31 outubro 2007

Osteoporose infantil

Quando vi que a menininha estava de capacete, joelheiras e cotoveleiras caminhando pela calçada comentei com a minha namorada que a garotinha era uma coitada, que eu estava com muita pena daquela pálida figurinha frágil. A doença dela deveria ser muito grave, provavelmente uma espécie osteoporose infantil em estado muito adiantado de forma que os pais da moleca, para protegê-la obrigavam-na a usar aquela indumentária para não perdê-la para sempre, que ela deveria sofrer muito com aquela roupa quente, e que aquela débil figura deveria ser atormentada impiedosamente com as brincadeiras maldosas dos coleguinhas da escola. Quase derramo uma lágrima salgada de compaixão quando minha companheira interveio.
– Você não viu que ela deixou a bicicleta ali naquela casa?

22 outubro 2007

Dormiu homem, acordou mulher

Almeida muito suado afastou o lençol e se ajeitou melhor no travesseiro. A cabeça estava doendo e havia alguma coisa incomodando a orelha. Sem abrir os olhos tentou tirar o que parecia um botão. O quarto estava escuro e silencioso. Almeida sempre dormiu nu e estranhou que, apesar de ter afastado o lençol, sentia-se vestido. E pior, a roupa apertava-lhe as partes.
A dor de cabeça era mais forte que a curiosidade. Assim, voltou a dormir.
Passadas três horas voltou a se revirar. Sentia-se desconfortável com aquela coisa na orelha e a roupa apertada. Abriu os olhos, enrugando a testa com medo da luz. Não havia luz. Virou-se então para a mesinha de cabeceira a fim de ver as horas. O despertador estava apagado. Almeida, com a cabeça pesada, imaginou que devia ter deixado o livro na frente daqueles números brilhantes na hora de apagar a luz.
Optou por acender o abajur e esticou o braço lerdo. Não encontrou nada. Tateou novamente. Não encontrou o interruptor nem o criado-mudo. Com a outra mão tateou para o lado da esposa e antes de perceber que estava só, estranhou um bolo de cabelos bem no meio da cama. – Que bicho seria aquele? – pensou.
Uma nesga de luz entrava por um cantinho da cortina. Almeida sentou-se e percebeu que aquele não era o seu quarto. O lugar lhe era estranho. Levou as mãos à nuca, como se o gesto pudesse amainar as dores. O paladar acusava gosto de alho, coentro e óleo diesel. Tudo ao mesmo tempo.
Mansamente colocou os pés para fora da cama posicionando-se em direção à janela. Um passo e meio foram suficientes para alcançá-la. Com medo de explodir a própria cabeça, tanta era a dor, empurrou vagarosamente a cortina para o lado. Encontrou vidros sujos de uma janela porca de um quarto imundo.
Virou-se lentamente para examinar o ambiente. Uma cama de casal com lençóis rasgados, uma cadeira de palhinha com um buraco no lugar do assento, uma mesinha com um copo e uma garrafa d’água, um espelho pequeno pendurado na parede próximo da porta e sapatos de salto alto jogados próximos à cadeira. Não havia banheiro. Usava roupas de mulher desqualificada.
Almeida sentiu nojo do lugar e de si. Arrancou o vestido do próprio corpo. Não reconheceu como sua a cueca que usava, olhou melhor e percebeu que estava de calcinha. Procurou suas roupas pelo quarto e não viu nenhuma. Estava sem relógio. Estava sem o seu Rolex de ouro. Olhou novamente para os lençóis e reconheceu no bolo de cabelos uma peruca loira. Constrangido, não sabia se tirava a calcinha ou se ficava com ela. Não sabia o que era pior: ficar de pé no carpete encardido ou sentar na cama do prostíbulo.
Apalpou-se e confirmou um par de brincos. Foi até o espelho para tirar os enfeites e levou mais um susto com a maquiagem borrada.
Almeida estava muito desconfortável. Não estava entendendo nada.
– Por que estou com essa calcinha ridícula? Onde estão minhas roupas? O que estou fazendo aqui? Onde estive ontem à noite? Por que estou me sentindo tão mal? O que houve? O que está havendo? Assalto? Extorsão? Seqüestro?
As pernas tremeram. Sentou-se na cama para reavivar a memória e somou mais um desconforto. Sentiu dores.
Teve ganas de sair da própria pele.
Levantou-se e arrancou a calcinha ensangüentada. Teve ânsias de vômito. Sentiu-se invadido, ultrajado, humilhado. Foi até a mesinha, afastou com asco o copo de geléia e abriu a garrafa de água mineral. Esvaziou no gargalo a água quente e gasosa que não melhorou em nada seu estado desolador.
Almeida sequer tentou abrir a porta. Suas opções eram terríveis: sair nu ou com roupa de mulher.
Voltou a se acomodar na cama. Deitou-se de lado, encolhido em posição fetal.
A cabeça girava, o ânus doía, estava psicologicamente arrasado e agora começou uma dor de barriga.
Procurou lembrar-se da véspera. Não se recordava de nada diferente. Levou as crianças para a escola e, como sempre, foi o primeiro a chegar ao escritório. Almoçou com um cliente e à tarde reuniu-se com os sócios. Rotineiramente, saiu do trabalho às oito horas e pegou o carro no estacionamento. Sentiu um vazio, um branco na memória. Pegou o carro ou não pegou o carro? Para onde foi? Ainda se recordou que precisava abastecer a caminho de casa. Fechou os olhos e começou a refazer seus os passos. Mentalmente desceu o elevador, cumprimentou o zelador, atravessou o pequeno jardim, caminhou à direita na calçada. Lembrou-se que a loja de calçados estava fechada, com a vitrine iluminada. Quando passou em frente da farmácia pensou em pesar-se, não entrou, deixaria para iniciar o regime no outro dia. Atravessou a rua na faixa de pedestres. Quando se aproximou do carro foi abordado por um estranho. – Aquele camarada deve ter me sedado. – Difícil saber o que dói mais. A cabeça, o sentador, a barriga ou a humilhação.
A nossa vítima apurou os ouvidos. Parecia ouvir um telefone. Era o toque abafado de um celular. Encontrou o aparelho dentro do sapato, sob a cadeira.
Antes de atender viu uma coleção de zeros indicando ligação não identificada. Almeida estava apavorado, construiu uma sólida, ética e vencedora carreira judicial, sempre foi pai dedicado e marido fiel. A sociedade reverenciava seu trabalho e desprendimento como fundador de um orfanato de crianças carentes. Era professor honoris causa em duas universidades. Não estava acostumado a tratar com gente de baixo nível.
– Alô. – atendeu seco e desconfiado.
– Eu vi que a Cinderela abriu a cortina. Já encontrou suas fotos embaixo da cama? Com qual deles teve mais prazer?
Num pulo, Almeida saltou para o lado da cama e encontrou quatro fotos impressas em papel de computador, bem diferentes daquelas das colunas sociais.
– O que você quer de mim, seu filho-da-mãe? – Disse com muita raiva, porém medindo as palavras, pois estava em clara desvantagem.
– Eu não quero nada de ratos. Enviei e-mails com as fotos para todos os seus amigos, eles vão adorar ver você sendo amado naquelas posições grotescas.
Almeida colérico, totalmente tomado de ódio, gritou:
– Por que eu?
Do outro lado a voz respondeu segura e acusativa:
– Você deveria ter perguntado isso para a pequena Gabriela. Aquela menina doce, do terceiro andar, que você leva para a escola junto com seu filho.
A vítima transformou-se em réu, o tom agressivo amansou e a ira virou pavor.
– E daí?
– Daí que advogados iguais a você sempre conseguem liminares, habeas corpus e mil artifícios para fugir das penas.
– Aonde você quer chegar?
– Não quero chegar a lugar nenhum. – E cheio de ironia, completou: – Apenas retribuí todo amor que você deu à indefesa Gabriela.
– Quem é você?
– Sou tio dela, delegado de polícia e exterminador de ratos. Você gostou da água gasosa?Antes de cair no chão o condenado contorceu-se de dor e arrependimento. Depois sentiu mais uma forte pontada no estômago causada por raticida.

