula de história! Chateubriand conseguia estar presente em todos bastidores dos momentos importantes. Fazia o mundo girar na velocidade e sentido que lhe interessavam.

Ele, conforme o título do livro era o rei do Brasil. Era poderoso, sem escrúpulos e dono da opinião na imprensa e na televisão nascente. Sem constrangimentos, comprava pessoas e anunciava ter comprado. 

Na leitura descobri que ele também foi um grande incentivador da aviação no Brasil. Percebendo os conflitos internacionais criou dezenas de aero clubes, inclusive o de Marília onde papai tirou brevê aos 17 anos.

Fiquei estarrecido com a cara de pau e estratégias montadas para assistir à coroação da rainha Elisabeth, à qual não fora convidado.

Além da fantástica biografia, chamaram-me à atenção no livro o volume da pesquisa, a quantidade de entrevistas e a profusão de colaboradores. O senso de organização, trabalho e acima de tudo contatos são destaque merecedores de aplausos. Trabalho complexo de pesquisa e montagem de equipe tão grande e multidisciplinar em diversos cantos. Destaco ainda o genial e divertido vocabulário léxico do polêmico Chateubriand que Fernando Morais resgatou. Nauseabundo, poltrão, sacripanta, celerado, torvo, flibusteiro, bufarinheiro e frascário foram alguns dos adjetivos nada delicados aplicados pelo protagonista aos que atrapalhavam seu caminho.

Gosto muito de pesquisa e percebo neste livro um rico veio de preciosidades.

Meu livro orgulhosamente tem dedicatória do autor.


Agora, passados dez anos continuo empolgado para ver o filme.

25 novembro 2015

A guerra do Vietnã não terminou



Ontem durante uma visita ao amigo Oswaldo, conversávamos sobre descontos malucos oferecidos por uma companhia aérea. A esposa dele lembrou de um momento recente em que uma companhia aérea ofereceu passagens de primeira classe para os lugares mais improváveis a sessenta reais. Ela tentou comprar uma, para qualquer lugar maluco que fosse. Nova Zelândia, Indonésia, Zimbábue ou Vietnã.

— Bem, como é mesmo o nome da capital do Vietnã? —  questionou ao Osw.

Nós quatro nos entreolhamos buscando no ar uma resposta.

Precisei cavoucar os fundos da cachola para lembrar da guerra do Vietnã ocorrida no final dos anos 60 e início dos anos 70 quando o norte comunista lutava contra o sul apoiado pelos americanos. Na época fiz uma associação mnemônica com S de sul iniciando o nome da capital.

Primeiro veio uma música:

Da sua guitarra o separou,
fora um chamado da América
Stop com Rolling Stones,
Stop com Beatles songs
Chamado foi ao Vietnã,
lutar com vietcongs
Ratatatá-ratatá, tatá-ratatá, tatá-ratatá, tatá-ratatá

Em seguida o veio nome. Yessssss! Funcionou!

— A capital do Vietnã do Sul é Saigon — exclamei entusiasmado.

Meu amigo, dono de memória e conhecimento louvável discordou. A capital é Ho Chi Min.
­         
         — Não, meu amigo, — repliquei — Ho Chi Min nunca foi capital. Ho Chi Min não é cidade. Era o nome de um dos líderes da guerra — a memória deu sinal de vida — a capital do Vietnã do Norte é Hanói.

— Isso foi há muito tempo. Houve uma reunificação e a capital é Ho Chi Min.

Meu celular estava sem bateria para confirmar a pendenga, numa consulta ao mestre Google.

A discórdia sequer alterou o tom da conversa. Aliás, seria ridículo se alterasse. Somente martelou meu HD interrorelhas. A conversa seguiu alegre.

No outro dia, logo após o café da manhã, liguei o computador para realimentar meu HD.

De fato, Ho Chi Min era do norte, foi o líder vencedor da guerra entre os dois países. Rebatizaram Saigon homenageando-o. Os países foram reunificados em 1976 com o nome de República Socialista do Vietnã. A capital do país, desde então passou a ser Hanói.

Eu estou indignado. Transtornado para valer.

Não se trata de vencer ou perder o tira-teima com o amigo.


— Absurdo! Tudo aconteceu há quarenta anos e ninguém me avisou. 



A imagem é um pagode de Hanói - Tran Quoc


17 novembro 2015



O funcionário da galeria de arte recebeu a incumbência de catalogar todos os quadros em exposição.

