27 novembro 2008

E agora, Maria?

Pela primeira vez, em quatro meses, acordara disposto e bem humorado. A grama em Brasília verdejara. Além disso, voltara a trabalhar no meu ofício como corretor, agora em uma grande incorporadora. A vantagem é que ela promovia os lançamentos imobiliários nos jornais e na televisão. Faria mais de uma venda no conjunto de salas recém-lançadas e dirigidas ao segmento médico.

Lembro-me dos acontecimentos daquele dia como se tivessem acontecido agora, há poucos minutos, mesmo após mais de uma década desde aquela segunda-feira, 15 de agosto de 1994. Na época, a minha intuição profetizara que aquele dia seria incomum. Seria um dia fantástico.

Saí de casa exatamente às 9h30, meia hora antes do início de meu expediente e me dirigi ao Setor Hospitalar Sul. No céu azul, o sol mostrava os dentes num enorme sorriso.

Bem próximo ao meu destino, chamou minha atenção uma banca de flores expondo cravos brancos. Foi irresistível. Combinava com o meu humor e completaria a minha auto-estima. Virei à esquerda e estacionei exatamente em frente à banca. Escolhi duas dúzias de flores que foram embrulhadas em papel celofane e presas com uma fita vermelha. Voltei para o carro, depositei o maço florido no banco de passageiros e o observei demoradamente. No mundo machista, em que vivemos, percebi como seria ridículo enfeitar com tantas flores o ambiente de trabalho. No trailer de vendas mal cabiam eu e um cliente, quanto mais duas dúzias de cravos brancos. O supervisor passaria por lá mais tarde. Se ele as visse, e não teria como não ver, espalharia no mesmo dia a notícia para toda a equipe. E eu precisava tanto daquele emprego.

Automaticamente, liguei o carro. Pensava nas flores e na conseqüência da provável falação. Segui em frente ao invés de entrar à direita, rumo ao meu ponto de vendas. Quando me dei conta, cem metros adiante, estava dentro do cemitério. Tudo foi muito rápido ou as minhas reações é que estavam lentas.

Acreditem, fiquei feliz com a solução apontada pelo destino. Decidi me desfazer das flores em algum túmulo. Avancei mais um pouco e estacionei o meu carrinho junto ao meio fio. Peguei o ramalhete e comecei a andar à procura de um jazigo que me fosse simpático, que me agradasse.

Nesses meus quatro meses de Brasília, jamais havia pisado no cemitério. O local plano, muito amplo e com verde para todos os lados, me agradou. Andei por entre várias sepulturas e logo encontrei uma, diferenciada. Uma singela cruz de mármore deitada ao lado da placa de bronze. O espaço era regado pela sombra de um ipê de flores amarelas.

Depositei o ramalhete e li o nome da morta:


Maria Helena dos Santos Abreu

* 13 04 1951

15 08 1993


Meus joelhos dobraram. Caí. Caí em choro compulsivo. Fazia um ano, exatamente um ano, que Helena, minha paixão, falecera.

Eu havia mudado de cidade em busca de Maria Helena. Eu sabia que ela estava morando em Brasília. Era só o que eu sabia. Vim para procurar por Helena. Minha doce Heleninha. Encontrei-a depois de quatro meses. Agarrei-me às flores, agora eu entendia porque escolhera cravos brancos. Eram suas prediletas.

Helena significou alegria na minha vida. Sempre inventava fórmulas para fazer e dizer as coisas de uma forma única, singular. Impossível classificá-la apenas com uma palavra. Helena era paixão, sexo, entusiasmo, imaginação, ousadia e criatividade.

Conhecemos-nos em Belo Horizonte, na ante-sala do dentista, e, antes mesmo da consulta, trocamos o primeiro beijo. O segundo beijo foi muito engraçado, pois nós dois estávamos com as bocas anestesiadas.