27 setembro 2007

O telefone

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm.
Era assim que o telefone tocava até recentemente. Hoje qualquer som pode ser de telefone: mugidos bovinos, coachares de rãs, latidos de cães, hinos do time de futebol, um clássico de Beethoven, um hit brega, grito de mãããããe atende o telefone e até o velho e desgastado triiiiiimmm às vezes persiste.
Nós sempre estamos fazendo alguma coisa. Trabalhando, cozinhando, tomando banho, fazendo amor, digitando um texto. Mesmo que estejamos fazendo nada, estamos fazendo alguma coisa. Ver televisão é fazer nada. Somos interrompidos abruptamente por chamada urgente. Todas chamadas são urgentes, devemos largar o que estivermos fazendo para atender a ligação. Largar a refeição, largar o banheiro molhado, largar o chefe falando sozinho, largar a concentração no amor.
– Alô!
– João?
– Não é aqui senhor.
– Té, té, té, te,....
Isto é uma falta de educação grave. Gravíssima. Total falta de respeito para com o próximo que interrompeu uma atividade para dar atenção àquela pessoa desconhecida. A gratidão é um telefone desligado na cara.
Na linguagem dos telefones, quando duas pessoas discutem e uma delas desliga o telefone é o mesmo que uma agressão. Quando o telefone é desligado sem aviso prévio sentimo-nos agredidos.
Muitos fazem isso escondidos no anonimato. – Aquele cara não sabe mesmo quem eu sou e ainda vou ficar pagando ligação de celular para um desconhecido? Desligo mesmo!

