01 novembro 2016

Lançamento do Manual do escritor

Mais uma amostra do MANUAL DO ESCRITOR


5.1 Abertura

As regras da escrita foram estabelecidas para facilitar a vida do leitor assim como as regras do trânsito foram desenvolvidas para evitar o caos nas ruas.
Esqueça as literatices. Crie parágrafos e recue os inícios de parágrafos.
                            
As primeiras linhas devem seduzir. Deve-se criar um clima emocional logo no início da narrativa. Evite incluir informações que sobrecarreguem. Provoque a curiosidade através de emoções como assombro, desejo, repulsa, ódio, coragem, alegria, medo, vergonha, raiva, felicidade, orgulho, inveja. Crie uma tensão.

Metamorfose – Franz Kafka – novela
Certa manhã, ao despertar de sonhos intranquilos, Gregor Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.
O tcheco revolucionou ao abrir a história com uma proposta fantástica. Criou um paradigma assustador e precisou convencer os leitores da sua verossimilhança.

Vidas secas – Graciliano Ramos – romance
Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos da catinga rala.
Com palavras áridas, Graciliano mostrou a falta de perspectivas da família. A grande meta a ser atingida é a modesta sombra de um juazeiro.

O estrangeiro – Albert Camus romance
O pensamento hesitante sobre a data da morte materna leva-nos a questionar o amor pela mãe e a perguntar, secretamente, por que não deveria amar a mãe.

O túnel – Ernesto Sábato – romance
Bastará dizer que sou Juan Pablo Castel, o pintor que matou a María Iribarne; suponho que o processo está na lembrança de todos e que não se precisam maiores explicações sobre minha pessoa.
Dificilmente as pessoas assumem os erros, quanto mais um assassinato. Neste caso, a provocação é que todos conhecem a causa menos o leitor.

A humilhação – Philip Roth – romance
Ele perdera a magia. O impulso se esgotara. Ele nunca havia fracassado no teatro, tudo o que fizera sempre fora vigoroso e bem-sucedido, e então aconteceu esta coisa terrível: ele não conseguia representar. Subir ao palco tornou-se uma agonia. Em vez da certeza de que teria um desempenho maravilhoso, sabia que ia fracassar. A coisa aconteceu três vezes seguidas, e na última vez ninguém mostrou interesse, ninguém foi. Ele não conseguia se comunicar com a plateia. Seu talento havia morrido.
O romancista norte-americano comparou a instalação do fracasso de um ator à instalação do desastre sexual masculino. Ao comparar potencializou a situação desesperadora.

Cem anos de solidão – Gabriel García Márquez – romance
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia com vinte casas de pau a pique e telhados de sapé construídos na beira do rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo.
A morte sempre é chocante. Ainda mais se sabemos a hora em que ela vai ocorrer. No exato momento do fim, procura recordar tudo o que aconteceu com as gerações dos Buendía desde os tempos da era do gelo, numa espetacular antítese.

Ana Karênina – Leon Tolstói – romance
Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
O questionamento é imediato: porque infelizes?

Nota do editor: Você se lembra do alerta: “É desastroso autores forçarem situações para expor o resultado de toda a pesquisa realizada.”?
— Aqui há exemplos demais!


Mais uma amostra do MANUAL DO ESCRITOR
Lançamento dia 09 de novembro – quarta-feira – no Carpe Diem da Asa Sul.

