29 março 2014

A máquina de fazer espanhóis

A máquina de fazer espanhóis


Valter Hugo Mãe

Editora Cosac Naify

256 páginas

R$ 39,00

             A máquina de fazer espanhóis é a história de Antonio Jorge da Silva no período que se inicia pouco antes da esposa falecer, passa durante a internação num asilo de idosos em Portugal – Feliz Idade – e termina com a inevitável finitude. As pessoas são levadas a viver no asilo, só que lá não são esperadas grandes ações e os únicos projetos de vida são as queixas da morte. Assim a história se arrasta na velocidade de um octogenário estimulado por uma bengala tétrica.      
Eu poderia resumir o livro em duas palavras: triste, tristíssimo. Entretanto o romance tem inquestionáveis qualidades literárias e mais do que isso, traz uma história de subjugação de um povo na metáfora de um asilo de velhos. O jogo de ideias é espetacular, tornando inevitáveis as comparações.
Na pele do texto está o retiro dos velhinhos com suas doenças, dores e fraquezas enquanto que nas rugas estão incrustrados símbolos pátrios como Fernando Pessoa, Lusíadas, Lisboa, Eusébio, Amália Rodrigues, Salazar, Almada Negreiros e o Benfica. E instalada na carne está o amargor de algumas décadas de opressão.
Como quando diz que “Salazar foi como uma visita que recebemos em casa de bom grado, que começou por nos ajudar, mas que depois não quis mais ir-se embora e que nos fez sentir visita sua, até que nos tirou das mãos tudo quanto pôde e nos apreciou amaciados pela exaustão. A maioria silenciosa terá de emergir um dia, tudo era para que não praticássemos cidadania nenhuma e nos portássemos como uma engrenagem de uma máquina a passar por cima dos nossos ombros, complexa e grande demais para lhe percebermos o início, o fim e o fito de cultivar a soberba de um só homem.”
Quando eu leio um livro, gosto de sublinhar palavras, frases, anotar nas beiradas, dobrar orelhas. Já que eu cometi essas maldades com o meu exemplar eu gostaria de compartilhar o que destaquei.
“Eu sou daqueles que a vida doeu.”
Sobre a consequência da morte da esposa amada: “Vamos levar-lhe os braços e as pernas, vamos levar-lhe os olhos e perderá a voz, talvez lhe deixemos os pulmões, mas teremos de levar o coração, e lamentamos muito, mas não lhe será permitida qualquer felicidade de agora em diante.”
Sobre o internamento: “Meus filhos se haviam antecipado no tempo de me arquivarem.”
Ainda sobre o internamento: “Um problema com o ser velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo o sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento.”
Sobre o asilo: “O Lar da Feliz Idade, assim se chama o matadouro para onde fui metido.”
Sobre as caminhadas diárias: “Escoltado por alguém a levar-me como um cachorro a passeio.”
            Sobre desprezo com os ícones da igreja, em relação à imagem da Nossa Senhora de Fátima: “Coitada da rapariga, que até lhe põem uma expressão com vontade, mas depois não reage, fica como se a casa de banho estivesse ocupada.”
            Ao se comparar como cidadão submisso: “considerei depois que fui um hóspede bem fácil de dominar.”
Sobre o fascismo: “Queria que a política não fosse um assunto lá em casa. Haveríamos de apreciar a poesia, o folclore e uns fados, haveríamos de ter passeios aos domingos e brincar com os miúdos a crescerem e era assim a nossa vida, sem beliscar os tubarões que nos podiam ferrar.”
Sobre a rotatividade: “O lar da Feliz Idade estava sempre de luto, como um lar de idosos foi feito para estar.”
Num raro momento de humor considerou que uma das internas “ficou com expressão de quem comia chocolates sozinha.”
Ainda sobre a ditadura: “Somos um país de cidadãos não praticantes.”
À respeito do momento econômico: “Somos estuporados por todo o lado, pagamos o mesmo que a Europa paga por qualquer coisa, mas ganhamos três vezes menos, temos salário de rato. Salário de humanos de segunda.”
Aqui a metáfora é quase óbvia: “Seguramente alegravam-se os dois por o tolo do velho estar mais amansado como convinha para não levantar problemas nem criar angústias grandes a quem tem ainda uma vida, não podia parar de o odiar um pouco e saber que algum mal se mantinha no meu íntimo.”
Comparou o regime: “a morte era, afinal, a mais organizada das instituições. Cheia de afazeres e detalhes, mas muito competente e certeira.”
Sobre a opressão: “Enquanto houver um Salazar em cada família, estamos entregues ao inimigo.”
Francamente eu não gostaria de digitar tantas passagens, mas o autor, como pensador merece os registros e muito outros mais como: “Inventamos Deus porque temos de nos policiar uns aos outros, é verdade. É tão mais fácil gerir os vizinhos se compactuarmos com a hipótese de existir um indivíduo sem corpo que atravessa as casas e escuta tudo quanto dizemos e vê tudo quanto fazemos. É tão mais fácil se esta ideia for vendida a cada pessoa com a agravante de se lhe dizer que, um dia, quando morrer, esse mesmo sinistro ser virá ao seu encontro para punir ou premiar pelo comportamento que houver tido em todo o tempo que gastou.” E ainda: “Quanto menos acreditarmos uns nos outros, mais solicitamos o policiamento, e se o policiamento divino entra em crise, porque as mentes se libertam e o jugo glutão da igreja já não funciona, é preciso que se solicite do estado esse policiamento.”
            Em determinado momento o livro me puxou para baixo, me derrubou na lata da tristeza. Eu parei e procurei analisar o que o escritor fez. Sublinhei à página 76: 17 vezes a palavra não, além de dois nada, quatro conjugações de chorar, duas lágrimas e duas velho. Risquei quatro variações de morte e observei que o autor abriu um dicionário com cheiro de velório ao empregar: dor, coisa, nem, coitada, secar, abdicar, secar o corpo à fome, suportar, maldição, ridiculamente, escuro, afundando-se, tristes, insondáveis, desrespeito e inferno. Quase parei a leitura. Mas o esforço de superação valeu a pena.
Cada povo sofre, sofreu ou sofrerá com o poder dos governantes.
Entre brasileiros e portugueses há muito mais semelhanças que diferenças. Mudo de assunto, mas faço disso o gancho para dizer que por sermos brasileiros imaginamos que teremos alguma dificuldade em entender a escrita do autor pelas diferenças das línguas faladas no Brasil e em Portugal. Mas a maior diferença que há entre as duas línguas está na pronúncia e no sotaque. Na linguagem escrita é tudo muito próximo. Às vezes nos deparamos com alguma ou outra palavra que causa ligeira estranheza, mas nada mais que isso. Anotei subtileza, carácteres, acto inaceitável, higiénico, parvo em vez de idiota, húmido, fita-cola, gelado e a curiosa paneleiro que entendemos perfeitamente o sentido no contexto.

Ah, sim, eu já ia me esquecendo. O autor opta por não utilizar recuos de parágrafos nem utilizar letras maiúsculas, nem travessões para os diálogos. Não é nada que impeça a leitura, mas torna a leitura mais lenta e atrapalhada. É como instalar usar trilhos de trenó num carro. O carro vai se locomover, porém mais lento e desengonçado. As normas da escrita não são opções literárias. Eles foram desenvolvidas para agilizar a leitura.
E também quase ia me esquecendo de elogiar mais um belíssimo trabalho gráfico da Editora.
Concluo que os prêmios literários foram merecidos pelo autor. O romance é ótimo, mas exige muito sacrifício para a leitura.

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