Isto já aconteceu inúmeras vezes. Inúmeras vezes perdi o humor por agressão gratuita de um telefone desligado sem explicação.

Mudei minha atitude quando ligam para o meu celular. Retorno o telefonema e educadamente explico a falta de respeito cometida pelo anônimo, o tempo que ele me tomou para atender o telefonema e o tempo que está me tomando para este retorno e mostro minha indignação desligando o telefone na cara deste desgraçado. Desopilo o fígado numa gostosa gargalhada vingativa!

Por conta da internet, nos tempos da linha discada, instalei uma segunda linha de telefone em casa. Pelo fato de morar sozinho não costumava necessitar falar em duas linhas simultaneamente. Em caso de absoluta necessidade ainda havia o celular. Por estes e outros trezentos e quarenta e sete motivos ninguém tinha o número da segunda linha. Às vezes a internet ficava conectada baixando músicas e eu ficava sabendo se a linha caiu ou foi desconectada. Instalei um telefone à antiga que emitia ruído típico ao ser desligado. Problema resolvido. Surgiu problema novo. O telefone tocava. – Diabos! Não dei o número para ninguém! Logo é engano ou vendedor de cotas para um lugar no céu se contribuísse com módicos valores mensais para alguma instituição de caridade.
Dezenas de vezes abandonei atividades para educadamente atender telefonemas indesejados.
Perdi a paciência com uma moça que insistiu por oito vezes que aquele era o número do telefone do novo namorado, que havia feito promessas de amor sob os lençóis suados.
Resolvi contra atacar e pegar desprevenidos os incautos que resolvessem ligar para interromper a minha ocupação.

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
Atendo com voz lenta, grave e funesta.
– Funerária Já Vai Tarde! Em que posso servi-lo?
– Té, té, té, té...
As pessoas ficam sem graça e desligam. Há os persistentes:

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Funerária Já Vai Tarde! Em que posso servi-lo?
Eu queria falar com o João.
– O João não está mais entre os nossos.
– Té, té, té, té...
A brincadeira por repetitiva ficava sem graça. Renovei o prazer em atender telefone!

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– A Márcia está?
– Vai demorar só uns vinte minutos, acabou de subir com um cliente.
– Té, té, té, té...

– Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– De onde?
– Pensão Dona Júlia. Temos apartamentos com e sem banheiro. Servimos farto café da manhã com biscoitinhos caseiros e pão de queijo. Temos janta diariamente. Hoje teremos rabada com agrião, macarronada com molho de tomate, salada de alface e rúcula, a sobremesa o senhor pode escolher entre goiabada e....
– Té, té, té, té... Ninguém agüenta uma pessoa desconhecida com incontinência verbal.
Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Pensão Dona Júlia, boa noite!
– Bom. Eu pensei que era da casa da Heleninha. Tô encostando meu caminhão aqui na Terceira Avenida e tô querendo um quarto. Quanto é, hem?
– Té, té, té, té.... Desliguei só de imaginar o tamanho do negão do outro lado da linha.

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Farmácia Saúde Total, boa tarde!
– Farmácia? Não é da casa da tia Jurema?
– Para casos de falta de memória temos Memorex. Quantos vidros senhor?
– Vai te catar mal criado...Té, té, té, té....

Triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm, pausa, triiiiiimmm
– Farmácia Saúde Total, boa tarde!
– A Cristina está?
– Não senhor. Posso ajudá-lo em mais alguma coisa?
– Ela me deu este telefone há vinte dias. A que horas ela volta?
– Ela foi despedida, senhor... não acredito que volte.
– Despedida?
– Ela não aprendeu a aplicar supositórios e ainda estava vendendo preservativos usados e ...
– Té, té, té, té....

Não entendo este mundo. Tenho procurado conversar com as pessoas e elas sempre desligam o telefone na minha cara. Sou um incompreendido.
– Deve ser a minha voz!