Livros só com o autor.     r-klotz@uol.com.br

31 outubro 2016

O céu de Lima
Juan Gómez Bárcena 

Alfaguara

246 páginas

R$ 40,00


Escrever uma crítica literária é desagradável quando o livro desagrada. Neste caso, com O céu de Lima foi prazeroso opinar.
Em 1904, dois sonhadores poetas peruanos que idolatram um poeta espanhol – Juan Ramón Jiménez, cujo mais recente livro não está disponível no país. Acham que se escrevessem uma carta ao autor para solicitar um exemplar não seriam atendidos, então resolvem criar uma personagem, Georgina Hübner, para seduzir o espanhol e, aí sim, encomendar o livro.  Recebem o livro, festejam e contam vantagem entre os amigos também admiradores do europeu. Em vez de se darem por satisfeitos, resolvem dar continuidade à sedução com o objetivo de conseguir um poema dedicado à personagem inventada.
Logo de cara eu amei a faísca que impulsionou o autor a escrever. Depois, confirmei que o mote que originou a história é verdadeiro e Juan Ramón Jiménez veio a ganhar o Nobel de literatura em 1956.
Juan Gómez Bárcena nos conduz por uma história riquíssima, repleta de surpresas, expectativas e realismo.
Além de desenvolver a história, revela deliciosamente a personalidade, modo de vida e entrelaçamento dos diversos personagens
Em resumo, José Gálvez Barrenechea, de família ilustre, é bastante objetivo para conseguir o almejado poema, enquanto Carlos Rodríguez, filho de empresário que venceu ao explorar índios nos seringais, redige com letra feminina as cartas desenvolvidas em conjunto e praticamente incorpora Georgina na tentativa de sedução.
O conjunto de cartas, estimulado por um escriba de cartas, se transforma também  para a redação de um romance.
                O narrador relata a sua versão ambientada cem anos atrás.  É uma história de vida, de amor, de relacionamentos e de literatura. De literatura porque insere dezenas de informações para produzir um romance.
Construção de personagem: para seduzir, o escriba de cartas sugere que “o que se mostra pela metade sempre sugere mais do que o que se mostra por completo.” E completa: “porque mostrar-se demais é tão pouco sedutor como não se mostrar em absoluto.” E hilário informa que para se fingir de mulher “basta acrescentar uns quantos ‘não sei’, ‘acho que ‘, e ‘tenho a impressão’, porque as mulheres hesitam muito. E reticências também; todas que puder. E depois a questão da caligrafia: mais complicada do que parece. Mas fora isso... sabe qual é o segredo? Imaginar-se uma mulher que você amou. E como todos os homens somos parecidos, é de esperar que o sujeito a quem escrevemos compartilhe a nossa maneira de ver as coisas...”
Algumas páginas depois põe em prática a sugestão.
“Georgina é a mesma prostituta polaca outra vez.
A prostituta polaca se ainda fosse virgem seis anos depois.
A prostituta polaca se não fosse prostituta nem polaca; se em vez de ter nascido na Galícia e ter sido vendida por vinte copeques, tivesse nascido numa mansão de Miraflores e recebido presentes de quatrocentos dólares em sua festa de debutante.”
Páginas adiante, vale conferir, mostra como seria Georgina na imaginação de José.
Ainda fornece a receita estrutural que “nas páginas centrais de todo romance deve acontecer algo extraordinário.”.
Faltando vinte páginas ensina que: “o final precisa de um efeito dramático, porque os melhores romances de amor terminam em tragédia.”.
Mas o autor faz muito melhor do que recomenda. Surpreende com um final imprevisto.
É certo que o meu olhar de escritor observa atentamente as técnicas do escritor, mas muito mais do que isso, quem se manifesta em aplausos é o meu sentimento de leitor.


11 outubro 2016

Turista

Vai escrever um conto, uma crônica? Um romance?

Nem pense que acrescentando tchê, uai ou meu rei às falas transforma os personagens em gaúchos, mineiros ou baianos. Tampouco situando-os numa roda de chimarrão, na arquibancada do Mineirão ou comendo acarajé na porta da igreja de Nosso Senhor do Bonfim realizará o milagre da transformação.
Pesquise para convencer o leitor.
Se o personagem é surfista, entre na onda.
Se é malandro, suba o morro.
Se é velho, pegue um bonde e visite-o no asilo.
Da mesma forma, estude e entre no cenário onde ocorre a história. Sinta sede no sertão árido, coloque um quipá para rezar numa sinagoga, apavore-se numa cela do terceiro distrito.
De preferência escreva sobre o que está ao seu redor, aquilo que você conhece, pensa ou vive. Sobretudo a respeito daquilo que lhe importa.
Grandes autores não foram turistas, nem precisaram viajar. Guimarães Rosa estava em casa no sertão mineiro. Franz Kafka nem precisou transformar-se para falar de assédio moral. Camus era estrangeiro na própria pele.
Neste Manual do escritor precisei pesquisar, entrevistar e ler muito para me aproximar da verdade, se é que ela existe.

Neste mês de outubro, lançarei o Manual do Escritor. Revisão feita. Está na mão do diagramador. Pense em alguém orgulhoso do trabalho.

