26 abril 2016

A herdeira

A herdeira

Henry James
Editora 7 letras
R$ 45,00
192 paginas


Leio mais de 25 livros por ano, mesmo assim, vários deles conseguem me impactar, fazer refletir e desejar chegar logo ao capítulo seguinte. Esta história provocou isso em mim.
Henri James é considerado um dos ícones da literatura inglesa. É seguidor de Jane Austen, de quem li recentemente Orgulho e preconceito. O título deste livro era Washington Square, porém após vários relançamentos e adaptações para o teatro os editores consideraram A herdeira muito mais adequado. Ou, se seguisse o padrão de Jane Austen, o título poderia ser Preconceito e hipocrisia.
A narrativa se passa no final dos anos 1800, em Nova Iorque. Catarina, filha única, herdeira materna de soma considerável, porém mal provida de esperteza e fisicamente desinteressante. Ela é surpreendentemente flertada por um rapaz Morris Townsend, bonito, inteligente, galanteador e inúmeras outras qualidades que não incluem a vocação para o trabalho. O pai, Austin Sloper, um respeitado e rico médico não concorda com a aproximação dos dois. Há um forte embate psicológico entre pai e filha. O narrador é muito presente. Conversa, opina e detalha sentimentos que nos levam a questionar se haverá ou não casamento ao final do livro.
Aqui o leitor não precisa se preocupar em anotar ou guardar o nome de dezenas e dezenas de personagens. Basicamente são apenas quatro. Além dos três já citados ainda há uma tia, irmã do pai, que com suas intromissões tumultua ainda mais as relações entre pai, filha e pretendente.
Repetindo, em outras palavras temos:
Catarina sente-se rejeitada pelo pai que aprendera a reverenciar. Na sua pouca visão, em vez de procurar informações que confirmem ou neguem a falta de caráter do pretendente, questiona o amor paterno, questiona se é boa ou má pessoa por discordar o pai.
“Morris não se esquecera de que, na pior das hipóteses, Catarina tinha sua própria renda de dez mil dólares anuais. Ele dedicara abundante reflexão a esse pormenor. Mas com as qualidades superiores que lhe eram inatas, ele cultivava uma alta opinião à respeito de si e atribuía um valor que ele julgava mal representado pela quantia.”
“Se o médico parecia frio, seco e completamente indiferente à presença da filha e da irmã, era num estilo tão leve, elegante e fácil, que seria preciso conhecê-lo a fundo para perceber que no todo, ele se comprazia em ser desagradável.”
Não vou detalhar as características da tia, Lavínia Penniman, porque ela é afeita a fofocas e eu não.
 O livro é sucesso porque Henry James produziu uma história feminista sem apelações, verossímil, universal e atemporal. No meu entender, ainda há outro aspecto relevante que é a característica linear ou plana dos personagens. São personagens construídos com uma única ideia ou qualidade, de personalidade rasa, sem grandes mudanças, de condutas repetitivas e previsíveis. Mesmo assim, ou justamente por isso torcemos e aguardamos um final surpreendente.
Enquanto lia, sublinhava diversas passagens pensando na minha resenha/crítica literária. Qual não foi a minha surpresa ao constatar que a tradutora, Margarida Patriota, assinalou no posfácio várias delas e com maestria superou tudo o que eu poderia acrescentar. Então cabe-me apenas destacar um diálogo entre o pai e o pretendente.
Morris Townsend disse:
“A senhorita Sloper não me parece uma mulher frágil.”
Ao que o pai respondeu:
“É natural que a defenda — é o mínimo que pode fazer. Mas eu conheço a minha filha há vinte anos e o senhor há seis semanas. Ainda que ela não fosse frágil, o senhor continuaria sendo um cavalheiro sem um centavo no bolso.”
“Ah, sim, essa é a minha fraqueza! E por causa dela o senhor infere que eu seja um mercenário — pensa que cobiço a sua filha pelo dinheiro.”
“Não disse isso. Não estou obrigado a dizê-lo. E dizê-lo sem maior necessidade seria de extremo mau gosto. Digo apenas que o senhor pertence à categoria errada.”
”Mas a sua filha não vai se casar com uma categoria”, insistiu Townsend com seu belo sorriso. “Vai se casar com um homem — homem a quem teve a bondade de declarar que ama.”
“Homem que oferece tão pouco em retorno?”
“O que é possível oferecer, além do carinho mais terno e dedicação por toda a vida?”, perguntou o rapaz.
“Depende do prisma que se adote. É possível oferecer outras coisas em acréscimo. Não só é possível, como é o costume. Uma vida de devoção só se mede após o fato. Enquanto isso, o costume é que se peçam garantias materiais. Quais são as suas? Um belo rosto, um belo porte, maneiras distintas. São qualidades ótimas até onde vão, mas não vão muito longe.”
Após este diálogo que mais parece um duelo, cabe-me finalizar.

