30 maio 2017

Receita de pudim de gelatina



As donas-de-casa certamente vão questionar: receita de pudim de gelatina?
Sim, pudim de gelatina. Para pessoas indecisas, é muito difícil saber por onde começar. Existe gelatina em folha ou em . Existem pelo menos meia dúzia de sabores artificiais e cores igualmente artificiais: framboesa, morango, limão, laranja, pêssego e sem sabor. Este é ótimo, gelatina sabor sem sabor. Vasculhei meus compêndios culinários e descobri que a gelatina sabor sem sabor serve para dar consistência sem alterar o gosto. imaginaram rabada com gosto framboesa?
Para realização completa, leve para casa no mínimo quatro caixinhas. Cores e gostos ao sabor do freguês, no caso, você.
Esqueça a receita do rótulo.
Despeje o conteúdo de duas caixinhas, de mesmo sabor e cor, em um quarto de litro de água fervente, metade do sugerido na embalagem, mexa bem e depois acrescente mais outro quarto de litro de água, ou 250 mililitros para falar na linguagem correta. Misture bem e despeje em pirex redondo.
Comece de novo com as outras duas caixinhas. Repita a operação e despeje em pirex redondo igual ao anterior. É fundamental que os dois pirex sejam idênticos. Coloque os dois pirex na geladeira. Se não tiver paciência, coloque no frizer, para apressar a operação.
Em aproximadamente duas horas você terá as gelatinas no ponto.
É hora da diversão. Pegue aquele cedê com o samba-enredo da escola vencedora deste ano. Aperte a tecla repeat e ponha no volume máximo. Da geladeira ou frizer retire as gelatinas e emborque (eu sempre desejei usar esta palavra, esta é minha oportunidade não desperdiçada) ambas em cima de uma bandeja. Lado a lado. Para enfeitar e aumentar o desejo masculino, coloque, na parte superior, uma tampinha de garrafa de cerveja em cada gelatina.
Está pronto. Peitos de passarela do samba sempre têm forma de gelatina e não têm acompanhamento, nem em cima nem em baixo. O acompanhamento é apenas o da bateria da escola de samba. É balançar a bandeja no ritmo e teremos a mesma sensação de estar na arquibancada do sambódromo.
Para as mulheres, essas dúvidas não existem. Jovens, maduras e passaditas. Todas querem pudim de gelatina. Por enquanto elas discutem apenas volume. Haverá tempo de novos lançamentos cor jambo, cor europeu ou camarão, para quem pegou sol demais na praia.  Se o namorado for torcedor do Flamengo, uma gelatina vermelha e outra preta; se ele for torcedor do Fluminense, ponha três gelatinas. Os sabores também serão incrementados. Cerveja será o mais popular, uísque, o mais sofisticado, laranja com açaí para os ecologistas e vegetarianos, leite para os conservadores e Toddynho para menores de dezoito.
A grande revolução acontecerá no formato. As apaixonadas terão suas gelatinas em forma de coração, as políticas escolherão a estrela do PT, as garotas pit bull farão suas gelatinas em forma de punhos fechados e haverá peitos com formatos de bundas.

Tudo irá evoluir até a indústria lançar a gelatina mais sensual: ela terá cor da pele, formato, tamanho e consistência natural, como um peito.



  Pudim mole e carne dura nãoquem engula.