19 setembro 2016

Tempero de família


Cozinheiro sofre.  Principalmente com a concorrência dos reality’s cooker's.
Sofre só até achar o prato certo.
Precisa ser saudável, fácil, sem frescuras e preferencialmente econômico. Ser gostoso e boa apresentação são condições para todos os pratos, então não carecem ser mencionados. Mas um nome sofisticado, francês, agrega valor.
Se você não quiser a receita, leia só os dois últimos parágrafos.
Para os parisienses é frango com quiabo, um prato caipira. Mas, para mim, analfabeto culinário, acho até difícil de pronunciar, ratatuille, é sofisticação em primeiro grau.
Fui até a mercearia perto de casa. Providenciei quatro tomates vermelhos escuros, bem maduros, outros três tomates italianos por serem mais compridos que redondos, uma abobrinha, uma berinjela e quatro cebolas médias – três roxas para dar um colorido legal. Pedi ao atendente um raminho de alecrim, um de manjericão e outro de tomilho. Alho eu não precisava comprar.
Em casa coloquei o avental que me transforma de leigo em cozinheiro.
Comecei com o molho. Na panela aqueci meia xícara de azeite, acrescentei rodelas da cebola comum.
Piquei dois dentes de alho e juntei às cebolas
Descartei as sementes dos três tomates maduros e cortei em pedaços pequenos.
Quando a cebola estava amarelando somei os tomates à panela. Acrescentei os ramos desfolhados de alecrim, tomilho e manjericão. 
— Não conte para ninguém, mas em vez de sal usei dois cubinhos de bacon. 
A minha páprica picante acabou, mas como gosto de pimenta juntei meio dedo-de-moça picado.
Esperei desmanchar o tomate, desliguei o fogo, esperei esfriar um pouco e coloquei no processador.  Depois voltei o molho para a panela para engrossar um cadinho.
— Caraca!  Quase esqueci  de colocar o vinho na geladeira (poderia ter sido a cerva no freezer).
Fatiei os tomates italianos, as cebolas roxas. Deixei para fatiar a abobrinha e a berinjela para a última hora porque escurecem.
Despejei o molho num refratário e dispus as rodelas alternando os legumes.
— Bem que eu poderia ter comprado um pimentão amarelo!
Fotografei com o celular, antes e depois de assar e disparei a imagem via whatsapp para Santa Catarina.




Nos 40 minutos que assava 200oC  lavei a louça, estendi a toalha branca na mesa, tomei uma chuveirada, fiquei cheiroso. Mentalmente amarrei o Rodrigo Hilbert e acendi uma vela para a Fernanda Lima.

13 setembro 2016

O que fazer nos dias de chuva?




Questionei minha vida. Repensei trabalho, vícios, saúde, amor, atitudes, amizades, laser. Passei a caminhar diariamente e refletir mudanças.
Houve o dia em que senti que era o momento de reviver a chuva. Será que a chuva provoca resfriado? Será que me energiza? É verdade que chuva lava a alma? Ou será que com a chuva somos igual a um tênis que leva uma semana para secar? Saí e me encharquei de vida. Senti-me como uma criança perguntadeira que ao chegar em casa levou bronca por participar de ações radicais ao querer entender o mundo com a própria experiência.


Então? O que fazer nos dias de chuva?

Aos 12 anos – comprar uma briga com a mãe, se recusar de ir para a escola e ficar na cama.

Quando apaixonada – recolher uma cesta de pingos e fritar bolinhos de chuva.

Quando bem acompanhado – colocar a capinha antes de fazer amor.

Se mulher – amaldiçoar os deuses do Olimpo que inventaram o cabelo indócil.

Se esquecido – procurar na agenda de telefones o número do disq guarda-chuvas.

Aos 32 anos – Trocar beijos carinhosos com a esposa, em casa, ao invés de trocar apertos de mãos com colegas no trabalho.

Se morador da periferia – espalhar baldes sob as goteiras.

Se vendedor ambulante – aumentar o tamanho da barraca e trocar o filtro solar por guarda-chuvas.

Quando de bem com a vida – ir para a janela e olhar as gotas apostarem corrida na vidraça.


Quando escoteiro – rezar para nunca mais chover nos dias de acampamento.

