09 setembro 2008

A mão de Deus


Chego aos boxes, olho no monitor e vejo o acidente. Fixo as imagens, tiro o capacete e a balaclava, balanço a cabeça e me afasto. Terrível. O choque foi terrível. Acho que morreu.

O monitor dos boxes repete a cena em que o Fórmula 1 do austríaco Roland Ratzenberger se choca violentamente contra o guard-rail na pista de Ímola. Ayrton Senna se dirige a um carro da direção da prova enquanto médicos e para-médicos fazem a massagem cardíaca no acidentado.

Ontem foi o Rubens, gente boa. Ele me disse que estava ok.. Mas como pode estar bem? Todo esfolado, com a cara enfaixada e o nariz quebrado? Idiotas, queriam me barrar. É um absurdo ter que pular muros para ver um amigo no hospital. Será que querem tapar o sol com a peneira? Será que pensam que somos idiotas? O que eles querem? Querem enfiar feridos debaixo dos tapetes? E o Rolly, meu Deus, foi gravíssimo!

Senna rapidamente chega até o local do acidente, vê os restos mortais do carro sendo içado pelo guincho. Abre caminho entre jornalistas, bombeiros, fiscais de pista e em segundos o médico informa que não há esperanças. Sem dizer palavra, retorna ao carro que aguarda com as luzes do teto faiscando emergência. No paddock troca palavras ásperas com dirigentes da Federação Internacional de Automobilismo, se isola chorando atrás dos boxes e finalmente entra no motor home.

Tranco a porta. Malditos fotógrafos, me deixem em paz! Vocês só querem manchetes, agora eu não sou manchete. A primeira página está lá no asfalto, rodeado de destroços, pesadelos e aves de rapina. Xô, urubu, xô urubu! Morreu. O Rolly morreu. É isso que vocês querem, vocês querem vender jornal com as nossas vísceras! A tevê vai matar 200 vezes. Vai matar rápido, vai matar lento. Vai matar à distância, vai matar em close. Vão pra lá, urubus, lá está o cadáver que vocês querem. Jogo o boné azul em cima da mesa. Patrocinadores. Patrocinadores, vocês fazem parte deste jogo sórdido. Neste momento, algum de vocês pede foco no logotipo do carro içado com um anzol entre os olhos. Dinheiro. Dinheiro. Dinheiro. O chefão manda que não divulguem fotos com a marca da equipe. O Rolly morreu. O Rolly morreu, meu Deus! Cadê nossa segurança? Dirigentes só querem money. Money. Just money. Crápulas. Idiotas. Sanguinários. Digo pros filhos-da-puta que precisamos ter mais segurança e o que ouço? Que a minha função é pilotar! Morreu, o Rolly morreu! De que me adianta a minha luta, minha garra, minha determinação? Deus, Você é maior, dá-me a mão para pilotar. Vocês diabos, pegam minha mão para assinar contratos. Só me resta tirar o dinheiro dos diabos e entregar aos pobres.

Fecho os olhos, levanto a cabeça em devoção. Com a mão direita pego minha Cruz de Cristo, levo-a aos lábios e beijo.

Ave Maria,
cheia de graça,
o Senhor é convosco.
Bendita sois vós entre as mulheres
e bendito é o fruto do vosso ventre: Jesus.
Santa Maria, Mãe de Deus,
rogai por nós, pecadores,
agora e na hora da nossa morte.

Amém.

Julgam que tenho talento, talento tem o Michael... vocês não sabem, vocês não vêm minha dedicação, esforço, renúncia, treinos, concentração, repetição até a exaustão. Vocês não sabem das minhas preces, orações e agradecimentos. Vocês querem corrida? Vocês querem ver a platéia delirando? Vocês querem dinheiro? Vocês querem show? Eu, com ajuda de Deus, darei o que vocês querem. O campeonato, para mim, começa agora. Fiz a pole, farei a melhor volta e levarei os dez pontos. Não me entrego, estou de pé! Vocês vão sorrir de novo. A temporada de caça começou! Vou alcançar o coelho. Vou jantar o coelho. Depois da quadriculada, a brasileira vai tremular. Brasileira? Ah, Rolly, vou levar uma da Áustria, por você Rolly, por você!

Como de hábito, fecho os olhos, levanto a cabeça em devoção. Com a mão direita pego minha Cruz de Cristo, levo-a aos lábios e beijo.