Ergo-me em reverência ao autor e, prometo, na primeira oportunidade conhecer um pouco mais da vasta obra de Henri James. 

19 abril 2016

A unha encravada


Perguntaram-me sobre o que escrevo. Como resposta disse que escrevia sobre o tudo, sobre o nada ou qualquer coisa entre aqueles dois.
Coisa louca! Parece um camarada que contava piada sobre qualquer tema, bastava dizer uma palavra e ia ele contar piada usando aquela palavra. É isso mesmo?
– É, pode ser.
Então vou escolher uma palavra e duvido você escrever sobre isso. Humm... amor? Não. Política? Não. Uma palavra, não um tema. Nuvem, não. Cachorro. Tem tanta gente escrevendo sobre cachorros. Janela. Essa é muito fácil. sei. Desafio a escrever sobre unha. Isso mesmo, quero que escreva sobre a unha.
Isso é piada?
– Está entre o tudo e o nada!
Bem mais perto do nada.
– Pediu arrêgo? Num dá conta?
Cocei a cabeça e topei a empreitada.
Se eu não tivesse unha como iria coçar a cabeça. É para isso que serve a unha: para se coçar. A gente pode coçar com força ou fazendo carinho. Com a unha a gente pode tirar casquinha da ferida daquela picada de mosquito. Tem gente que tira meleca do nariz com a unha. Que nojo! Juro que eu nunca fiz isto. Pelo menos quando tinha alguém olhando.
A primeira coisa é consultar o pai-dos-burros. Quando a gente tem um à mão. Quando a gente não tem, a gente fica imaginando a descrição à respeito:
pedaço de osso que não é osso e fica na ponta dos dedos;
utensílio que as mulheres quebram ao fechar gavetas;
arma usada pelas felinas em briga de rua;
coisa que continua crescendo junto com os cabelos quando a gente morre;
instrumento penetrante usado por algumas mulheres para cravar nas costas dos amados na hora do orgasmo;
ferramenta disponível nas lotéricas para as raspadinhas;
coisa utilizada para retirar alface do dente;
apêndice que semanalmente nos obriga procurar por toda casa a tesourinha de cortar unhas;
objeto que, quando recém-pintado, serve de desculpa para as mulheres pedirem ajuda para calçarem sapatos;
passatempo com os quais funcionários públicos usam o expediente para limpeza, aparo e lixamento;
aparador de batidas de martelo;
instrumento de tortura para as mulheres indecisas na hora de escolher a cor ao pintarem as unhas;
calmante ingerido nos filmes de terror.

            – Uau! Peguei o touro à unha e o derrubei!

11 abril 2016

Girafa barulhenta

 

Caminhar sempre é bom. Acompanhado é melhor. E quando a companhia é agradável, é o máximo. Tenho uma vizinha que gosta de caminhar comigo.

Infelizmente a velocidade dela é devagarzinho. Bem devagarzinho, para poder falar bastante. Ela é muito alegre, extrovertida e perguntadeira. Bem típico da idade. Eu que não tenho nenhuma neta, a princípio fiquei incomodado com esse negócio de me chamar de Vô. Porém é uma menina muito fofinha, de olhos grandes. Demorei a me acostumar, agora até gosto de ser chamado vovô. Quando ganho beijo lambuzado, nem reclamo.