05 setembro 2016

Amor em demasia


Levanto-me depois do despertador tocar pela terceira vez. Abro a janela e a luz não chega até minha casa. Meu quarto está escuro, a casa está escura. Minha vida é escura.
Se eu não precisasse fazer o café, eu ficaria deitada para sempre. As crianças precisam de força para encarar mais um dia e João fica muito bravo se eu me atrasar.
Todos saem para trabalhar. Cabe-me lavar a louça de hoje e a de ontem à noite. Lavar, enxugar e guardar. Deixar tudo limpo e impecável para ser usado de novo. Todos os dias são iguais, sempre são a mesma coisa. Deixar tudo limpo e impecável para ser usado de novo. A pior sujeira é aquela que os olhos não veem. Os vestígios estão na cozinha, na sala e nos lençóis.
As xícaras não falam. O sofá não fala. Os travesseiros não falam. Mas eu escuto todos os gritos da casa.
João é forte, bonito e maravilhoso. Quase sempre traz um doce ou uma bijuteria para mim. Ele é insaciável. Quer me presentear todos os dias.
João não estudou. Trabalha duro e jamais faltou feijão na panela ou dinheiro para o aluguel. Dependemos dele. A única coisa que pede é amor. Diariamente.
Estou muito fraca. Já não consigo satisfazê-lo todos os dias. Ele se diverte com as crianças.
Já se passaram 20 anos de quando Joãozinho chorou pela primeira vez. Quando Nicinha completou 5 anos, também chorou. João nos amava.
Hoje, todos estão na rua trabalhando. Jamais ganhei um centavo, nem sei o que é ter patrão. Fico em casa enxugando louça e lágrimas.
Uma vez contei para uma vizinha. Mudamos de casa depois de uma semana. Carreguei geladeira e fogão mesmo toda enfaixada da surra que eu levei.
Já pensei em denunciar. Já pensei em envenenar João. E daí? Quem vai pagar o aluguel? Quem vai trazer pão e leite? Quem vai me vestir? Quem vai me dar pulseiras?
Já pensei em apagar a minha luz. Quem vai proteger Nicinha? Quem vai proteger Joãozinho?
Nossa casa é pequena. Nicinha e Joãozinho dividem o quarto e o pai. Nicinha coleciona brincos e Joãozinho está gordo de tantos doces. Silenciosamente, nos revezamos para repartir e amenizar o sofrimento. Somos prisioneiros e cúmplices do amor.
O despertador toca mais uma vez. A luz da janela não chega até minha casa. Tudo está escuro. Nossa vida é escura

30 agosto 2016

Greve do cão


São inacreditáveis algumas das notícias que lemos:

“Lambidas de cachorro podem parecer carinho, mas na verdade são apenas uma forma que os animais têm de identificar por onde o dono andou, diz a pesquisa norte-americaana. Como são animais com muita sensibilidade a cheiros e sabores, os cães fazem a festa, experimentando novas sensações quando seus donos voltam da rua.”

Todos estavam tensos. Nervosos. Temiam a presença de espiões entre eles. Ao entrarem no austero prédio foram vasculhados minunciosamente e sequer uma pulga foi encontrada.
Civilizadamente caminharam sobre o piso de granito de Assuã – o mesmo das pirâmidas egípcias – admirando as pinturas dos mestres Boticelli e Donatello do renascimento florentino, para se acomodarem na mesa de jacarandá doada por Rui Barbosa. Estava reunida em Haia, na Holanda, a cúpula dos cães farejadores do planeta.
O artigo publicado nos jornais mundo afora encimava a pauta da reunião extraordinária.
A mesa redonda distribui o poder de forma equilibrada entre os presentes. O pastor alemão Lutero representa os farejadores de palavrões nos livros escolares. O labrador golden retriver Strongnose é o diretor de operaçãoe especias nos aeroportos da costa oeste dos Estados Unidos. É capaz de identificar a cidade de origem de qualquer americano pelo cheiro do chiclete. Batalão, é um premiado vira-latas da Rocinha: localizou um torcedor do América em dia de Maracanã lotado. Talmud é policial reformado do exército. Se aposentou antes de encontrar a paz no terrítório israelense. O mastiff Eticus nascido em Roma, é especialista em fungar políticos. Em doze anos de serviço foi capaz de localizar dois honestos.
Com o austrero cenário descrito, alguns personagens apresentados e o microfone do tradutor simultâneo desligado para evitar gravações, deu-se início à reunião.
Todos rosnaram simultaneamente.
— É um absurdo o que fazem conosco. Temos que dar um basta nesta situação abusiva.
— Exigimos o máximo de oito horas de trabalhos diárias.
— Precisamos de descanso semanal.
— Chega de ração. Exigimos comida decente.
— Também temos direito à sobremesa.
— Chega de banhos em quartos de empregada. Precisamos de banheiras com hidromassagem.
Apenas o sindicalista Arnoldo estava quieto no seu lugar. No momento certo latiu mais alto, silenciou todos. O pitbull conhecido por seu temperamento agressivo e apelido de Exterminador afirmou que precisavam de uma proposta única. Consequentemente todas as reinvindicações foram anotadas e por unanimidade foi votada e aprovada que iriam exigir o direito de lamber e cheirar bifes de filé mignon.
E agora sim, Arnoldo, com sua larga experiência apresentou a grande arma secreta, o único meio de persuadir os homens a terem boa vontade. Uma greve.
— Todos, até o cachorro do cafezinho latiram em coro: Unidos unidos jamais seremos vencidos; unidos unidos jamais seremos vencidos.
Foi deflagrada a greve por tempo indeterminado. A partir do dia seguinte todos os cães da face da terra deixariam de abanar o rabo.


