28 março 2015

Tia velha


Quando era menininho eu odiava aquelas tias velhas, amigas da minha avó, que chegavam apertando bochechas falando que me viram nascer.

Hoje eu sou a tia velha.

24 março 2015

A máquina fantástica


Título original: A invenção de Morel
Adolpho Bioy Casares
Editora Expresso e Cultura – esgotado em todas as editoras
128 páginas
 
Participar de um grupo de leitura foi uma das melhores coisas que me aconteceu depois que resolvi viajar no mundo literário. Saí da rota comercial dos best sellers para navegar horizontes desconhecidos. A bússola são os colegas marinheiros do grupo de leitura que, via de regra, sugerem embarcações diferentes para destinos, para mim, sempre inexplorados.

Quando propuseram um autor argentino torci o nariz como o brasileiro que acompanha o futebol.

Ainda precisei comprar o livro numa livraria virtual uma vez que o livro está esgotado.  Recebi o livro amarelado reencadernado com algumas marcas de fita durex. Cheirava ligeiramente a mofo ao contrário de um novo que recende a tinta gráfica.

Ultimamente estou meio ressabiado com as apresentações, orelhas e contracapas que tenho lido. Todas são elogiosas. Aliás, é por isso que estão ali.

Então, foi assim, cheio de desconfianças, que li a apresentação de Jorge Luís Borges, o Maradona da literatura portenha.

Borges afirma que nenhuma outra época possui novelas de argumentos tão admiráveis quanto The turn of the screw, Der Prozess, The invisible man, Le voyageur sur la terre  ou como o desta , escrita em Buenos Aires por Adolpho Bioy Casares.

Ou seja, que acima de tudo, eu, como leitor, deveria prestar atenção no argumento da história. Foi o que eu fiz.

Trata-se da história de um condenado à morte que foge para uma ilha afastada. A ilha apesar de deserta possui algumas poucas edificações improváveis: um museu, uma igreja e uma piscina.

O fugitivo é prevenido por um italiano que vendia tapetes em Calcutá, que as construções datavam de 1924 e que nem os piratas chineses nem o navio do Instituto Rockefeller ousavam ir até lá. Que a ilha era um foco de enfermidade, ainda misteriosa, que matava de fora para dentro. Caem as unhas e o cabelo, a pele e as córneas morrem e o corpo só resiste de oito a dez dias.

Com esse início de mistério e quase de terror sabemos também que o fugitivo pela centésima noite anota suas sensações, medos e descobertas. E tomamos conhecimento da história justamente a partir das anotações do caderno do fugitivo.

Também, desde o início, o autor lança notas de rodapé de página que são absolutamente geniais, pela sutileza, quando questiona a veracidade do narrador ao prestar  algumas informações como a primeira nota que diz que as Ilhas Ellice são baixas e sem árvores ao contrário do narrador que diz que ali havia um morro e árvores.

 A história ganha vulto quando o condenado passa a ter companhia na ilha. Não sabemos se são alucinações, delírios, fantasmas ou pessoas de verdade. Cabendo ao leitor especular o mistério como num enredo policial.

Entre os vultos se destacam um homem, Malthus e uma mulher, Faustine, pela qual o protagonista e narrador se apaixona.

Estes são os cenários e personagens que o autor utiliza para divagar sobre a vida, sobre a morte e sobre a eternidade enquanto tenta descobrir se a origem dos vultos são fantasmas, se ele está morto ou até se são provenientes das alucinações provocadas pelas raízes que come.

O fechamento da história apresenta uma resposta verossímil às indagações e podemos aceitá-la mais do que sendo fantástica, mas de ficção científica.

E, por isso mesmo o argumento é genial, Borges tem razão, principalmente para as explicações para a Máquina de Morel.



Finalizando, sou grato por pertencer a esse grupo de leitura e assim, como o protagonista, ter a oportunidade de explorar terras por mais fantásticas ou fantasiosas que sejam.

