27 julho 2008

Professor de física, aluno da vida



José Rubens Borba de Oliveira, 28 anos, brasileiro, casado, engenheiro mecânico. Batalhador, ético e conseqüente.
José Rubens trabalha há dois anos numa empresa que desenvolve sistemas de aproveitamento de energia solar. A estabilidade conquistada permitiu mais um passo no planejamento familiar. A esposa está grávida do primeiro filho. Apesar da segurança, o salário é insuficiente para devaneios. Na busca de fontes alternativas, bem ao estilo de quem trabalha com energia, descolou aulas noturnas de física em um colégio da redondeza.
A fama do colégio não é exatamente exemplar. Muitos dos alunos foram repetentes em outras escolas e agora, nesta, buscam o certificado de conclusão do segundo grau sem muito esforço. A realidade do mercado de trabalho sugere que o conhecimento não é tão importante quanto o diploma. O diretor da escola ofereceu uma turma para o professor estreante com promessa de mais turmas e, consequentemente, melhor remuneração no segundo semestre, conforme o desempenho no ofício.
No primeiro dia de aula, digo na primeira noite, o professor estreou um jaleco branco com as iniciais JRO bordadas sobre o bolso e, de acordo com o programa, lecionou termologia.
O número de presentes correspondia a aproximadamente 25% daqueles da relação de matriculados. Começo de ano letivo é frio, depois esquenta, julgou. Iniciou morno sobre os estados físicos dos elementos e revisou conceitos de solidificação, liquefação, fusão, vaporização e sublimação.
Na aula seguinte a presença de alunos cresceu vertiginosamente para 40%. Destes, apenas quatro trouxeram o livro recomendado.
José Rubens trabalhou duro no fim de semana a tempo de elaborar e digitar, por sua conta, um resumo do tópico. Levou exatas 50 cópias. Apesar de dispor da relação de nomes, ainda não dispunha da lista de presença. Estranhou que somente 19 cópias foram pegas, apesar dos 23 presentes.
Ao perceber a dificuldade da rapaziada em transformar graus centígrados em graus Fahrenheit ou Kelvin, não mediu esforços para ensinar a base matemática, a conhecida e manjada regra de três.
A minoria trabalhava durante o dia, entretanto todos alegavam a mesma desculpa para não fazerem os deveres de casa.
O resultado da primeira prova foi insatisfatório, só dois estudantes obtiveram notas acima de cinco.
O tempo era curto e o programa longo. Mesmo com a termologia não aprendida, foi necessário seguir para a cinemática com as inevitáveis equações do segundo grau, aquelas que têm um dois sobre um xis. O professor preocupou-se porque os aprendizes continuavam com a mesma dificuldade, agora para transformar quilômetros por hora em metros por segundo.
Quando falou em movimento retilíneo uniformemente variado e escreveu a fórmula S = S0 + v0t + ½ at2 no quadro-negro recebeu uma vaia do tamanho da equação.
Foi acusado formalmente de exigir conhecimentos de física quântica dos pupilos. Coisa que nem a sapiência do diretor ouvira falar.
José Rubens sentiu a pressão. Sonhou com as três ou quatro turmas prometidas pelo mandante supremo e preveniu a turma que a aula seguinte seria importantíssima pois daria o bizu para a prova.
Escreveu cinco questões na lousa, resolveu-as paciente e didaticamente. Ninguém externou qualquer dúvida. Encheu-se de satisfação e segurança para elaborar a prova com as mesmas cinco questões onde alterara apenas os números.
Para sua surpresa e desespero, o resultado foi tão devastador quanto da primeira prova.
Indignado com o desinteresse, levou o assunto à diretoria. Foi surpreendido com uma reprimenda. Conforme o diretor, os pais dos alunos pagam o colégio e, portanto devem ser oferecidas aos alunos oportunidades reais de lograr boas notas e passar de ano. Para mostrar generosidade, deu-lhe mais uma chance de se redimir com as crianças, afinal bom mestre que era, deveria ser capaz de aplicar outra prova, esta sim, com resultados satisfatórios.
A noite foi longa. Muito longa. José Rubens questionou valores e juízos. Pensou na escola, nos estudantes e nos pais deles. Remoeu significados de ética e moral. Vivenciou a educação do filho ainda não nascido. Pesou o significado de três ou quatro turmas no semestre seguinte.
De manhã, antes do sol raiar, sentou-se à frente do computador, com o modelo nas mãos, digitou a mesma prova, igualzinha, desta vez para ser respondida por meio de múltipla escolha. O trabalho foi rápido e terminado com um sorriso de orgulho. Tanto orgulho serviu para escrever uma cartinha pensando no filho.
Chegada a hora da aula, observou que pela primeira vez a sala estava cheia, abarrotada. A secretaria telefonou aos alunos, um a um, avisando que naquela quinta-feira haveria uma nova prova, pois a anterior tinha sido anulada por uma falha conceitual em uma das questões.
O professor, em seu jaleco impecavelmente branco distribuiu as provas e solicitou que esperassem um pouco antes de iniciar. Foi ao quadro-negro, enumerou de 1 a 5 e anotou uma letra ao lado. Virou-se para o grupo, comunicou que aquele era o gabarito da prova, desejou boa sorte e solicitou o início da prova, porém que aguardassem o resultado da correção antes de saírem da sala.
O zum-zum-zum foi enorme e não levou 10 minutos para os alunos devolverem as provas respondidas. Após a correção – ainda houve três avoados que não obtiveram a nota máxima – anunciou que entregaria a sua demissão e que aquele tinha sido seu último dia na escola porque breve teria a quem educar.