13 setembro 2007

Casa para alugar


Cecília retornou à cidade natal depois de ser escolhida entre uma centena de candidatos à vaga na indústria de laticínios. Cecília queria o emprego. Cecília precisava do emprego, mas acima de tudo Cecília queria resgatar o passado.
Aconteceu na última quarta-feira de agosto de 1947. Na semana anterior Cecília soprou quatro velinhas brancas e ganhou uma caixinha de música. Tudo foi muito rápido. Ela acordou no meio da noite com o barulho de vidro estilhaçando no chão. Em seguida gritos e mais gritos. Um estampido forte e mais outro estampido. Depois, o silêncio. Não teve coragem de abrir a porta. Deu corda na caixinha de música e esperou a mãe. Ou o pai. E deu mais uma vez corda na caixinha de música. E mais outra vez. E mais outra vez. E outra vez mais. Nem pai, nem mãe. Só de manhã, quando o sol espiou pela janela a tia entrou no quarto, abraçou Cecília e pegou-a no colo. Ainda de pijama entraram no carro e viajaram. Cecília não chorou, Cecília não perguntou. Cecília não ouviu. Apenas viajaram. Cecília nunca mais viu seus pais.
Agora, moça feita, estudiosa, bonita e seios fartos. Formou-se na primeira turma de engenharia de alimentos. Aos vinte e cinco anos tinha diploma e três anos de experiência na fabricação de queijos. Voltou para ser gerente de qualidade na maior indústria da região. Era uma vencedora. Hospedou-se em um pequeno hotel. Tinha quinze dias para encontrar moradia e se instalar. Seria muito fácil. Tinha apenas livros e poucas roupas.
Cecília não conhecia a cidade e procurou uma casa próxima à fabrica. Nada agradava. Não queria uma daquelas casas geminadas. Tampouco queria lugar com árvores pequenas. Não havia muitas opções na pequena cidade. A dona da imobiliária sugeriu uma casinha mobiliada de dois pisos próxima à praça do coreto. Era perto da igreja, próximo ao banco e também tinha comércio além da padaria. Seria o lugar ideal para morar.
Pegou a chave na corretora e foi a pé até o endereço com a placa de aluga-se.
Abriu o portão de madeira, deu cinco passos à frente e enfiou a chave, girou duas voltas e a porta se abriu. A sala era pequenininha. Duas poltronas, uma radiola e uma estante com uns vinte livros enquanto do outro lado havia uma mesa redonda e um balcão onde deveria estar a louça. Cecília foi até a janela e puxou a cortina empoeirada. Queria mais luz, queria ar. Precisava de ar.
Cecília olhou para a cozinha, mas dirigiu-se para a escada. Parou antes do antes do primeiro degrau, pousou a mão no corrimão e olhou para cima. Fechou os olhos para concentrar a audição nos ruídos da casa. Arrepiou-se. E pé ante pé começou a escalada. Pensou que já tinha olhado outras casas na cidade e que não havia motivo para ter receio de entrar em qualquer casa. – Mas esta tem ruídos – falou alto. Mais um passo e a madeira ressecada gemeu com o peso da visitante. Cecília parou e apurou a audição novamente. Não sabia se a música vinha de dentro ou de fora. Bem suave. Quase inaudível. Cecília chegou ao patamar do meio da escada, virou para a direita e continuou vagarosamente a ouvir os lamentos da madeira do piso em dueto com os passos. Mais dois choros e alcançou o segundo piso.
Era um corredor estreito e iluminado por janelinha suja de tempo. Havia três portas fechadas. Cecília intuiu que a primeira porta seria a do banheiro. Sem receios, segura, abriu e confirmou sua expectativa. A segurança foi trocada pela dúvida. Avançou mais dois passos e estancou na frente da segunda porta. Os joelhos fraquejaram. Cecília respirou fundo e colocou a mão esquerda na maçaneta girando o trinco dourado. A porta que estava destrancada abriu-se lentamente. Não havia nenhuma luz naquele quarto. A música vinha dali, agora tinha certeza. Não era qualquer música. Vinha da caixinha de música. Não sabia se de dentro ou de fora da sua cabeça.