15 agosto 2016

Dinossauros exibem multichifres

“Escavações em uma remota região do sul do estado norte-americano de Utah descobrem uma série de dinossauros com vários ornamentos na cabeça. Os chifres serviam não só para a luta com outros animais, mas como forma de atração para as fêmeas.” Depois que li essa provocação no jornal meus dedos se agitaram:

Kosmoceratops Richardsoni com seus 15 chifres e Utahceratops Gettyi com cinco cornos revezavam-se frente a um espelho do shopping center. O espelho era muito pequeno para os dois simultaneamente.

Utah, o menorzinho, media 3 metros de orelha a orelha. Admirava as próprias guampas. Virava-se para a direita, depois para a esquerda. Meio de ladinho, empinava um chifre de cada vez, sentindo-se o rei do pedaço. Pensava seriamente em pintar um de cada cor. Estava cansado do mesmo tom de azul. Kosmo sugeria passar na chifrecure do terceiro piso. Lá sugeriram o amarelo por transmitir calor, luz e descontração.

Kosmo e Utah, bons dinossauros que são, carimbam protocolos na mesma repartição. Aos sábados de manhã jogam futebol e sábados à noite se esbaldam num pagode.

Quando o sol se põe, vaidosíssimos, experimentam meia dúzia de camisas. Calça justa de cintura baixa. Cinto com fivelão. Combinam a meia com a cor da camisa. Se perfumam com âmbar francês. Reclamam dos sapatos. Dizem que estão apertados, que a indústria de calçados é incapaz de produzir sapatos resistentes. Passam brilhantina nos cornos. Kosmo lança moda com o primeiro chifre tatuado da turma: um homem de paletó e gravata. Antes de sair de casa pegam um chiclete, pois tudo acontece no interior dos Estados Unidos.

Estão prontos para paquerar e exibir as vastas ponteiras coloridas.

Sentam-se numa mesa perto da entrada para melhor observar e escolher as dinas. Enquanto os enroladinhos de alface não chegam, invariavelmente conversam e debocham dos antepassados de outras eras que se utilizavam dos chifres para brigar com rivais na disputa das melhores fêmeas. Que falta de civilização! Agora não, basta exibi-los para conquistar as mais formosas e curvilíneas fêmeas. Orgulhosamente argumentam ser de espécies evoluídas. Conhecem de cor e salteado o discurso feminino. A elas pouco importa o tamanho da calosidade no cocuruto, o principal é a quantidade de adornos. Quanto mais cornos, melhor. Eles, inocentes e felizes gargalham chacoalhando as cabeças premiadas.

As fêmeas chegam aos barzinhos de saia curta balançando os rabinhos e contando cuidadosamente o número de bicos nas cabeças dos pretendentes. Nem querem conversa. Pouco se importam se são pontudos, retorcidos, compridos, furados, galhados, grossos, rombudos ou coloridos. Desejam profusão. Os machos, cegos de futilidade, ostentam, além das cores e piercings, chifres com luzinhas nas pontas.

Ao contrário do que concluíram os cientistas, as fêmeas não consideram excitante a grande quantidade de chifres. Elas preferem parceiros muito chifrudos apenas porque significa que são tolerantes e certamente terão maior liberdade sexual. Simples assim!

09 agosto 2016

DEVOLUÇÃO PERIGOSA



Foi publicado que “A biblioteca pública de Winona (Estados Unidos) perdoou as dívidas de todas as devoluções atrasadas de livros. O resultado: um livro perdido há pelo menos 35 anos foi parar na caixa da biblioteca. O exemplar devolvido é de um livro com textos de diários de figuras públicas norte-americanas quando crianças. O livro foi publicado em 1966 e emprestado quatro vezes antes de desaparecer. Não fosse pela semana de perdão das dívidas promovida pela biblioteca, o proprietário do livro perdido teria de pagar mais de US$1,4 mil (cerca de R$ 2,4mil) de multa.”
Essa história mexeu comigo.

A manchete do jornalzinho da pequena cidade americana anunciava que naquele sábado a biblioteca municipal promoveria o dia do perdão. O acervo estava prejudicado. Por maior que fosse o atraso, todos que devolvessem livros naquele dia seriam perdoados nas multas.

John Smith fecha cuidadosamente o jornaleco sobre a mesa e olha para a estante repleta de livros. Com os olhos percorre as prateleiras, uma a uma. Fixa-se numa capa verde clara desbotada pelo tempo. Levanta-se e puxa o livro pela lombada. Uma orelha dobrada indica quando Humbert inicia a longa viagem de prazer, pela Europa, com Lolita. Volta a fechar o livro e se recorda de mil aventuras quando era vendedor de xarope. Sua camionete conhecia todas as estradas do Alabama, Mississipi, Tenessee, Kentucky, Missouri e Arkansas. Em cada cidade, em cada vila, mesmo que houvesse apenas uma única mulher, novinha que fosse, Smith dormia acompanhado.