6 comentários:

JLM disse...

Olá, Klotz. No próximo fim de semana sai no www.amalgama.blog.br a minha comparação do Para Ler Como Um Escritor da Francine Prose com o Oficina de Escritores do Sthepen Kosh. Talvez vc goste de conhecer oq ambos possuem de diferente antes de lê-los.

1 abraço.

Klotz disse...

Comentários recebidos ao texto na comunidade Bar do Escritor:

liz
belê, me deu vontade chorar.
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sou Física, sabia? Só q não "sou"... *r... digamos "fiz" Física, há décadas...
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O Beto Menezes é prof. de Física! cê sabe, né?
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Tem coisas a aperfeiçoar no texto. Poucas.
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Me lembrei de um professor de Jornalismo q dizia q a escola e os alunos querem a mesma coisa: os alunos querem o diploma e a escola quer dar o diploma.
Entre eles, só tem o professor pra atrapalhar...

Larissa Marques
Klotz, Klotz!!!
Queria saber por que alguns se interessam e outros não.
Poderia dizer que a educação começa em casa, mas isso também é relativo, meus irmãos tiveram mesma base que tenho e são escravos da mídia.
Não entendo como as coisas nos tocam, mas sei que tocam, sou proa disso, mas não sei dizer porquê.
É um belo texto, e me fez pensar!

Klotz disse...

Klotz
Obrigado liz.
Aponte suas observações. Gosto realmente quando mostram aquilo que pode ser melhorado. Tenho aprendido muito a partir das observações dos outros. Serão muito bem-vindas.

Don Ramon
Questão complexa. Uma verdade. Acontece assim mesmo, claro, um pouco mais camuflado. Normalmente é na correção que o professor passa vista grossa.
Enfim, o aluno precisa ser cativado de alguma maneira, o educador precisa mostrar para o aluno que existe vida além de funk e sexo, o professor precisa de um piso melhor, o professor precisa de mais tempo livre...
Tanta coisa...

Klotz
Larissa, bom quando provocamos "o pensar" dos outros. Obrigadinho.

Don Ramon
Se bem que gabarito no quadro rola também...

Robertón
hehehe... Houve um tempo em os pais inflavam o peito e diziam: minha filha é professora! Agora eles apenas sussurram envergonhados...
Culpa dos militares que, com a reforma de 68/69, emburreceram o país.
Bons tempos aqueles em que a educação não era terceirizada, em que os Professores tinham a missão de ensinar e mereciam respeito.
Hoje, 99% dos alunos são vândalos impensantes, 90% dos Professores são desleixados e incompetentes e a grande maioria das escolas ou são casa de Maria Joana ou pequenas filiais da casa da moeda...
Enquanto isso, eu que aluguei conhecimento durante 4 anos (por falta de opção), depois de uma crônica publicada...
É xará, uma fotografia do ensino brasileiro! Triste, quase tenebrosa, mas boa de ler!

Klotz disse...

Cel Bentin
sina de professor dissociada do caráter? muito difícil haver. Professor é provocador já etimologicamente falando. Se não há como fazer faísca e ver um olho que seja brilhar, sentimos desesperançar o foco, derrubar a tenda do circo. Quem faz o espetáculo é o aluno, mas quem paga o ingresso é o pai. Os prof., por enquanto, seguem pagando o pato.

Feliz do moleque filho desse professor, camarada Klotz. Sou meio avesso a esse negócio de enxergar o pai de forma análoga a um pai. Mas nesse caso cabe: o teu professor aluno passou pela prova antes do filho nascer. A LIÇÃO DE PAI VAI DURAR A VIDA TODA, MAS ELE JÁ ADQUIRIU MUITOS CRÉDITOS NESSA LOUSA FRIA.

Parabéns!

Don Ramon
é.

Klotz
Será que o professor, de tão belos princípios, não deveria insistir mais, antes de abandonar a luta?

Anônimo disse...

Esse professor tinha que ser mais insistente mesmo. Acho que não precisava ser tão radical, ainda mais se já conhecia o cenário. Se o professor achou que deu uma lição de moral nessas crianças, por outro lado disse à elas: "desisto de vocês".

Robson

Klotz disse...

Esta é a grande e lamentável questão:
Em muitas escolas particulares o principal é faturar.
Em muitas escolas públicas o mais importante são os relatórios informando quantos alunos se formaram.
Poucos se preocupam com a qualidade daquilo que os alunos aprendem.
Para agravar a situação o mercado exige apenas o certificado de conclusão. Então os alunos para simplificar a vida, buscam apenas o diploma.

A personagem do conto não se propôs a modificar o sistema. O autor pretendeu levantar a questão. Expor a podridão do sistema educativo.

 
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