Com a fita métrica na mão mediu um por um e anotou autor e descrição dos quadros. A tarefa era fácil e agradável. Paisagens, animais ou figurativos. De vez em quando empacava no reconhecimento de alguma flor. Ele conhecia rosas, hortências e tulipas. Teve que consultar especialista para reconhecer helicônias. O trabalho ia maravilhosamente bem até chegar na área dos abstratos. Aquilo fugia à realidade. Ele contornou a situação embarcando nos sentimentos e passou a batizar os quadros com pomposos nomes: paixão alucinada, caminho da verdade, andarilho noturno, acabou o bolo de chocolate. Diversão pura.

Após medir e anotar as dimensões de mais uma tela defrontou-se com borrões acinzentados desconexos. As manchas indefinidas remeteram a um pesadelo depressivo e agressivo. Ele se recusava a designar pinturas com sentimentos ou nomes negativistas. Neste caso considerava a tarefa impossível. Resolveu ouvir a opinião dos visitantes da exposição para chegar a alguma solução. Assim rapidamente batizou o quadro .


O dono da galeria perguntou-lhe o porquê daquela escolha.

Explicou que dois visitantes indagados a opinar sobre o quadro em questão responderam com outra pergunta:


— Hã?

05 novembro 2015

O Sol é para todos

O Sol é para todos

Harper Lee

José Olympio

350 páginas

R$ 45,00

É um livro que recebeu um Pulitzer - prêmio norte-americano concedido pela Universidade de Columbia a pessoas que realizam trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura e composição. Além disso, a contracapa informa que foi escolhido pelo Library Journal como o melhor romance do século XX e também foi escolhido pelos leitores da Modern Library como um dos cem melhores romances em língua inglesa desde 1900. Mesmo que haja exageros, o livro deve ser, no mínimo, visto com reverência.

O título do livro – O Sol é para todos – é muito apropriado quando se refere a igualdade racial embora o título em inglês – To kill a mockinbird – seja genial. Mockinbird vem a ser um pássaro que imita o canto de outros confundindo quem o escuta. É considerado, por isso, um pássaro gozador, enganador, daí o metafórico título: para matar um enganador (ou mentiroso).

A história se passa em Maycomb, uma cidade fictícia do Alabama de 1935. Era uma época em que não havia televisão nem celulares, a comunidade era pequena, todos se conheciam e formavam juízo uns dos outros. Tanto que o sobrenome Haverford era sinônimo de burrice, os Ewell eram marrentos e ignorantes enquanto os Cunningham denotavam pobreza, não aceitavam doações, mas se aceitassem algum favor faziam questão de retribuir.


Mas o foco do romance é um pequeno ramo da família Finch. A protagonista e narradora é Scout, ou melhor, Jean Louise, como a tia fazia questão de chamar. Scout é uma menina de oito anos que aprendera a ler antes de ir para a escola. De personalidade forte, se vestia e brigava como um menino. Jeremy ou Jem, é o irmão quatro anos mais velho, leitor voraz de livros e jornais, protetor da irmã. O pai viúvo é Atticus Finch, advogado bem sucedido, extremamente ético e correto que educa os filhos com o auxilio da cozinheira negra Calpúrnia.

Sempre a partir do universo de Scout que era restrito à rua e à escola, a primeira metade do livro mostra como eram as relações entre as pessoas da cidade com seus pequenos problemas. Apesar das travessuras típicas da idade, Scout tem uma percepção bastante adulta das diferenças sociais e raciais.
A segunda metade da narrativa mostra Atticus convocado pelo juiz da comarca a defender um negro acusado de estuprar a filha de um homem branco. Jem e Scout são testemunhas da ignorância e preconceito reinantes no sul americano. A tensão é agravada pela grave crise econômica, a chamada Grande Depressão.
       
        Impossível ficar indiferente nessa história que aborda questões como a ética, o preconceito social e, sobretudo o racismo, tanto que o livro é indicado para a leitura nas escolas americanas.


          Li e recomendo com entusiasmo.

03 novembro 2015

PARIS - ANO 1000


“Qui habet aures audiendi audiat - Quem tem ouvido para ouvir, ouça.

Patevotrix traduziu as palavras celtas ao latim e agora as gravava a fogo no couro curtido do cordeiro nada cristão.
Isto foi em Paris a dois meses da virada do primeiro milênio.