17 março 2015

Palestra de autoajuda


Esta semana recebi três comunicações circulares relembrando a palestra com o prestigiado conferencista de renome nacional, o escritor de cinco best sellers, Dr. Tiago Neves de Melo Costa. Mesmo quem nunca ouviu falar em Melo Costa passou a enaltecê-lo após propagandearem a manada de informações.

O RH ressalta que as falas do Dr. Tiago superlotam auditórios. Que é muito importante se inscrever, apesar da gratuidade, e confirmar a presença, tendo em vista que o auditório comporta apenas trezentos felizardos. Que a palestra Melhorando a autoestima está contida na filosofia de valorização dos funcionários públicos. Que é restrita aos funcionários desta repartição. Vetada a presença de parentes.

Há vários dias, a figura do Dr. Melo Costa nos recebe com um sorriso de boas-vindas na entrada do nosso prédio. O tamanho do sorriso quase ultrapassa as margens do enorme banner multicolorido.

No hall dos elevadores, os cartazes informam que o Dr. Melo Costa já realizou mais de duzentas palestras de sucesso e que já vendeu mais de três milhões de livros. Que os seus livros “É mole ganhar dinheiro”, “Tenha amigos no lugar certo”, “Valorize-se e suba na vida”, “O mundo é dos vivos” e “O que o outro quer ouvir” estarão à venda.

Nos corredores e nas rodas de cafezinho o assunto é único: a vinda do idolatrado professor Melo Costa. Repentinamente, todos conhecem alguma tia ou vizinho que melhorara de vida após ler um dos livros dele. Os colegas citam frases selecionadas nos livros de Melo Costa: “Ajuda o teu semelhante a levantar a carga, mas não a levá-la.”, “A sorte ajuda os audazes.”, “As pessoas que vencem neste mundo são as que procuram as circunstâncias de que precisam e, quando não as encontram, as criam.”. Uma catarse coletiva estava em andamento e a palestra seria só à tarde.

Às 11h30, recebi mais uma circular informando que os funcionários que não conseguiram se inscrever teriam uma nova oportunidade dentro de 40 dias, porque o RH encontrou uma brecha na agenda do disputado conferencista.

À tarde, meia hora depois do combinado, o professor se instala atrás do microfone e, com a desenvoltura de um bispo evangélico, cativa a plateia extasiada.

Em resumo, enaltece o trabalho dos funcionários públicos, afirma que todos são eficientes e eficazes. Eles é que levam o País para frente. Se há alguma deficiência nas repartições públicas é culpa dos malfalados políticos que transferem a má imagem aos trabalhadores da burocracia.

Incomodei-me ao perceber que o discurso estava de acordo com o título do livro mais recente: “O que o outro quer ouvir”. Quando ele pronunciou com orgulho a própria sabedoria: “Todos os dias fazemos muitas coisas que não são importantes. Mas é muito importante que as façamos.” Um alarme soou na minha cabeça. Essa frase é de Mahatma Gandhi.

Peguei a agenda e passei a anotar outras frases de efeito até o término do teatro, quando todos aplaudiram entusiasmados.

Evitei o lanche de confraternização após a conferência. Fui para a minha sala checar as anotações. Não fiquei surpreso ao consultar a Internet e confirmar que Melo Costa, sem constrangimentos, se apossara de pensamentos do Dalai Lama, de Shakespeare, Pitágoras, Sófocles, Paulo Coelho.

Em outra pesquisa, descobri que todas as palestras aconteciam em órgãos públicos: secretarias estaduais, prefeituras, estatais, câmaras municipais e até no Senado Federal. Procurei em listas de mais vendidos e nada encontrei. Todos os livros foram adquiridos pelo governo para distribuição nas escolas e bibliotecas públicas. Sem dúvidas, o Dr. Tiago Neves de Melo Costa aplicava na prática o que ensinava nos títulos dos livros. Tendo amigos no lugar certo é mole ganhar dinheiro. Pena que não tenha escrito nenhum livro sobre honestidade e ética.