Hoje ela me contou que já sabe o que o irmãozinho vai ganhar de aniversário, mas que não ia me contar porque a mãe disse que era segredo.

Depois cantou a musiquinha da escola.

Meu lanchinho, meu lanchinho
vou comer, vou comer
pra ficar fortinho, pra ficar fortinho
e crescer e crescer.

E aí, sem mais nem menos me perguntou se era verdade que as girafas não faziam barulho. Eu não sabia se aquilo era uma piada, pegadinha ou uma demonstração de conhecimento.

— Quem te disse isso?

— A tia. Ela disse que os cachorros latem, que os gatos miam, que os passarinhos piam, mas que as girafas não falam. As coitadas não fazem nenhum barulho.

Percebi os olhos tristes da menina com pena da girafa.

— As pescoçudas fazem barulho, sim. Você precisa ouvir como é alto o pum da girafa.

A menina deu uma risada e eu continuei.

— Silenciosas são as borboletas. Ou você já ouviu as borboletas batendo papo, cantando e fazendo algazarra?

Antes que ela respondesse, prossegui:

— Fale para a sua tia que o único bicho que não fala é o criado-mudo.


Ganhei um delicioso beijo e ela saiu correndo.

05 abril 2016

Corrida de morte



Há pessoas que começam a praticar esporte pelos mais diversos motivos: mudar de estilo de vida, diminuir o peso, sair do sedentarismo, recomendação médica, encontrar mulheres gostosas na academia.

Para meus amigos eu digo que comecei a caminhar para emagrecer e pegar sol. Nem sob tortura revelaria que procuro caminhar no mesmo horário da minha vizinha. Nunca! Ainda mais que não é verdade. Honestamente, estou constrangido em confessar a verdade verdadeira. Mas aqui entre nós e a folha de papel não há segredos. Vou cochichar o real motivo: medo de um enfarte fulminante na hora do sexo. Precisei interromper uma secção maravilhosa porque o coração ameaçou explodir.

Ainda bem que a minha mulher não lê as minhas crônicas.

Consultei o médico e ele receitou-me uns comprimidos e exercícios físicos diários sob pena de não me atender de novo. Eu morreria em menos de um mês.

Depois deste drástico diagnóstico é lógico que comprei um tênis novo e pus-me a caminhar e praticar exercícios logo após.

Ao fim dos primeiros trinta dias perdi 3kg e continuava vivo. Terminei o segundo mês reduzindo outros 2 kg. No terceiro mês a animação foi enorme quando tinha diminuído três buraquinhos do meu cinto. Para comemorar os resultados e recompensar o esforço me dei de presente um Polar. Aquele relógio com cronômetro que também informa a pulsação cardíaca captada numa cinta na altura do peito.

Agora eu já não me sentia um sedentário. Era um quase atleta. Poderia até arriscar umas corridinhas alternadas no meu percurso de 4 km, contanto que não excedesse os batimentos cardíacos determinados pelo doutor.

Inicialmente levava 48 minutos esbaforidos para completar o circuito. A performance foi melhorando com rapidez. E cheguei a reduzir o tempo até 40 minutos antes de comprar o Polar.

Supervisionado pelo reloginho, me atrevi a caminhar e correr alternadamente e diminuir o tempo para 36 minutos. Já me sentia um atleta.

Cada dia com mais velocidade e em menos tempo. Sempre controlando os batimentos.

Foi ai que aconteceu: eu morri.

Durante o pico da corrida, o Polar que vinha a 140 batidas por minuto repentinamente foi a zero.

O ar faltou.

As nuvens enegreceram ao meu redor.

Os joelhos fraquejaram, dobraram.

Fui derretendo na calçada.

Com os olhos esbugalhados confirmei que o Polar continuava no zero.

Sem dúvida, eu morri em trezentas pratas num relógio pirata.
 
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