24 fevereiro 2007

Sombra da Figueira


Fim de tarde, sentei-me no banco da praça. Minhas companhias eram a sombra da figueira e um livro ilustrado. Acomodei-me, estiquei as pernas e abri o livro.
Uma carruagem parou na minha frente. Mexi interrogativamente a sobrancelha direita. O cocheiro, numa reverência com a cartola, fez um convite para um passeio. Depois de ser chamado Mi Lord, quem não iria?
Rapidamente chegamos a um enorme paredão de pedras cercado com água por todos os lados. Uma ponte de madeira era a única ligação para a ilha do castelo. Entramos. A parelha estancou bem à frente do arco principal. Desci. Antes mesmo do primeiro passo, ouvi o chicote estalar. A poeira se levantou e fiquei só. Pela amabilidade do cocheiro imaginei uma comissão de boas-vindas. Mas não. Nenhuma viva alma. Nem viva, nem morta. Observei toda a volta, o pátio estava deserto. Não vi ninguém nas duas torres. Não percebi nenhum movimento sobre os telhados. Na guarita não havia nenhum guarda. Ninguém.
Lentamente entrei. Pares de archotes sugeriam o caminho. A curiosidade levou-me ao átrio. Um grande espaço, o teto em abóbada, paredes de pedras retangulares e vários arcos, sugerindo vários caminhos. Lugar imponente embora mal iluminado. Posicionei-me exatamente no meio da grande sala. Entre o ponto mais alto do forro e a estrela negra marcada naquele chão de pedras regulares que formavam enormes círculos concêntricos. Nenhuma sombra denunciava presenças. Mantive-me em silêncio e girei meu corpo lentamente até completar a volta inteira. O único barulho era o da minha pulsação. Fechei os olhos e puxei o ar. Não me mexi. Percebi sutil odor de suor. Aspirei novamente. Abri os olhos, direcionei o nariz para minha axila. Maldita tensão! Em vez de sair, escolhi uma das aberturas curvas. Em frente, à esquerda. Não era a maior, era a mais iluminada. O corredor de pedras prosseguia largo e, da mesma forma que a entrada, guarnecido por pares de archotes produzindo luz amarela e trêmula. Andei uns cinqüenta passos e cheguei a uma escadaria. Para cima escura e para baixo mal iluminada. Optei descer.
Dei duas voltas antes de chegar ao piso inferior. Novo corredor largo. Neste ponto o olfato acusou cheiro de resinas de árvores, provavelmente alguma mistura para aquelas chamas acesas. A sensação era de umidade, desconforto e calor. Cheguei a uma sala com várias armaduras. Na parede, observei seis longas lanças metálicas terminadas em ponta ou em lâmina com se fossem machados. Estavam dispostas horizontalmente. Vi três bastões com correntes prendendo bolas cheias de pontas. Percebi nobreza nos vários escudos com brasões coloridos. Estavam dispostas, ainda, algumas armas que pareciam enormes foices, além de outros objetos estranhos. Nenhuma armadura tinha elmo. Não encontrei elmos nem nada que lembrasse capacetes. A outra parede ostentava espadas grossas e finas. E várias facas. Escolhi uma com bainha de couro desenhada e que poderia ser presa à cintura. Imaginei guerreiros guilhotinados. Resolvi sair daquele depósito de armas.
Mais alguns passos e cheguei à ampla adega. Estanquei na entrada. Sempre foi meu desejo servir-me de uma taça de vinho diretamente de um barril de carvalho. O coração começou a bater forte. Olhei em volta detalhadamente. Uns trinta tonéis. Cada tonel devia ter uns mil litros de vinho. Nenhum movimento. Nenhum ruído. Entrei e fui direto para a estante e, na ausência de taças, escolhi um copo de estanho. Fui ao tonel mais próximo e no momento em que pus a mão na torneirinha, senti o cheiro. Aquilo não era vinho. Em vez da torneira iluminada, escolhi outra, mais adiante, na penumbra. Desta vez não aceitei a proposta do castelo. Limpei o copo com a barra da camisa e posicionei-me para receber o líqüido dourado. Eu estava certo, não eram tonéis de vinho, eram barris de uísque. Uísque especial. Aspirei profundamente o centeio fermentado até ouvir uma gaita-de-foles. Molhei os lábios, estalei a língua e sentei-me à enorme mesa.
Jamais poderia ser vinho. Fui chamado Mi Lord. As armaduras sem elmos não eram resultado de francesas guilhotinas. Certamente estaria na Escócia, e em toda Grã-Bretanha usam a forca. Imaginei a corda no meu pescoço. Senti um arrepio na espinha. E senti também uma mão no meu ombro. Tomei um enorme susto.
– Vô, não quer dormir em casa?
Rapidamente me recompus, ajeitei a faca na cintura, peguei o livro sobre transportes antigos e caminhei abraçado com meu netinho até em casa, deixando para trás a sombra da figueira.


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Primeiro lugar no concurso de contos da comunidade ††† Vale das Sombras††† no Orkut

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