23 maio 2017

Elas batem um bolão



No gramado, debaixo do meu prédio, vi uma menina jogar bola, futebol. Isso não me espanta mais. As mulheres estão ocupando todos os espaços que eram de exclusividade masculina. Eu nunca dediquei meu tempo para observar a habilidade das mulheres no trato com a bola. Mas aquela garota merecia um olhar de admiração pela beleza e suavidade. Já a conhecia de alguns encontros dentro do elevador.
Sou do tempo em que futebol era jogo de homem. Jogo duro, muito corpo a corpo. Muita brutalidade. A bola de couro era mais pesada que hoje. Para cabecear bola molhada tinha que ser macho. Coisa comum eram as brigas em campo. As mocinhas somente iam ver alguma partida ou pelada quando havia algum namorado que estivesse jogando. Nenhum interesse no jogo. Esporte absolutamente masculino.
Observo lá embaixo: os adolescentes estão misturados, meninos e meninas estão jogando juntos! A primeira coisa que me chamou a atenção foi que, da mesma forma como os garotos, ela usava um calção grande e deselegante. Naquela brincadeira de fazer gol por entre as árvores, observei que ela chutava com os dois pés e igualmente bem. Qualidade rara até entre os profissionais da bola.
Quando algum garoto chutava a bola longe do gol e a bola rolava indo parar debaixo do carro estacionado, nenhum dos rapazes se prontificava, num gesto cavalheiro, a buscar a bola. Mudança de tempos.
Fiquei boquiaberto quando em determinado momento ela pegou a bola e começou a fazer embaixadas. Eu não contei, foram mais de cinqüenta. Bola no , no joelho, de calcanhar, de cabeça, matada no peito. Essa menina leva jeito! Sabe tudo.
A brincadeira continuava e a vi dividindo a bola como homem. E para meu espanto, xingando como homem. É, essas mulheres definitivamente estão tomando nosso lugar, até no futebol. Pensei que tivesse visto tudo, mas não, ela cuspiu – raichputcomo um bom moleque cospe.

Agora falta as mulheres aprenderem a coçar o saco como nós. 

16 maio 2017

Tainha recheada de recordações

Nesta semana conversei com o meu passado duas vezes.
Férias na praia paulista. Outro século.
Tempo em que a energia falhava e não havia asfalto nem telefone.
A praia ainda era dos pescadores.

A imagem do pescador com a agulha é de André Klotz.