27 agosto 2007

Inverno

Como todos os dias, levanto e olho o tempo pela janela. Nestes últimos dias de agosto não existe possibilidade de chuva no Planalto Central. Ao contrário, em casa colocamos umidificadores para amainar a seca. Na falta, espalhamos bacias e toalhas molhadas. Crianças são as que mais sofrem.
Pertinho, vejo verde grama irrigada, mais à frente, suave névoa escondendo calmas águas do Paranoá. Ao fundo o horizonte vermelho.
Troco o pijama por uma camiseta e meias de lã por meias esportivas. Me espreguiço e vou caminhar. Na porta de saída do bloco recebo o impacto do frio no peito. Cumprimento o empacotado porteiro e, em vez de esquerda, escolho a direita. Às vezes temos que sair da rotina e mudar os nossos trajetos e rumos diários. Resolvi trocar as calçadas sujas de cocô de cachorro de madame por calçada marginal ao mato aparado em superquadra ainda não construída.
Andei cem metros e ultrapassei a linha de alcance dos aspersores. A grama mudou de cor para sem cor. Mais adiante formigas cruzaram a calçada numa trilha de cavacos marrons desrespeitando o caminho urbanamente civilizado. Prosseguindo, levantei a vista para o céu sereno e desmaiado. Abri os braços com as palmas abertas para captar energia. A força veio tão forte que podia senti-la pousando nas mãos. Emocionado e incrédulo eu queria ver para crer. Vi partículas pretas. Apurei o olhar e constatei fuligem. Para muito além da névoa seca o fogo pintava o horizonte de vermelho. Na lonjura a cor é suave.
Ainda é cedo. O dia acordou, preguiçoso, ainda não levantou. Está quase silencioso, até ouço cachorros latindo à distância. Devem ser vira-latas, cachorros escovados latem mais tarde.
As árvores nativas não são bonitas. Os galhos são tortos e retorcidos. São errados. Os troncos parrudos têm uma couraça de jacaré para sobreviver nas queimadas. E nesta época do ano, além de não serem bonitas, estão nuas mostrando esqueletos de campos de concentração. Sem conhecê-las não damos valor.
A cabeça recém-despertada capta sem chiados o que me acerca. Passarinho não chia. Passarinho pia. O pio do sabiá está muito próximo.
– Olha lá! Olha lá! Ouça, preste atenção! Faça da boca um assobio e repita. Repita assobiando: – piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô. Não é bonito? É apaixonante.
Continuo meu passo e vejo uma fumacinha no meio do terreno litigioso. Ali não há muito mato para ser queimado. Entretanto o instinto de preservação, nesta época de seca, sugere que eu apague o fogo enquanto estiver baixo. Eu mudo meu rumo na direção da fumaça. Nem precisei caminhar muito. Em volta do fogo vi quatro boquinhas escancaradas de fome, dor, frio e morte. O pai oferecia o desjejum caçado nas caçambas peçonhentas. Adiante da fogueira havia uma tenda de lona preta sob uma árvore de casca dura.
A única luz que havia para aqueles miseráveis urbanos era o amarelo solar das flores do ipê.
Piedade-sinhô... piedade... tendó-de-nós... piedade... sinhô...

18 agosto 2007

Recepção ao primeiro-ministro do Reino da Estroína

Minha bela adormecida,

Que alegria receber notícias suas depois de tanto tempo. Estou flutuando nas nuvens por saber que você virá a Brasília para a recepção ao primeiro-ministro do Reino da Estróina, Frederico Gustavo III no Palácio do Itamaraty.
Quantas saudades e recordações guardo da nossa infância quando sua brincadeira predileta era brincar de princesa. Eu tinha que duelar com malfeitores, matar dragões e me ajoelhar aos seus pés para ser consagrado cavalheiro e merecer o prêmio máximo: um beijo na testa. Você estava sempre linda, coroada com uma tiara de lantejoulas brilhantes. Os tempos se passaram, e na última vez em que a vi, antes de mudar para Brasília você estava resplandecente no pôr-do-sol, caminhamos de mãos dadas e trocamos um único e delicioso beijo selando respeito e amizade eternas. Deixei-a na porta do castelo, depois subi no alazão e vim embora.
Passados quase trinta anos, você terá seu sonho realizado: um convite para participar de uma festa na corte.
Até parece que escutei sua voz macia quanto me escreveu:
– “Meu cavalheiro, como será e como devo ir ao baile?”
Minha querida, a recepção não será um baile, não haverá orquestra de violinos e já não se dançam valsas nos salões. A presença do homenageado no salão não será anunciada pelo bater do bastão pelo mestre de cerimônias. Nem a nobreza estará perfilada à entrada para recepcionar os ilustres convidados.
No convite consta traje de gala. O que requer vestidos longos para as damas e fraque para os cavalheiros. Os oficiais das três armas têm trajes próprios para esses eventos. É a oportunidade de ostentar orgulhosamente as insígnias que representam as condecorações e medalhas conquistadas por méritos. É também o momento em que ministros e altas autoridades estufam o peito com as diversas comendas e honrarias. Aqueles que não as têm, penduram medalhas de futebol de salão ou de concursos literários. Ouvi dizer que o presidente usará o colar com a grã-cruz de Estróina.
Não se preocupe em mandar costurar vestido especial, faça como todos fazem: alugue roupa de dourados e pratas. Não se preocupe com jóias, também há imitações perfeitas para alugar. Quem sabe você encontra uma coroa de brilhantes para que eu possa coroá-la rainha? Caso você não queira alugar, sempre há possibilidade de retirar do armário alguma roupa da avó e desfilar na passarela com a essência de milenar naftalina. Ah, antes que eu esqueça, é muito importante que seu vestido seja largo o suficiente para correr. Este é sempre o grande e esperado momento. A corrida ao bifê. Quando um garçom depositar a baixela de prata com a cascata de camarões será dada a largada. Todos sairão correndo para encher pratos, bocas, bolsas e bolsos de camarões. Quem já tinha o bolso cheio de salgadinhos joga tudo no chão para substituir por camarão. Então, previna-se com uma saia folgada e uma bolsa espaçosa.
Os garçons, com imaculadas luvas brancas depositarão mais umas dezenas de travessas com os mais saborosos acepipes. Com a mesma velocidade eles desaparecerão nas bocas dos convidados que, com suas bocas cheias, gritarão aos garçons para trazerem mais taças de vinho.
Ah, minha querida Bela Adormecida, Cinderela ou Rapunzel, esqueça seus sapatinhos de cristal e sua carruagem de cavalos de longas crinas.
Numa reverência, respondo à segunda parte da sua pergunta, minha princesa, como deves ir? Deves ir comigo, para que eu, seu fiel escudeiro, a proteja da dura realidade.
Beijo,
Despertador