Pai Nosso que estais no céu,
santificado seja o vosso nome,
vem a nós o Vosso reino,
seja feita a Vossa vontade
assim na terra como no céu.

O pão nosso de cada dia nos dai hoje,
perdoai-nos as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos
a quem nos têm ofendido,
não nos deixei cair em tentação
mas livrai-nos do mal.

Amém.

A bandeira, por você Rolly e por mim. Já houve acidentes antes. Sempre haverá acidentes. Mesmo depois de batidas alguém vence. Sempre há um vencedor. Ninguém me segura na chuva, vou vencer tempestades. Se eu quiser vencer, e eu quero vencer, tenho que reunir todas as minhas forças, todos os meus limites. Vou...

Batem na porta.

— The interview! They're here!

Fuck! — I'm coming! Respondo seco.

De que me adianta chorar? Amanhã devo sentar no meu esquife e pilotar! Melhor lavar a cara com água fria e enfrentar logo a realidade.

Espalho água no rosto. Ensopo meus cabelos. Quando jogo a cabeça para o

alto — prendeu na torneira — Merda! Que merda... arrebentei o cordão.

Desolado. Recolheu a corrente e a medalha na mão.

Fecho os olhos, levanto a cabeça em desespero — Deus, não me abandone! Por favor Deus, não me abandone, eu Vos imploro!

Consertou a corrente e atendeu os jornalistas.

9 comentários:

Lisa disse...

mesmo correndo o risco de parecer cruel com um comentário curtinho e mal esclarecido, lembrei do que meu pai dizia quando eu me dava mal. eu achava a frase bem fria logo que pronunciada, mas acabava sempre concordando e refletindo depois. ele dizia: "foi tu que escolheu o caminho, pequena! não adianta reclamar!"

as nossas paixões e seus riscos! isso dá sempre uma boa discussão...

eu, que não passo nem do limite de velocidade urbano de medrosa que sou, não escolheria essa paixão/profissão por dinheiro/fama/prazer/(coloque aqui uma motivação convincente) algum! ;P

beijokas!

Klotz disse...

Fazer escolhas não é fácil. \Sempre temos que considerar todos os aspectos antes de decidir. Infelizes são aqueles que não tem escolhas.

Assuma Lisa, confesse que você é useira e vezeira de excesos de velocidade. Que a sua carteira de motorista já foi suspensa por direção peroigosa... Relaxe, ninguém que visita meu blogue trabalha no Detran, relaxe!

ROQUE RASCUNHO disse...

putz, brilhante! clap, clap, clap, clap! sensacional, gostava desse cara.

abraço

Lisa disse...

é bem verdade! acabei de tomar uma multa por atravessar um sinal vermelho!
mas quem atravessou não foi eu, foi uma amiga com carteira provisória e eu tomei os pontos por ela... (tem certeza que ninguém do detran vem aqui?). foi a primeira utilidade da carteira em 4 anos! rsrs

Klotz disse...

É Roque, os domingos já não são mais os mesmos. Saudades da bandeirinha brasileira depois da vitória.

Lisa – Pode ter outras utilidades, sim. Em vez de emprestar, você poderia alugar sua carteira de motorista...

Barco a toa disse...

Parece que foi ontem, eu vivi isso e nunca desejei que o boné fosse azul. Mas os urubus estavam presentes e fotografaram, e filmaram e falaram e venderam e eu chorei - Osmar-BDE

Anônimo disse...

puxa!que dia aquele,hein? que bom que vc , com sua sensibildiade, não nos deixa esquecer quem foi esse grande homem. Na noite anterior ao domingo fatídico, eu acompanhei as cenas dele quieto,olhar distante, concentrado...muito quieto... e foi assim.
obrigada, Klotz!
Mas,sabe, tenho certeza dessa mão de DEus em todas as coisas, mesmo qdo parece que foi mão de homem. a mão de homem é mto pequena para alcançar e explicar tudo aquilo que a gente não entende. Mas o que é, fica!

Klotz disse...

Este texto é resultado de uma provocação da oficina do Núcleo de Literatura do Espaço Cultural da Câmara dos Deputados. Deveríamos escrever sobre as reflexões de alguma personagem famosa às vésperas da sua morte.
Alegra-me ter recebidos tantos comentários à respeito da minha interpretação dos pensamentos do nosso ilustre ídolo.
Difícil saber qual a mão Deus, diabo ou Senna, pilotou naquele dia fatídico.

Anônimo disse...

uma hora a gente vai sempre saber. é aguardar.

 
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