22 setembro 2010

Devolução perigosa

“Na última semana, a biblioteca pública de Winona (Estados Unidos) perdoou as dívidas de todas as devoluções atrasadas de livros. O resultado: um livro perdido há pelo menos 35 anos foi parar na caixa da biblioteca. O exemplar devolvido é de um livro com textos de diários de figuras públicas norte-americanas quando crianças. O livro foi publicado em 1966 e emprestado quatro vezes antes de desaparecer. Não fosse pela semana de perdão das dívidas promovida pela biblioteca, o proprietário do livro perdido teria de pagar mais de US$1,4 mil (cerca de R$ 2,4mil) de multa.” CB – Você sabia... 20/09/2010

A manchete do jornalzinho da pequena cidade americana anunciava que naquele sábado a biblioteca municipal promoveria o dia do perdão. O acervo estava prejudicado. Por maior que fosse o atraso, todos que devolvessem livros naquele dia seriam perdoados nas multas.
John Smith fecha cuidadosamente o jornaleco sobre a mesa e olha para a estante repleta de livros. Com os olhos percorre as prateleiras, uma a uma. Fixa-se numa capa verde clara desbotada pelo tempo. Levanta-se e puxa o livro pela lombada. Uma orelha dobrada indica quando Humbert inicia a longa viagem de prazer, pela Europa, com Lolita. Volta a fechar o livro e se recorda de mil aventuras quando era vendedor de xarope. Sua camionete conhecia todas as estradas do Alabama, Mississipi, Tenessee, Kentucky, Missouri e Arkansas. Em cada cidade, em cada vila, mesmo que houvesse apenas uma única mulher, novinha que fosse, Smith dormia acompanhado.
Coisas do passado. Fui acusado justamente e injustamente. Revoltou-se com o apelido de serial fucker. Cumpriu pena alternativa durante um ano distribuindo basic baskets em um orfanato.
Dizia-se redimido. Fixou residência. Passou a frequentar uma igreja evangélica.
Mais que um livro, Lolita fora seu companheiro de viagens durante 40 anos. Agora a estrada chegara ao fim. O livro precisava ser devolvido. Necessitava demonstrar a todos que estava regenerado, era homem cumpridor das leis, que estava reintegrado na sociedade. Que poderia olhar nos olhos dos vizinhos sem constrangimentos. John Smith voltara a ser um cidadão. A devolução seria o momento libertador.
O sábado chegou e o evento, dia do perdão, atraiu toda a população do vilarejo. O banjo, a gaita e o violino faziam a festa. Um misto de fotógrafo e jornalista registrava sorrisos de leitores que devolviam livros sem desmbolsar preciosos dólares.
Smith, retornando do culto, retirou o livro de dentro de uma sacola e, sob os flashes, entregou-o orgulhosamente à bibliotecária.
– Muito obrigado. O senhor é o mister John Smith, não é?
– Sim sou eu mesmo. É um alívio livrar-me deste pecado.
– Consta que, além de Lolita, o senhor ainda detém Memórias de uma Mulher de Prazer – Fanny Hill de J. Cleland; O Amante de Lady Chatterly de D. H. Lawrence; Trópico de Câncer de Henry Miller; História de Ó, de Pauline Reage além de Justine e Filosofia na alcova do Marquês de Sade. O senhor continua pervertido!




Texto não publicado no Correio Braziliense. Nem na Folha, no Globo, no Estado ou Zero Hora.


Este é o sétimo conto semanal dentro do projeto Minha versão, com tema originado por notícia do Correio Braziliense. Hoje enviarei os textos aos editores para avaliar a data do meu ingresso remunerado em uma redação. O colunista esperto sabe que o diagramador tem ordens de guilhotinar textos maiores que a coluna. O texto, de 2959 caracteres, no mínimo, e 2997, no máximo, sempre estará disponível antes das 18h das quartas-feiras.


5 comentários:

Anônimo disse...

Olá Klotz! Participo da comunidade “Desafio...” no Orkut e do “6º desafio...”, mas estou pensando em “abandonar” o “6º desafio...” (“humor” para mim é algo imensuravelmente difícil de escrever, meu blog www.paixaoinfame.blogspot.com). Bom, claro que não estou aqui para falar disso, é que gostei muito da forma como vende seus livros, e apesar de não ler muito crônica vou querer um exemplar seu. Abçs!

Glauber Vieira disse...

Belo texto, camarada... enquanto o pessoal dos jornais não se decide, nós aqui vamos nos divertindo...

Klotz disse...

Você escreve bem, Marjory.
A sua caligrafia derrama sangue e assusta.

Além de participarmos do Desafio dos Escritores, li que frequentamos mesa do Bar do Escritor e o mal assombrado Vale das Sombras.
Não desista. Saia da sua zona de conforto. A sua escrita tende a crescer com isso.
Já anotei o seu e-mail.
Obrigado pela visita.

De fato, Glauber, escrever partindo de uma notícia de jornal pode ser muito divertido e essa é a minha proposta. Abraços.

Giovani Iemini disse...

bom projeto este, klotz. tá mandando pros jornais?

[]s

Giovani Iemini disse...

o giusti tá fazendo o mesmo. é uma boa idéia.
acho que vou imitar! hehehe.
[]s

 
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