Em casa, foi difícil adormecer. Três provérbios giravam velozes na minha insônia: "Quem encobre ladrão é ladrão e meio." “Não existe almoço de graça.”; “Ladrão que não é apanhado, passa por homem honrado."

No dia seguinte, mesmo sem ter a quem apontar os fatos na repartição, juntei a documentação. Lacrei anonimamente um envelope pardo. Dirigi-me ao Ministério Público.

Quando entrei, pediram que me identificasse na portaria. Passei a porta giratória e a figura do Dr. Melo Costa me recebeu com um sorriso de boas-vindas estampado num enorme banner multicolorido.

A porta girou novamente para a minha saída. Entrei em parafuso.

10 março 2015

Mesas com sotaque

Prezado Klotz,

Ficamos felizes em lhe informar que sua história foi selecionada no Concurso Cultural 25 anos do Feitiço Mineiro e assim você é um dos ganhadores de um voucher de 25 chopps!



Escrever ainda não paga o aluguel nem a gasolina, mas paga a cerveja.


Mesas com sotaque

Ao lado da churrasqueira da minha casa havia uma mesa rústica com jeitão de galinhada domingueira de família.

Minha mulher a desprezava. Expulsou-a ao relento, substitui-a por outra de mármore.

Nos separamos, a mesa não teve nada a ver com a separação, entretanto na hora de ir embora escolheu os estofados da sala e desdenhou apontando:

– Nem para lenha serve.

Eu a comprara numa garage sale e ao situá-la junto à churrasqueira procurei respeitar sua tradição de agregadora de pessoas, de reunir amigos, de motivar encontros. Assim, ao calor das brasas, ela carregou alegria, copos de cerveja, bolos de aniversário,

História não se joga fora. Pensei.

Decidi vender a casa para uma família. Eu precisava me desvencilhar de muitos móveis e objetos que não caberiam num apartamento. Por questão de orgulho ferido, eu precisava provar o valor da mesa. Procurei os vendedores de antiguidades e só consegui sorrisos ou ofertas desprezíveis.

Próximo da mudança fui almoçar no Feitiço Mineiro e observei externamente duas mesas com estilo próximas à da minha e várias outras destoando do ambiente do restaurante. Eu achara o lar para a mesa.

O caixa apontou-me o proprietário do restaurante.

– É o seu Jorge.

Conversamos. Mais que o dono do Feitiço Mineiro, conheci uma pessoa atenciosa, gentil, inteligente. Agendamos um encontro.

Ele veio com um amigo para avaliar o móvel. No jardim, Jorge deliciou-se com as amoras e as mangas. Sem pressa, chegamos à churrasqueira onde uma solitária orquídea branca valorizava o tampo maciço.

O avaliador atestou a qualidade e elogiou a peroba rosa. Jorge concordou, mas apontou que a mesa precisava de reparo, que estava com a superfície desgastada e que talvez fosse um pouco mais alta do que gostaria.

Jorge estava acostumado a comprar e vender. Desvalorizou o objeto e, sabendo da minha pressa para mudar, mostrou-se o dono do tempo. Por outro lado eu havia notado o sorriso de aprovação, percebera também que dinheiro não era problema. A questão era a diferença entre o quanto eu queria e o quanto que ele se dispunha a pagar. A diferença era pequena, mas ambos fincamos pé. Criou-se um impasse.


Abri uma cerveja e conversamos até o escurecer sem negociar. Na despedida, Jorge confirmou seu valor e somou três jantares no restaurante com acompanhante.

Jorge Ferreira foi o meu primeiro convidado num almoço na nossa mesa no Feitiço Mineiro. Ele poetou dizendo que as mesas antigas não se estranharam com a mais recente: falavam com o mesmo sotaque.
 
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