Aos treze anos de idade Patevotrix queimou o lado esquerdo da face com óleo fervente. Foi tratado por três anos por um sacerdote com chás e emulsões. Agora, aos noventa e cinco anos, com postura ereta e apenas um olho na carne disforme do rosto, Patevotrix continua nos estudos que o mestre lhe ensinara. Herdou do druida centenas de vidros com os mais variados líquidos e pós. Essências, temperos, ácidos, cristais, cascas, folhas, pelos e tudo que a mente humana puder acondicionar em vidros pequenos, médios ou grandes. Herdou também duas paredes de estantes de escritos com documentos romanos, gregos, celtas, bretões e até papiros egípcios. À luz de vela, lia de tudo: filosofia, medicina, astrologia, botânica, fauna, antropologia...

Entre os manuscritos encontrou a fórmula para a poção da longevidade. Esta ele não traduziu. Desconfiava que a humanidade ainda não estivesse pronta.

“Na segunda noite da lua nova coloque sete cascos de tartarugas brancas bem lavadas no interior de uma ânfora de azeite junto com uma ferradura usada, acrescente pó de raiz de carvalho e um par de olhos de uma coruja da cor do ébano. Deixe fechado por três dias enrolada num lenço de seda vermelha. No quarto dia acrescente uma moeda de ouro. Das grandes. Embrulhe de novo no lenço e guarde sob a terra até a quarta lua cheia. Coe com o lenço vermelho e acrescente uma pitada de almíscar.”

“Tome duas colheres ao dia enquanto tiver lucidez. A primeira quando o sol desperta e a segunda quando a noite adormece o sol.”

O recluso velho de barbas brancas passava o dia em um enorme espaço iluminado por dezenas de tochas. Ele preferia aquele subterrâneo à luz solar. Assim ele não precisava ver os homens e cachorros sarnentos disputando comida nas feiras fétidas às margens do esgoto do rio Sena.

Para ele, aqueles eram os primeiros sinais do fim. Das trevas. Quando o sol e a lua se fundirem num cometa incandescente fagulhando terror.

Patevotrix quase não dormia. Era inquieto e meditabundo. Parecia captar a linguagem dos deuses sussurrada no crepitar da fogueira.

Paris, centro do mundo, fundada por celtas, invadida por romanos que a nominaram Lutécia e depois foi retomada pelos francos e passou a ser Paris. O destino de Paris é ter as ruas cheias de estrangeiros falando línguas estranhas.

Os sinais estão claros para Patevotrix. O papa reinou apenas três anos e faleceu. Escolheram um francês, Gerbert d’Aurillac, que, outrora, durante dois invernos frequentou as estantes e misturou líquidos junto com Patevotrix. Agora é o Papa Silvestre II. É ele que se entende com o frágil rei dos francos, Roberto II, o Pio. Roberto II é filho de Hugo Capeto, da dinastia dos capetinos.

Patevotrix resmungava baixinho: ninguém me engana – ejudus farinae – são da mesma farinha. Qual deles será o anticristo?

Todos os dias, as palavras encontradas em um manuscrito datado de Lutécia, Anno Domini CCCXIV, martelam seus pensamentos:

“E assim, com o novo milênio, tudo será anulado. Um dia, uma noite... Paris será um apenas o resto de uma enorme fogueira.

O vento dará o sinal. Serão dois dias de vento assobiando a música de satanás. No terceiro dia as árvores serão arrancadas aos céus. O céu as mastigará e vomitará neve de carvão e alcatrão. O dia será noite. As trevas darão lugar aos trovões e relâmpagos que, de tão fortes, iluminarão o interior das casas.  Para amainar o frio, a Terra será rasgada e do ventre brotarão labaredas imensas. No sétimo dia água salgada com cheiro de enxofre tomará as fendas abertas e apagará o fogo. Quando tudo estiver acabado, no silêncio absoluto, a peste sairá em busca das almas sobreviventes. Nem mesmo cadáveres putrefatos escaparão das doenças purulentas.”


Faltava apenas um mês para o novo milênio. Ao entardecer, Patevotrix, pela primeira vez, não tomou uma colher de azeite temperada com almíscar.

14 outubro 2015

Hibisco roxo

Hibisco roxo

Chimamanda Ngozi Adichie

 Companhia das Letras
R$ 37,00
324 páginas
10 dias de leitura

Impossível ler Hibisco roxo e permanecer indiferente. Inúmeros sentimentos nos tocam durante a leitura: estranheza, pena, raiva, dor, curiosidade, ignorância, incompreensão, identificação.

É a história da adolescente Kambili cujo pai, Eugene, empresário bem sucedido, impõe o catolicismo e a cultura inglesa à família e a quem os cerca. Por renegar as fortes tradições regionais o pai provoca inúmeros conflitos.

