27 agosto 2007

Inverno

Como todos os dias, levanto e olho o tempo pela janela. Nestes últimos dias de agosto não existe possibilidade de chuva no Planalto Central. Ao contrário, em casa colocamos umidificadores para amainar a seca. Na falta, espalhamos bacias e toalhas molhadas. Crianças são as que mais sofrem.
Pertinho, vejo verde grama irrigada, mais à frente, suave névoa escondendo calmas águas do Paranoá. Ao fundo o horizonte vermelho.
Troco o pijama por uma camiseta e meias de lã por meias esportivas. Me espreguiço e vou caminhar. Na porta de saída do bloco recebo o impacto do frio no peito. Cumprimento o empacotado porteiro e, em vez de esquerda, escolho a direita. Às vezes temos que sair da rotina e mudar os nossos trajetos e rumos diários. Resolvi trocar as calçadas sujas de cocô de cachorro de madame por calçada marginal ao mato aparado em superquadra ainda não construída.
Andei cem metros e ultrapassei a linha de alcance dos aspersores. A grama mudou de cor para sem cor. Mais adiante formigas cruzaram a calçada numa trilha de cavacos marrons desrespeitando o caminho urbanamente civilizado. Prosseguindo, levantei a vista para o céu sereno e desmaiado. Abri os braços com as palmas abertas para captar energia. A força veio tão forte que podia senti-la pousando nas mãos. Emocionado e incrédulo eu queria ver para crer. Vi partículas pretas. Apurei o olhar e constatei fuligem. Para muito além da névoa seca o fogo pintava o horizonte de vermelho. Na lonjura a cor é suave.
Ainda é cedo. O dia acordou, preguiçoso, ainda não levantou. Está quase silencioso, até ouço cachorros latindo à distância. Devem ser vira-latas, cachorros escovados latem mais tarde.
As árvores nativas não são bonitas. Os galhos são tortos e retorcidos. São errados. Os troncos parrudos têm uma couraça de jacaré para sobreviver nas queimadas. E nesta época do ano, além de não serem bonitas, estão nuas mostrando esqueletos de campos de concentração. Sem conhecê-las não damos valor.
A cabeça recém-despertada capta sem chiados o que me acerca. Passarinho não chia. Passarinho pia. O pio do sabiá está muito próximo.
– Olha lá! Olha lá! Ouça, preste atenção! Faça da boca um assobio e repita. Repita assobiando: – piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô. Não é bonito? É apaixonante.
Continuo meu passo e vejo uma fumacinha no meio do terreno litigioso. Ali não há muito mato para ser queimado. Entretanto o instinto de preservação, nesta época de seca, sugere que eu apague o fogo enquanto estiver baixo. Eu mudo meu rumo na direção da fumaça. Nem precisei caminhar muito. Em volta do fogo vi quatro boquinhas escancaradas de fome, dor, frio e morte. O pai oferecia o desjejum caçado nas caçambas peçonhentas. Adiante da fogueira havia uma tenda de lona preta sob uma árvore de casca dura.
A única luz que havia para aqueles miseráveis urbanos era o amarelo solar das flores do ipê.
Piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô...