TAINHA RECHEADA DE RECORDAÇÕES

Jantar de gala no hotel cinco estrelas à beira-mar. Duzentos dólares por cabeça, fora a bebida. Eles de gravata, elas de salto alto. Comemoram sessenta anos de idade do banqueiro, Dr. Valter Junqueira.
Após variados drinques e canapés os garçons com suas luvas brancas começaram a servir um peixe recheado.
O Dr. Otávio Portobello, diretor financeiro, proferiu quinze minutos de elogiosas palavras ao homenageado. Explicou que a tainha era um dos peixes mais nobres do litoral brasileiro e, para finalizar, levantou a taça de vinho branco, brindou e praticamente coagiu o aniversariante a se manifestar. O Dr. Junqueira olhou agradecendo um a um os convidados e com leve gesto de cabeça convidou-os a apreciar a iguaria.
Como em todos os jantares, houve breve silêncio para a prova daquela vistosa e cheirosa carne branca.
Dr. Valter Junqueira delicadamente, com os talheres de prata, separou um naco de peixe e segurou-o entre o indicador e o polegar e levou-o à boca. Fechou os olhos para acionar todos os outros sentidos: paladar, olfato, audição, tato e memória. Fechou os olhos e abriu a memória.
Valtinho adorava conversar e aprender com mestre Benedito.
Mestre Benedito tinha uma casa na faixa de areia onde o rio desembocava no mar. Casa ampla, de tábuas e piso vermelho. Fogão de lenha e uma enorme mesa sob um frondoso chapéu-de-sol. Pescador respeitado por todos e que, além da generosa barriga, era dono da maior rede da praia.
Era ali, debaixo do chapéu-de-sol, que mestre Benedito, com a agulha e a régua, fechava os buracos nas malhas da rede. Os bagres, além de feios, só serviam para sopa e estragos na rede.
Teve uma vez que seu Benedito abriu a rede em toda sua extensão na praia. Era para uma verificação mais detalhada. Percorri com ele, quando ele repôs algumas chumbadas do fundo emparelhando com o mesmo tanto de cortiças na parte de cima. Eram uns anéis gordos, bem maiores que o tamanho do meu pulso, que faziam a rede flutuar. Até hoje ainda me lembro de que fui correndo para casa para dizer para a minha mãe que contei quatrocentos e doze passos. Era muita rede, toda de barbante.
Foi com paciência que ele me ensinou a fazer um puçá, uma pequena rede de malha fina em forma de saco. Depois costurou-o num aro de arame.
            De peso, amarrou a pedra que escolhi e esticou uma corda mais grossa no aro, de um lado ao outro, para prender a isca. Depois laçou mais três cordinhas no arco e juntou as pontas, dali saiu a corda maior, pra gente puxar o puçá para fora d’água.
            Com ele, fui pescar siri. Lá na curva do rio havia uma árvore caída onde a gente sentava. De cima podíamos ver o fundo do rio quando algum caranguejo mordiscava o chamariz. Aí, era só puxar e pronto! Pronto nada!  Eu não tinha coragem de tirá-lo do puçá. Seu Benedito pegava o siri por trás, com a mão rápida, e jogava no balaio. Ele dizia que não deveríamos pegar mais de dez. Era o número certo que a gente dava conta de comer. Eu levava para casa, pedia para a dona Olga ferver e no fim de tarde levava tudo para a casa do mestre Benedito. Era uma festa.
Muitas vezes o caranguejo só abria o apetite.
– Seu Benedito vamos puxar picaré?
– Vá perguntar ao seu pai, vê se ele deixa.
Eu ia para casa e invariavelmente ouvia que mais tarde chegaria alguma visita importante ou que ele iria jantar com a mamãe na casa de algum amigo, lá na cidade. Mas, que eu poderia ir e deveria levar o lampião. Era o máximo.
Eu ainda era pequeno e fracote, no linguajar deles, por isso procurava outro adulto para puxar o picaré com o seu Benedito. Era preciso força para puxar o cabo de madeira do tamanho de um homem. Eu normalmente suplicava para o seu Agenor, marido da dona Olga ajudar. Dona Olga o incentivava prometendo fritar os peixinhos assim que nós voltássemos. Inocente, eu dizia que não havia nada para eles fazerem à noite. Nem tinham tevê.
O seu Benedito arrastava o varão além da arrebentação. Seu Agenor ficava no raso, com a água na cintura. A rede presa entre os dois paus verticais formava um enorme saco. Seu Benedito às vezes gritava:
– Agenô, cê tá rastando o pau na areia? Como se seu Agenor não soubesse que a rede precisava ficar bem coladinha no fundo para os peixes não escaparem por baixo. Somente anos mais tarde entendi a graça da fala.
Com a rede já fora da água a minha tarefa consistia em segurar o balaio para os peixes e com a outra mão alumiar a rede para os dois pescadores. As corvinas iam para a frigideira da Dona Olga e os linguados iam para a casa do mestre Benedito. Eu gostava do baiacu. Não era para comer, era para fazer cosquinha na barriga e ver inchar até fazer uma enorme bola branca. Uma farra.
O seu Messias era o homem do tempo. Era capaz de predizer chuvas e ventos. Calmaria e sol. Uma vez ele me mostrou como as formigas estavam agitadas aumentando a altura do formigueiro para a água não entrar: era sinal de chuva. E choveu. Outra vez ele me mostrou a lua e disse que a mudança da lua somada com o vento sul traria mar bravo. No outro dia o mar se agitou em ondas de ressaca. Mais de uma vez ele percebeu tempestades debaixo de calmarias e sol forte:
– Fale para seu pai tirar a lancha da água. Vai ter temporal daqui a pouco.
 Seu Messias acertava sempre.
Enquanto a temporada das tainhas não chegava, mestre Benedito saia com a canoa para deitar a rede de espera ou armar o espinhel.
Meu pai dizia que fartura de tainha, para os pescadores, significava poupança para o resto do ano.
As tainhas chegavam junto com a corrente de água fria do sul em julho, mês de férias.
Nesta época a canoa ficava de prontidão na areia aguardando o aviso. Quatro remos grandes, duas latas para tirar água, muita corda e a rede cuidadosamente dobrada para ser lançada aos poucos na velocidade da canoa.
A capela ficava próxima à canoa. Curioso, entrei algumas vezes. Havia um pequeno altar com uma santa coroada, um ramo de planta na mão e uma taça na outra. Alguns tocos de velas. Às vezes alguma vela acessa invocando proteção. Eu ouvia as orações dos irmãos Flávio e Hélio:
“Santa Bárbara, que sois mais forte que as torres das fortalezas e a violência dos furacões, fazei que os raios não me atinjam, fazei que os trovões não me assustem, fazei que o troar dos canhões não me abalem a coragem e a bravura.”
“Santa Bárbara, rogai por nós.”
Seu Maneco, um preto velho manquitolava por ali com a muleta. Faltava-lhe uma parte da perna. Contava que a perdeu numa luta com um tubarão. Nunca duvidei. Homem respeitado. Já não podia remar. Era olheiro. Passava o dia no costão com a mão sobre os olhos para enxergar melhor. Era o responsável por captar a presença do cardume e avisar a vila. Diziam que tinha olhos de albatroz. Melhor que qualquer outro, descobria a agitação do mar, a mancha avermelhada, a esperança da fartura. Além dos olhos, seo Maneco era bom de sopro. Visualizava o cardume e soprava o berrante. Os sinos chamam os homens para a fé. O berrante chama os pescadores para a esperança.
Um a um, homens fortes largavam o que estivessem fazendo e corriam para o barco. Serafim, Benedito, Aristides e Cristino normalmente eram os primeiros a chegar. Moravam mais perto. Tiravam a lona da canoa e colocavam os roletes para descer o barco até o mar. Faziam o sinal da cruz, pediam proteção à Santa Bárbara e remavam determinados contra a quebração. Na praia ficavam os roletes e uma ponta da corda.
Três pescadores remavam enquanto que o quarto, na popa, soltava a corda no ritmo dos remadores.
Da praia o seu Maneco orientava o rumo do barco e pedia para soprarem o berrante mais uma vez. Espertamente começavam a largar a rede e contornando o cardume. A sorte estava lançada.
A vila ouvira o berrante. Homens, mulheres e crianças surgiam de todos os lados.  Metade se juntava próxima à ponta da corda deixada pelos canoeiros enquanto outra metade aguardava a canoa chegar com a outra extremidade da corda.
Depois de duas horas a canoa voltava à praia e era novamente colocada sobre roletes onde todos ajudavam a levá-la sobre os roletes até a origem.
O povo começa a puxar as cordas. Um a um, as pessoas vão ao mar agarram a corda e a arrastam até um ponto longe da beira. Largam a corda e voltam para pegar noutro ponto dentro d’água. Homens ou mulheres, ninguém se importa em molhar as roupas na água salgada. Eu e as crianças gostávamos de mergulhar para pegar a corda mais no fundo. Era mais uma brincadeira.
No movimento contínuo a rede surgia. Sempre se preocupavam em fazer a chumbada se arrastar na areia do fundo para não deixar os peixes escaparem por baixo. Era mais desconfortável puxar a corda junto com a rede, em compensação víamos os peixes se brilhando.
Os pescadores retiravam os peixes da rede conforme surgiam. Sacodia daqui sacodia de lá e a tainha se desprendia. As pilhas se formavam. Havia também cações, ventos-leste e, com sorte, linguados. À criançada cabia fazer a limpeza da rede repleta de sargaços, caramujos e estrelas.
Naquele dia a rede veio farta. Centenas de tainhas, talvez mais de um milhar.
Ainda me lembro do mestre Benedito separando os montes. Uma parcela para o dono da rede, uma parcela para o dono da canoa, outra parcela para os remadores e o restante para os que ajudaram a puxar a rede. Todos felizes. Homens com duas ou três tainhas, mulheres com uma ou duas. Até eu ganhei uma tainha. Foi a primeira vez que ganhei um peixe. Uma tainha.
Saí correndo para casa e pedi para dona Olga prepará-la.
À noite com a família reunida tivemos tainha recheada. Papai fez uma oração de agradecimento e permitiu que começássemos a comer.
Houve breve silêncio para a prova daquela vistosa e cheirosa carne branca. Com um garfo separei um naco de peixe e segurei-o entre o indicador e o polegar e levei-o à boca. Fechei os olhos, mastiguei e me engasguei.

– Dr. Valter, está passando bem? Foi um espinha?

– Não se preocupe, estou ótimo. Foi uma pérola.
 
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