07 agosto 2007

Perdedor de Deus


Sou um predestinado! Quando nasci todos já sabiam que meu destino seria o sofrimento. No meu parto não havia nem estrela nem cometa a iluminar o caminho. Apenas um buraco negro. Há os eleitos, sou o perdedor.
Quis a sorte que eu freqüentasse a alta classe. Sempre rodeado de moças apetitosas e rapazes fortes num desfile constante de corpos e modas. Não faço feio, modéstia à parte, sou escultural.A educação espiritual me ensinou a ouvir problemas alheios. A vida é terrível. Competitividade, falsidade, egoísmo, dinheiro, vaidade, paixão. A sociedade está com problemas graves e, em vez do diálogo, pancadas. Não consultam, não expõem, não conversam, não se queixam, não se confessam, apenas batem. Esta é minha sina. Só querem saber de bater em mim. Reflito, oro, medito, mas jamais revido. Absorvo bem os golpes da vida. Acredito em reencarnação. Devo ter sido muito mau e agora cabe-me a purificação. Meu aprendizado é apanhar sem revidar, responder sempre com um sorriso. Meu crescimento interno permite que eu sonhe uma vida melhor depois desta, estou cansado de ser boneco de academia de musculação.

02 agosto 2007

Político na tevê




Barzinho lotado na final da copa do mundo.
Político passa na frente da tevê.
Neguinho grita que deputado não é transparente.

19 julho 2007

Ausência


Sou a secretária eletrônica do blog do Klotz.

Ele viajou e só retorna em agosto.

Por favor, deixe seu comentário, elogio ou esculhambação.






Cu acentuado


Sou orkutiano e naquelas bandas participo de uma comunidade Bar dos Escritores. Há vários participantes que realmente dominam o riscado. Entretanto há outros que escrevem uns testos ezquizitos. Vários escrevem palavrões e consideram questão de postura, de atitude. Ou contestação.

Cu deixou de ser obsceno há duas décadas ou mais. Só é obsceno quando é acentuado.
Depois de ler outra obscenidade escrevi este besteirol.

"Esta comunidade já teve homéricas discussões à respeito do cu acentuado.
Um amigo falou do cu rosado e do cu sujo. Se fosse acentuado seria cúpreo.
Só o mulo leva acento no cu. Isto, quando o cu vai na frente. É o cúmulo.
A alta casta da igreja também é a favor do cu acentuado. É a cúria.
Quem tem dado sabe que cu gosta de acento. É o cúbico.
Quem está de acordo em levar acento no cu é cúmplice.
Há pessoas que não concordam e acham que cu deve receber acento sim. E ficam decúbito.
Mesmo sem acento, pode-se, com o cu, tomar assento."

15 julho 2007

Mulher dura na queda

Dei flores perfumadas,
abri portas,
puxei cadeiras aveludadas.
Ofereci chocolate quente.
Preparei banquete.
Fiz poesia, declamei.
Negativou com a cabeça.
Deixou-me sem sentidos.
Apelei.
Cochichei que o deputado foi processado.
Que o governador foi obrigado a devolver o dinheiro.
Que o presidente demitiu seis ministros.
E renunciou.
Fui beijado, na boca.
Faz sentido.
※ ※ ※ ※ ※
Quadro “A diva no divã” de Rosiane