Coisas do passado. Fui acusado justamente e injustamente. Revoltou-se com o apelido de serial fucker. Cumpriu pena alternativa durante um ano distribuindo basic baskets em um orfanato.

Dizia-se redimido. Fixou residência. Passou a frequentar uma igreja evangélica.

Mais que um livro, Lolita fora seu companheiro de viagens durante 40 anos. Agora a estrada chegara ao fim. O livro precisava ser devolvido. Necessitava demonstrar a todos que estava regenerado, era homem cumpridor das leis, que estava reintegrado na sociedade. Que poderia olhar nos olhos dos vizinhos sem constrangimentos. John Smith voltara a ser um cidadão. A devolução seria o momento libertador.

O sábado chegou e o evento, dia do perdão, atraiu toda a população do vilarejo. O banjo, a gaita e o violino faziam a festa. Um misto de fotógrafo e jornalista registrava sorrisos de leitores que devolviam livros sem desmbolsar preciosos dólares.

Smith, retornando do culto, retirou o livro de dentro de uma sacola e, sob os flashes, entregou-o orgulhosamente à bibliotecária.

— Muito obrigado. O senhor é o mister John Smith, não é?

— Sim sou eu mesmo. É um alívio livrar-me deste pecado.


— Consta que, além de Lolita, o senhor ainda detém Memórias de uma Mulher de PrazerFanny Hill de J. Cleland; O Amante de Lady Chatterly de D. H. Lawrence; Trópico de Câncer de Henry Miller; História de O, de Pauline Reage além de Justine e Filosofia na alcova do Marquês de Sade. O senhor continua pervertido!

26 julho 2016

De repente, outra língua

De repente, outra língua

Há algum tempo o jornal publicou que “Britânica passa a falar com pronúncia francesa depois de uma série crise de enxaqueca. Kay Russel conta como foi se descobrir com a chamada síndrome do sotaque estrangeiro. Doença é uma desordem neurológica que provoca alterações na fala.”

Eu não resisti a provocação e...

De médico e louco cada um tem um pouco. James, o cabeludo, de doutor e doido, tem tudo.

        Nosso protagonista folheava a revista Science na biblioteca do Instituto Moscovita de Línguas, em Londres, enquanto aguardava o sinal tocar para se dirigir à sala de aula. Era aluno em aulas de russo. Estava insatisfeito com a vida, com a profissão de psiquiatra. Pensava em morar em outros países. Foi aí que, leu o artigo curioso onde uma mulher durante a segunda guerra, sob bombardeio, teve uma lesão cerebral e subitamente passou a falar norueguês com sotaque alemão.

Eureka! Gritou comprometendo o silêncio bibliotecário. Eureca significa descobrir, em grego. James descobriu a sua felicidade. Decidiu ser especialista em distúrbios psicoterápicos ligados à síndrome do sotaque estrangeiro.

Mudou-se para Newcastle uma cidade medieval a 280 milhas ao norte. Estudou com afinco e depois de pouco tempo pendurou orgulhosamente o diploma na parede de um consultório em Nova Iorque.

Rapidamente descobriu que o elevador não parava no seu andar. O elevador funcionava, mas nenhum paciente descia naquele andar. Apenas 100 casos foram reportados na literatura científica.

O que fazer?

Não adiantaria publicar anúncios no jornal para aumentar a clientela. Mais pessoas precisariam ser acometidos do mal da fala. Resolveu agir.

Conseguiu uma licença especial para trabalhar num centro de pesquisas hospitalares.

James oferecia líquidos brilhantes aos pacientes esquizofrênicos, injetava substâncias radioativas em diabéticos, ministrava choques elétricos em cardíacos. Fazia cócegas em quem apresentasse o transtorno obsessivo compulsivo. Os resultados, porém, só começaram a aparecer quando começou a praticar cirurgias cerebrais. Especificamente na parte inferior do córtex somatosensorial, aquele situado entre córtex motorial e o córtex associativo. Encontrou uma pequena saliência semelhante a uma pinta, um botão. Este ponto, ao ser pressionado, ligava o paciente em outros idiomas.

O primeiro foi um nova-iorquino branquelo. Sofria de dificuldade de expressão no âmbito interpessoal. Ao ter o botão acionado continuou tímido e lento, mas cantou um reggae em jamaicano legítimo mesmo sem fumar nada diferente.

Outra cobaia foi um baiano perdido na América. Antes da operação chamou o médico de meu rei. Após a intervenção chamou-o Maradona. O sotaque era argentino.

