27 setembro 2007

O telefone

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm.
Era assim que o telefone tocava até recentemente. Hoje qualquer som pode ser de telefone: mugidos bovinos, coachares de rãs, latidos de cães, hinos do time de futebol, um clássico de Beethoven, um hit brega, grito de mãããããe atende o telefone e até o velho e desgastado triiiiiimmm às vezes persiste.
Nós sempre estamos fazendo alguma coisa. Trabalhando, cozinhando, tomando banho, fazendo amor, digitando um texto. Mesmo que estejamos fazendo nada, estamos fazendo alguma coisa. Ver televisão é fazer nada. Somos interrompidos abruptamente por chamada urgente. Todas chamadas são urgentes, devemos largar o que estivermos fazendo para atender a ligação. Largar a refeição, largar o banheiro molhado, largar o chefe falando sozinho, largar a concentração no amor.
– Alô!
– João?
– Não é aqui senhor.
– Té, té, té, te,....
Isto é uma falta de educação grave. Gravíssima. Total falta de respeito para com o próximo que interrompeu uma atividade para dar atenção àquela pessoa desconhecida. A gratidão é um telefone desligado na cara.
Na linguagem dos telefones, quando duas pessoas discutem e uma delas desliga o telefone é o mesmo que uma agressão. Quando o telefone é desligado sem aviso prévio sentimo-nos agredidos.
Muitos fazem isso escondidos no anonimato. – Aquele cara não sabe mesmo quem eu sou e ainda vou ficar pagando ligação de celular para um desconhecido? Desligo mesmo!

Isto já aconteceu inúmeras vezes. Inúmeras vezes perdi o humor por agressão gratuita de um telefone desligado sem explicação.

Mudei minha atitude quando ligam para o meu celular. Retorno o telefonema e educadamente explico a falta de respeito cometida pelo anônimo, o tempo que ele me tomou para atender o telefonema e o tempo que está me tomando para este retorno e mostro minha indignação desligando o telefone na cara deste desgraçado. Desopilo o fígado numa gostosa gargalhada vingativa!

Por conta da internet, nos tempos da linha discada, instalei uma segunda linha de telefone em casa. Pelo fato de morar sozinho não costumava necessitar falar em duas linhas simultaneamente. Em caso de absoluta necessidade ainda havia o celular. Por estes e outros trezentos e quarenta e sete motivos ninguém tinha o número da segunda linha. Às vezes a internet ficava conectada baixando músicas e eu ficava sabendo se a linha caiu ou foi desconectada. Instalei um telefone à antiga que emitia ruído típico ao ser desligado. Problema resolvido. Surgiu problema novo. O telefone tocava. – Diabos! Não dei o número para ninguém! Logo é engano ou vendedor de cotas para um lugar no céu se contribuísse com módicos valores mensais para alguma instituição de caridade.
Dezenas de vezes abandonei atividades para educadamente atender telefonemas indesejados.
Perdi a paciência com uma moça que insistiu por oito vezes que aquele era o número do telefone do novo namorado, que havia feito promessas de amor sob os lençóis suados.
Resolvi contra atacar e pegar desprevenidos os incautos que resolvessem ligar para interromper a minha ocupação.

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
Atendo com voz lenta, grave e funesta.
– Funerária Já Vai Tarde! Em que posso servi-lo?
– Té, té, té, té...
As pessoas ficam sem graça e desligam. Há os persistentes:

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Funerária Já Vai Tarde! Em que posso servi-lo?
Eu queria falar com o João.
– O João não está mais entre os nossos.
– Té, té, té, té...
A brincadeira por repetitiva ficava sem graça. Renovei o prazer em atender telefone!

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– A Márcia está?
– Vai demorar só uns vinte minutos, acabou de subir com um cliente.
– Té, té, té, té...

– Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– De onde?
– Pensão Dona Júlia. Temos apartamentos com e sem banheiro. Servimos farto café da manhã com biscoitinhos caseiros e pão de queijo. Temos janta diariamente. Hoje teremos rabada com agrião, macarronada com molho de tomate, salada de alface e rúcula, a sobremesa o senhor pode escolher entre goiabada e....
– Té, té, té, té... Ninguém agüenta uma pessoa desconhecida com incontinência verbal.
Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– Bom. Eu pensei que era da casa da Heleninha. Tô encostando meu caminhão aqui na Terceira Avenida e tô querendo um quarto. Quanto é, hem?
– Té, té, té, té.... Desliguei só de imaginar o tamanho do negão do outro lado da linha.

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Farmácia Saúde Total, boa tarde!
– Farmácia? Não é da casa da tia Jurema?
– Para casos de falta de memória temos Memorex. Quantos vidros senhor?
– Vai te catar mal criado...Té, té, té, té....

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Farmácia Saúde Total, boa tarde!
– A Cristina está?
– Não senhor. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
– Ela me deu este telefone há vinte dias. A que horas ela volta?
– Ela foi despedida, senhor... não acredito que volte.
– Despedida?
– Ela não aprendeu a aplicar supositórios e ainda estava vendendo preservativos usados e ...
– Té, té, té, té....

Não entendo este mundo. Tenho procurado conversar com as pessoas e elas sempre desligam o telefone na minha cara. Sou um incompreendido.
– Deve ser a minha voz!

6 comentários:

Luci Afonso disse...

Genuíno texto klotzniano. Um dos mais engraçados que vc já escreveu. Adorei!

Klotz disse...

Se escrito é engraçado, imagine eu brincando desta forma ao telefone.
Tudo é absolutamente verídico e seria possível escrever pelo menos mais quinze páginas.
A única vez em que fiquei sem graça foi quando a própria companhia telefônica ligou querendo alguma informação.

Nálu Nogueira disse...

Ahahah, eu lia e imaginava vc fazendo isso. Achei que alguns eram verídicos, outros eram ficção - mas agora vendo que tudo é verdade, me sinto vingada tb!

Faltou dizer em que jornal foi publicada!

Bjus!
Nálu

Sonia Sant'Anna disse...

E aquele operador de telemarketing que o faz deixar o que estiver fazendo para comunicar que o banco tal acaba de lhe oferecer um cartão de crédito que você nunca pediu nem deseja? ou um investimento fabuloso que vai deixá-lo rico?

Muryel De Zôppa disse...

Gostei.
Minha 'aquisição' é recente e teu texto me preparou o espírito para o advento da chateação, hehehehe.

Marilia disse...

adorei,
tive uma linha assim..nem eu sabia o numero, mas tocava dia e noite.
A opcao foi mandar desligar.

 
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