12 julho 2007

Manchete

Bandido estupra e mata anciã. Traficante vende, não entrega e esfaqueia. Parou no sinal e perdeu o carro. Pivete chapado mata por um relógio quebrado. Pedreiro faz sexo com nenê da vizinha. Mais uma rebelião no presídio. São manchetes diárias dos nossos jornais. Na verdade não são manchetes, são apenas chamativos das páginas internas do jornal. Às primeiras páginas cabem as verdadeiras notícias de destaque: política, economia e esporte. Os fatos corriqueiros de morte e violência, de tão comuns ficam com as páginas centrais. Os acontecimentos só recebem relevo quando o algoz ou a vítima são pessoas de notório destaque. Se o seqüestrado for apenas rico não receberá sequer uma linha dos jornais.
É a banalização da morte, a vulgarização do crime. É o cotidiano. Ninguém mais se importa.
Os presídios estão superlotados, os policiais não têm formação, os processos percorrem um lento e burocrático caminho, as leis estão obsoletas e se contradizem, sempre há mais uma instância a ser recorrida, a corrupção atinge até juízes. As estatísticas informam que menos de 20% dos criminosos acabam condenados e destes, menos de 15% cumprem toda a pena.
O bandido tem a certeza da impunidade. Ao cidadão cabe esperar apenas pela justiça divina. Ao perceber à sua volta um rastro de terrores ela passa a desejar a morte do malfeitor. A morte preferencialmente em julgamento sumário e execução em praça pública.
Se não houver uma reviravolta em todo sistema, breve tornaremos à Idade Média e teremos como manchete: Povo brasileiro exige pena de morte.

04 julho 2007

Girafa barulhenta


Caminhar sempre é bom. Acompanhado é melhor. E quando a companhia é agradável, é o máximo. Tenho uma vizinha que gosta de caminhar comigo.
Infelizmente a velocidade dela é devagarzinho. Bem devagarzinho, para poder
falar bastante. Ela é muito alegre, extrovertida e perguntadeira. Bem típico da idade. Eu que não tenho nenhum neto, a princípio fiquei incomodado com esse negócio de me chamar de Vô. Mas é uma menina muito fofinha. Demorei a me acostumar, agora até gosto de ser chamado vovô. Quando ganho beijo lambuzado nem reclamo.
Hoje ela me contou que já sabe o que o irmãozinho vai ganhar de aniversário, mas que não vai me contar porque a mãe disse que era segredo.
Depois ela cantou a musiquinha da escola.
Meu lanchinho, meu lanchinho
vou comer, vou comer
pra ficar fortinho, pra ficar fortinho
e crescer e crescer.
E aí, sem mais nem menos ela perguntou se era verdade que as girafas não faziam barulho.
Eu não sabia se aquilo era uma piada, pegadinha ou era uma demonstração de conhecimento.
– Quem te disse isso?
– A tia. Ela disse que os cachorros latem, que os gatos miam, que os passarinhos piam, mas que as girafas não falam. As coitadas não fazem nenhum barulho.
Percebi os olhos tristes da menina com pena da girafa.
– As girafas fazem barulho sim. Você precisa ouvir como é alto o pum da girafa.
A menina deu uma risada e eu continuei.
– Silenciosas são as borboletas. Ou você já ouviu as borboletas batendo papo e fazendo algazarra?
Antes que ela respondesse continuei:
– Fale para sua tia que o único bicho que não fala é o criado-mudo.
Ganhei um delicioso beijo e ela saiu correndo.

27 junho 2007

Minha tia era um general

O nome da minha tia é Waltraut. Parece um castigo. Aos alemães é um nome para ser ostentado com orgulho. O problema de Waltraut, em relação ao próprio nome, é ter nascido no Brasil e residir no Brasil. Nasceu nos anos 20, do século passado. Filha de alemães imigrantes. Foi para a escola alemã. Freqüentava o clube alemão. O vizinho da frente era alemão. O da esquerda, alemão. O da direita também era alemão. Na mercearia comprava Reis, Bohnen e Zucker. Tudo em alemão. E o Herr Schmidt anotava em alemão a despesa na caderneta para a cobrança mensal.
Antes de prosseguir vamos para uma aula de alemão. A pronúncia do nome da minha tia é Váutraut. Com o último tê mudo. Repita comigo: Váutraut. Nem é tão difícil. Mas a aula não terminou. Reis é pronunciado ráis e significa arroz, Bohnen é pronunciado bônen e significa feijões enquanto Zucker é pronunciado tsúquer e é açúcar. Todas são iniciadas por maiúsculas porque substantivos, em alemão, são iniciados por maiúsculas. Agora podemos voltar à nossa tia. Ou melhor, à minha tia Waltraut.
– Quase esqueço de apresentar o Herr Schmidt. Herr Schmidt, leitor. Leitor, Herr Schmidt. Herr quer dizer senhor e Schmidt é tão comum quanto Silva ou Souza. Pronuncia-se hérr Chmit. Com tê mudo. Voltemos à tia Waltraut.
Ela era bonita, tinha postura ereta e voz firme. Se por um lado era elegante e ingênua por outra era determinada e inflexível. Quase uma caricatura.
Lá nos anos 60 ela pegava no pé dos meus primos, filhos dela. Queria que eles falassem alemão. Era mais do que natural que eles falassem português, como todo mundo. Na escola, no clube. Como o vizinho da frente e o do lado esquerdo. E o da direita também. Todos falavam português. Mas a tia queria que eles falassem alemão entre si. Irmão com irmão. Irmão com irmã. O cinto estalava no ar se um deles respondesse em português uma pergunta alemã. Tem que falar alemão! Dóitch chprehen! A minha tia era um general. E, generais não podem ser contrariados.
– Deutsch sprechen! – Fale alemão! – Ela ordenava em tom ríspido.
A prima mais velha já namorava escondido e ainda ouvia constrangida o ameaçador: – Deutsch sprechen!