Praticou muitas cirurgias. O número de casos com a síndrome do sotaque estrangeiro explodiu. Começou a ter pacientes na fila de espera do consultório.


O resultado cirúrgico mais inesperado foi com uma texana. Para o espanto de todos, após o botão apertado, a mulher ficou silenciosa. Mas gesticulava muito. Passou a falar a linguagem dos mudos. Em vietnamita!

19 julho 2016

Pânico no banco



Antonio Carlos, sargento do exército, era especialista em desarme de artefatos, bombas e dinamite. Ganhava um dinheiro extra como vigilante armado em agência bancária. Nos últimos meses estava excepcionalmente tenso devido às três explosões em assaltos a bancos.
Aquela terça-feira era dia de pagamento. A agência estava abarrotada de clientes. Estava convencido que qualquer uma daquelas pessoas podia ser um assaltante. O moreno claro agarrado na pasta imitava um office-boy, o velhinho trôpego portava uma espingarda disfarçada de bengala, a gostosa atraia olhares para deixar o comparsa invisível, o engravatado fingia preencher formulário enquanto escrevia “isto é um assalto”. Todos eram suspeitos. Em movimentos rápidos, os olhos controlavam todas as bolsas, mochilas e pastas executivas.
A mão direita segurava o coldre do revólver desengatilhado. Um capacete de motoqueiro abandonado ao lado da garrafa térmica era mais um motivo de preocupação.
Ouviu um clique.
Virou-se assustado para a porta de entrada e viu uma mulher mal vestida aprisionada na porta giratória.
O detector de metais travou a mulher. A sacola na mão era duvidosa. Observou que a grife estampada não condizia com as roupas faxineiras.
Apontou a arma para a porta, recuou dois passos para se posicionar estrategicamente. Gritou para todos se deitarem no chão. Acionou o alarme estridente. Esticou o braço na horizontal mirando a testa da mulher apavorada. Ela deixou a sacola cair no chão, levantou os dois braços e desandou a chorar em pânico.
O vigilante gesticulava com a arma. Gritava — Esvazia a sacola!
Ela soluçava em desespero, mas negava balançando a cabeça.
Uma cliente reconheceu a mulher como sendo sua vizinha. Com mais curiosidade que medo, arrastou-se para trás de um pilar mais próximo.
O militar insistiu para que a mulher mostrasse o que trazia na sacola. Com voz firme avisou que iria atirar quando a contagem chegasse ao três. E imediatamente urrou:
— Um!
Uma velha deitada em frente do balcão dos caixas juntou as mãos em prece. — Ave Maria cheia de graça / O senhor é convosco / Bendita sois vós entre as mulheres / E bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus / Santa Maria, mãe de Deus...
— Dois!
A mulher enclausurada na porta de vidro, num movimento lento, sem tirar os olhos da arma, agachou-se intimidada. A mão esquerda para cima implorava clemência enquanto a direita tateava o interior da sacola.
O sargento esticou ambos os braços na posição de tiro.
A mulher, tremendo, levantou um vibrador ligado.
O tiro acertou o alto da porta estilhaçando o vidro e escancarando o constrangimento.

11 julho 2016

05 julho 2016

O dia em que o autor botou saia e percebeu a tristeza fêmea









GOSTO AMARGO

De advogada respeitada entre pisos de granito e poltronas de couro transformaram-me em barata fétida. Minha vingança será afogar-me na reunião do conselho, bem na sua xícara de café.


TESOURA DAS ESTAÇÕES
O outono pintou meus cabelos de branco. Ensinei o beabá, tricotei agasalhos e cozinhei frangos. Família, família, família. Seios, apenas para alimentar. Ventre, para gerar. Sinto os calorões da idade. Abro a janela e me refresco com um raio de sol sobre o musculoso jardineiro podando meu passado.


FIM DO ASSÉDIO MORAL
No dia 25 de dezembro o policial chegou ao vigésimo quinto andar e abriu a porta, nem precisou arrombar. A negra cortina do escritório balançava ao vento transformando meio-dia em caverna. Apesar dos telefones nas dezenas de mesas, o silêncio era ensurdecedor, ninguém na sala, só uma folha de papel jazia no chão.

Dr. Paulo, o senhor queria que eu desse meu sangue para a empresa. Conseguiu.


O brilho de um monitor de computador sugeria ter sido aquela a penúltima janela do morto no térreo.