18 agosto 2007

Recepção ao primeiro-ministro do Reino da Estroína

Minha bela adormecida,

Que alegria receber notícias suas depois de tanto tempo. Estou flutuando nas nuvens por saber que você virá a Brasília para a recepção ao primeiro-ministro do Reino da Estróina, Frederico Gustavo III no Palácio do Itamaraty.
Quantas saudades e recordações guardo da nossa infância quando sua brincadeira predileta era brincar de princesa. Eu tinha que duelar com malfeitores, matar dragões e me ajoelhar aos seus pés para ser consagrado cavalheiro e merecer o prêmio máximo: um beijo na testa. Você estava sempre linda, coroada com uma tiara de lantejoulas brilhantes. Os tempos se passaram, e na última vez em que a vi, antes de mudar para Brasília você estava resplandecente no pôr-do-sol, caminhamos de mãos dadas e trocamos um único e delicioso beijo selando respeito e amizade eternas. Deixei-a na porta do castelo, depois subi no alazão e vim embora.
Passados quase trinta anos, você terá seu sonho realizado: um convite para participar de uma festa na corte.
Até parece que escutei sua voz macia quanto me escreveu:
– “Meu cavalheiro, como será e como devo ir ao baile?”
Minha querida, a recepção não será um baile, não haverá orquestra de violinos e já não se dançam valsas nos salões. A presença do homenageado no salão não será anunciada pelo bater do bastão pelo mestre de cerimônias. Nem a nobreza estará perfilada à entrada para recepcionar os ilustres convidados.
No convite consta traje de gala. O que requer vestidos longos para as damas e fraque para os cavalheiros. Os oficiais das três armas têm trajes próprios para esses eventos. É a oportunidade de ostentar orgulhosamente as insígnias que representam as condecorações e medalhas conquistadas por méritos. É também o momento em que ministros e altas autoridades estufam o peito com as diversas comendas e honrarias. Aqueles que não as têm, penduram medalhas de futebol de salão ou de concursos literários. Ouvi dizer que o presidente usará o colar com a grã-cruz de Estróina.
Não se preocupe em mandar costurar vestido especial, faça como todos fazem: alugue roupa de dourados e pratas. Não se preocupe com jóias, também há imitações perfeitas para alugar. Quem sabe você encontra uma coroa de brilhantes para que eu possa coroá-la rainha? Caso você não queira alugar, sempre há possibilidade de retirar do armário alguma roupa da avó e desfilar na passarela com a essência de milenar naftalina. Ah, antes que eu esqueça, é muito importante que seu vestido seja largo o suficiente para correr. Este é sempre o grande e esperado momento. A corrida ao bifê. Quando um garçom depositar a baixela de prata com a cascata de camarões será dada a largada. Todos sairão correndo para encher pratos, bocas, bolsas e bolsos de camarões. Quem já tinha o bolso cheio de salgadinhos joga tudo no chão para substituir por camarão. Então, previna-se com uma saia folgada e uma bolsa espaçosa.
Os garçons, com imaculadas luvas brancas depositarão mais umas dezenas de travessas com os mais saborosos acepipes. Com a mesma velocidade eles desaparecerão nas bocas dos convidados que, com suas bocas cheias, gritarão aos garçons para trazerem mais taças de vinho.
Ah, minha querida Bela Adormecida, Cinderela ou Rapunzel, esqueça seus sapatinhos de cristal e sua carruagem de cavalos de longas crinas.
Numa reverência, respondo à segunda parte da sua pergunta, minha princesa, como deves ir? Deves ir comigo, para que eu, seu fiel escudeiro, a proteja da dura realidade.
Beijo,
Despertador

07 agosto 2007

Perdedor de Deus


Sou um predestinado! Quando nasci todos já sabiam que meu destino seria o sofrimento. No meu parto não havia nem estrela nem cometa a iluminar o caminho. Apenas um buraco negro. Há os eleitos, sou o perdedor.
Quis a sorte que eu freqüentasse a alta classe. Sempre rodeado de moças apetitosas e rapazes fortes num desfile constante de corpos e modas. Não faço feio, modéstia à parte, sou escultural.A educação espiritual me ensinou a ouvir problemas alheios. A vida é terrível. Competitividade, falsidade, egoísmo, dinheiro, vaidade, paixão. A sociedade está com problemas graves e, em vez do diálogo, pancadas. Não consultam, não expõem, não conversam, não se queixam, não se confessam, apenas batem. Esta é minha sina. Só querem saber de bater em mim. Reflito, oro, medito, mas jamais revido. Absorvo bem os golpes da vida. Acredito em reencarnação. Devo ter sido muito mau e agora cabe-me a purificação. Meu aprendizado é apanhar sem revidar, responder sempre com um sorriso. Meu crescimento interno permite que eu sonhe uma vida melhor depois desta, estou cansado de ser boneco de academia de musculação.

02 agosto 2007

Político na tevê




Barzinho lotado na final da copa do mundo.
Político passa na frente da tevê.
Neguinho grita que deputado não é transparente.
 
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