Eu queria penetrar de cabeça na história, por isso, no início da leitura anotei os nomes dos principais personagens imaginando que teria dificuldades para guardar os nomes africanos, tão longes da nossa familiaridade: Kambili e o irmão Jaja; o pai Eugene e a mãe Beatrice; a tia Ifeoma e os três filhos: Amaka, Obiora e Chima; padre Amadi, a empregada Sisi e o editor Ade Coker. Nem precisava, pois rapidamente assimilei todos. Mas eu ainda não estava à vontade.

A estranheza é óbvia por desconhecermos a língua, os costumes, a política, a geografia e o que acontece na Nigéria. Depois de algumas páginas a curiosidade me cutucou e consultei a Internet para conhecer um pouco mais sobre o país.

A Nigéria está situada ao norte do Equador, abaixo do Saara, no Golfo da Guiné.  É o país mais populoso da África com 250 etnias e mais de 500 línguas. A língua oficial é herança da colonização inglesa até 1960.

Conforme a pesquisa, 50% da população pratica o islamismo e habita o norte do país enquanto 40% segue o cristianismo e habita a região sul. Regiões do norte são frequentemente atacados por guerrilheiros cruéis do grupo fundamentalista religioso Boko Haram.

 A Nigéria faz parte da OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo, nem por isso é rica. Naquele país a legislação prevê pena de dez anos de prisão para o homossexualismo.

A capital, Abuja, não está entre as dez maiores cidades. A história se desenvolve nas cidades medianas Enugu e Nsukka localizadas a 600k a oeste de Lagos, maior cidade nigeriana.

A protagonista, Kambili fala igbo, língua e um dos principais grupos étnicos do país.

E é deste idioma que inúmeras palavras habitam as páginas do livro, nos inserindo no habitat africano. A narração em primeira pessoa engrandece e dramatiza ainda mais a história. Mas o pai determina que em casa se fale inglês. Preferencialmente se pense e sonhe em inglês também. Exige que os filhos sejam os primeiros nas suas respectivas salas de aula. Mas o rigorismo é mais acentuado ainda quando o assunto é religião.

A pressão sobre os filhos é enorme. Para eles há uma escala de horários para estudar, rezar, refeições, leitura e família. O diálogo nas refeições é permitido somente aos adultos.

A opressão sobre as crianças é absurda. Tanto que não é difícil a comparação das crianças com um cachorro criado numa casa de paredes altas e quintal cimentado.  Esse cachorro ao sair do portão pela primeira vez estranhará pisar na grama, não saberá como reagir ao ver um passarinho, um gato ou outra pessoa que não as da casa. Repentinamente irá descobrir que há variedades de cheiros e outras possibilidades além do prato de ração.  

A vida dos irmãos sofre uma mudança quando a tia Ifeoma entra na história.

“Sua risada flutuou até a sala do segundo andar”. “Tia Ifeoma era tão alta quanto Papa, com um corpo bem-proporcionado. Andava rápido, como alguém que sabia exatamente aonde ia e o que ia fazer lá. E falava da mesma maneira que andava, como se quisesse dizer o máximo de palavras no menor espaço de tempo possível.”

A presença da tia foi como se o portão da casa fosse aberto ao cachorro. A liberdade estava presa a uma longa corrente chamada “costume adquirido” durante a vida.

Como no momento em que o avô pagão estava doente e a filha de Ifeora, Amaka cuidava dele. “Eu quis me aproximar de Papa-Nnukwu, tocar os tufos de cabelos brancos em que Amaka passava óleo, alisar a pele enrugada de seu peito. Mas não ousei.”

A mesma prima, Amaka, apresenta a música nigeriana a Kimbila. Fela, Osadebe e Onyeka tocam ritmos pagãos proibidos dentro de casa. Eu, como sou curioso, baixei algumas músicas e continuei a leitura embalado pelo magnético som africano:


Com os portões abertos, conhecemos junto com a protagonista um pouco da realidade do país e passamos ao sentimento de identificação: pobreza, corrupção, censura, autoritarismo.  Kambili e o irmão descobrem um novo mundo, já não são mais os mesmos, mas não se atrevem a comentar o que veem. Apenas veem. A história evolui com a crescente opressão paterna, entretanto nem a mãe nem os filhos ousam criticar os atos entre si.

Só depois de um longo tempo e longe de casa, o irmão Jaja descobre que não só pode perguntar como é encorajado a questionar a vida.


A história é de uma força tão incrível que não temos vontade de parar a leitura. Apesar do final pouco decepcionante, recomendo a leitura com entusiasmo.
 
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