Heleninha era um ser especial, pessoa com muita energia. Acordava disposta, irradiava animação o dia inteiro e se deitava com disposição para brincar de montanha-russa.

Uma vez fomos convidados a passar o fim de semana na chácara de um amigo. Depois de duas horas de cerveja, ela me puxou pela mão dizendo-se com vontade de comer mangas colhidas no pé. A mangueira nem estava muito longe. Procurei uma vara para cutucar as frutas e ela argumentou que não se deve bater nem em frutas, que deveríamos subir na árvore e colhê-las com suavidade. Parecia uma macaquinha. Em dois tempos estava no alto com uma fruta avermelhada na mão. Demorei a alcançar o mesmo galho. Chupamos mangas e trocamos beijos. Chupamos beijos e trocamos mangas.

De uma outra vez, numa quarta-feira, ela insistiu em ver o pôr-do-sol no ponto mais alto da cidade, o Conjunto JK. Lá, o enorme relógio brilha a hora certa de dia e de noite. Helena superava todas as barreiras e conseguimos chegar ao topo do edifício, na cobertura, com relativa facilidade. A surpreendente Heleninha tinha razão, a vista fascinante merecia um brinde e por isso trouxera uma garrafa que ainda conservava a temperatura gelada. A rolha do espumante explodiu prédio abaixo. Foi sensual beber champanhe sobre a pele. Foi erótico amar tendo beagá aos nossos pés.

Você não tem idéia o quanto amei essa mulher.

E nem pense que Heleninha só gostava das alturas. Num feriado, na distante Guarapari, depois de comermos moqueca de siri e bolinhos de mandioca, num dos quiosques da praia, fomos nos refrescar. A água transparente permitia que meus olhos vissem a tatuagem que só eu conhecia. Naquele dia o mar ferveu.

Em nossos momentos de reflexão e maturidade sabíamos que juntos não teríamos futuro nem segurança. Escrevemos um pacto, assinamos com letras de paixão e nos casamos. Ela com um rico engenheiro e eu com uma dondoca metida a besta. Nossos encontros diários passaram a ser semanais. Carentes, combinamos um jantar no mesmo restaurante. Ela com o marido e eu com a minha esposa. Naturalmente, em mesas diferentes. Foi muito excitante levantarmos ao mesmo tempo e entrarmos furtivamente no mesmo banheiro.

Foram muitos os encontros. Em outra oportunidade, pedi a um colega, corretor, que me desse as chaves de um apartamento finamente mobiliado para mostrá-lo para um cliente. Fantasiamos uma tarde inesquecível. Ela de enfermeira e eu de caubói.

Tudo se transformou quando Maria Helena e o marido mudaram para Brasília. Alugamos caixas postais para trocarmos correspondências entusiasmadas e libertinas. Após oito meses, de uma hora para outra, inexplicavelmente, Helena despediu-se e sumiu. Parou de escrever. Aguardei alguns meses sem nenhum contato. Entrei em desespero e me propus a encontrá-la. Desfiz meu casamento, larguei meu emprego e peguei a estrada. Eu não tinha o telefone nem o endereço. Apenas o número de uma caixa postal e uma fixação: encontrar a amada.

Como eu iria localizar uma secretária? Procurei pelo marido em todas as construtoras. Vasculhei órgãos públicos e empresas privadas. Até que, diante do túmulo, no dia 15 de agosto, relembrei de todos os fatos, e ainda ajoelhado, voltei a abraçar o maço com a fita vermelha.

Todos devem ter uma Maria Helena na vida.

Para mim, naquele momento, a mensagem da última carta recebida fez sentido.

“Meu amor, eu estou muito bem. Recebi a herança da minha mãe.”

Eu não conheci Dona Diva, a mãe de Maria Helena, soube apenas que era uma pobretona como eu e que faleceu de câncer nos pulmões.

Terminou a carta dizendo que “me chamaria quando estivesse em paz novamente.”

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