28 junho 2016

Santos provocam estragos na minha alma


O ministério da agricultura deveria advertir que festas juninas podem ser danosas à saúde dos jardins.
Ontem fui a uma festa de São João promovida pela igreja de Santo Antônio. Era uma quermesse que visava a arrecadar fundos para um asilo de idosos.
Quando cheguei, a festa já rolava solta. As ruas próximas estavam congestionadas apesar do esforço dos guardas de trânsito. Foi impossível encontrar um lugar para estacionar. Os flanelinhas cobravam adiantado por uma vaga em cima do gramado da praça. Parei o carro quase em cima do banco, pertinho do coreto.
Toda a frente da igreja estava muito iluminada. Podia-se admirar a fachada, a escadaria e o bem cuidado canteiro de flores. O acesso para o público era em uma lateral, logo após as bilheterias. Os caixas vendiam a entrada e tíquetes para consumo nas barracas. Cada vale com um valor e uma cor diferente da outra.
Entrava-se por um extenso corredor até chegar ao campo de futebol dos seminaristas. E, conforme a tradição, as barracas foram montadas, uma do lado da outra, por dentro do alambrado, fechando as duas laterais do campo. Antigamente, a fogueira ocuparia o meio do campo. Agora, por motivos de segurança, queima o gramado atrás do gol e chamusca a minha alma.
No passado, todos iam caracterizados às festas juninas. Colocava-se uma calça de remendos coloridos, uma camisa xadrez e um chapéu de palha na cabeça. A irmã metia um vestido estampado de florzinhas, trançava o cabelo e sapecava umas sardas no rosto. Agora, só o pessoal das tendas se veste rigorosamente caipira.
Ontem, no meio da multidão, achei graça ver uma jovem madame desfilando lenço de seda, bolsa de grife, empáfia e um sapato de salto fino espetando o gramado e perfurando minha alma.
O cardápio foi variado: canjica, cachorro-quente, curau, pamonha, doce de batata-doce. Os pés-de-moleque eram especiais. Disputadíssimos! Graças à nova ortografia eram os últimos hifenizados. E a oferta culinária continuava com tapioca, milho cozido, churrasquinho, quentão, refrigerantes e cerveja. A noite era para os apaixonados, 12 de junho, dia dos namorados e por isso havia também a maçã-do-amor.
Enquanto eu comia uma canjica de amendoim, ri do comentário de um seminarista que disse que os bandeirinhas, com suas tradicionais roupas de luto, saíram das laterais e se vestiram nas cores do arco-íris. Transformaram-se em bandeirolas penduradas atravessando o campo.
A música já estava incluída, a gente nem precisava pagar. Aliás, era possível ouvi-la desde o outro bairro. Era uma dupla sertaneja, acompanhada de um acordeonista, um zabumbeiro, um pandeirista e um sujeitinho mirrado que ritmava uma haste de ferro em um triângulo metálico. Como é que se chama um tocador de triângulo? Trianguleiro? Triangulista? Ou mestre hipotenusa? Deixemos a dúvida para outro dia.
Festa de São João, das boas, tem casamento e muita dança.
Eu reparei que, quando cheguei na festança, havia grama em todo o campo. Conforme o povo se divertia, circulando pelas barracas, a grama foi rareando escapelando a minha alma. Na hora da quadrilha, a poeira subiu. Não se enxergava nada. Apesar do amor, da música e da poesia, João, Teresa, Raimundo, Maria, Joaquim, Lili e J. Pinto Fernandes não conseguiram se acertar. Não formaram par.
Nessa noite, eu poderia ter ficado impressionado com muitas coisas. Com o tamanho da barriga da noiva. Com a brabeza do noivo. Com a picardia do sermão do padre. Até com os garotos que chutavam sabugos na marca do pênalti. Mas não. O que me causou profundo impacto, foi tomar conhecimento do desespero das encalhadas.
Mais do que as mães zelosas, elas adorariam soltar fogos de artifício para comemorar pretendente fisgado.
Sempre no dia 12, dia dos namorados, véspera do dia de Santo Antônio, as solteiras ansiosas iniciam as simpatias para tentar entrar no time das casadas.
Cada uma à sua moda. Começam por rezar o pai-nosso e o salve-rainha, depois escondem a imagem do Santo Antônio atrás da porta da cozinha. Retiram o menino Jesus do colo do santo e ameaçam só devolvê-lo após um casamento consumado. Outras solteiras preferem amarrar a imagem sob a cama com a cabeça virada para baixo ou simplesmente colocá-lo, também de cabeça para baixo, dentro de um copo cheio de água. Algumas malucas jogam o milagreiro dentro de um poço.
Faltavam cinco minutinhos para a meia-noite quando algumas moças impetuosas, quase titias, optaram por enterrar imagens do Santo Antonio de cabeça para baixo, na frente da igreja. Exatamente no meio do canteiro das margaridas, sepultando a minha alma.

É por essas e outras, que as festas juninas podem ser prejudiciais à saúde dos gramados e jardins.
 
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