O meu primo mais novo que devia ter uns sete anos também ouvia o Deutsch sprechen vinte vezes ao dia. Aquilo era uma lavagem cerebral. Tanto era, que um dia o menino estava brincando e se divertindo com o irmão e, de forma ingênua, perguntou para a mãe:
– Tenho que rir em alemão também?
Foi a libertação. Nunca mais a tia Waltraut ordenou que falassem alemão.
Mas meus primos nunca se libertaram de terem de comer espinafre, berinjela e chuchu. Tudo em alemão. É lógico.

12 junho 2007

Acordei


Acordei pensando e ejaculando vontades.
Você virou-me as costas.
Era tudo o que eu queria.

07 junho 2007

Mesa na calçada

Domingo ensolarado. Hora do almoço. Restaurante cheio. Guarda-sóis protegendo narizes empinados.
Papai Ivo, mamãe Tereza, avó Lucrécia, Pedro com a cara cheia de espinhas e Juninho com a chupeta.
Sobre a toalha engordurada uma travessa com um pouco de batatas fritas. Uma travessa cheia de alface, tomates e palmito. Uma travessa com resto de cebolas com molho. Outra travessa com arroz. Uma lata de cerveja e várias de guaraná.
Uma menina e um cachorro se aproximam.
Vovó vê longos cabelos desgrenhados, unhas sujas e pés descalços.
Pedro se delicia com olhos verdes e peitinhos desabrochando.
Mami se retrai com os vira-latas piolhentos.
Ivo vira a cara.
Juninho estende a sobra de bife mastigado.
A menina rasga a carne ao meio e oferta metade ao fiel amigo.
Juninho quer saber o nome da menina e seu cão.
Papi, Mami e Vó respondem juntos:– Bárbaros não têm nome!

28 maio 2007

Fora de medida

Chego em casa depois de mais um estafante dia de trabalho e a confusão está instalada: madame chorando na frente do fogão.
Sempre a tratei muito bem. Quase não lhe falta nada. Como sempre, acordei-a com um delicado beijo na testa, preparei o café e ainda coloquei colherinha e meia de açúcar. Beijei-a na saída. Melhor dizendo, beijei-a na boca, ao sair. Senti saudades e retornei direto para casa ao fim do dia.
Vejo que há uma série de xícaras diferentes espalhadas pela mesa da cozinha, um pacote de massa para bolo, um termômetro, a calculadora, alguns ovos de codorna, várias colheres de tamanhos diferentes, a jarra de leite, o pote de margarina derretida e o velho despertador barulhento.
Tomo-a em meus braços e pergunto o que foi que aconteceu.
Soluçando, responde que desejava preparar uma festinha só para nós dois, mas a receita do pacote estava por demais complicada:

BOLO DE CHOCOLATE
Ingredientes:
1 pacote de massa de bolo de chocolate
¾ de xícara de leite
3 ovos
2 colheres de margarina à temperatura ambiente

Misture tudo até formar massa homogênea; Unte e enfarinhe uma forma redonda com furo no meio; preaqueça o forno em temperatura média por quinze minutos; Não abra o forno antes de 30 minutos; após esfriar por 15 minutos, desenforme e sirva.
– Veja só quantas xícaras diferentes nós temos aqui: a do seu café, aquela outra de plástico, a do jogo de porcelana que ganhamos no nosso casamento... e todas têm tamanhos diferentes, – Ovos podem ser de codorna, de pata, de galinha, caipira, brancos, médios e... Enxugando as lágrimas. Qual dessas colheres? Uso a do diário ou devo usar a do faqueiro de prata?
Segurei-a pela mão, arrastando-a até a sala. Acomodei-a no sofá. E fui buscar dois cálices. Enquanto servia um porto, protestei:
– A culpa é da impunidade! Neste país as pessoas fazem o que querem e ninguém é responsabilizado por nada. Passam nos sinais vermelhos, assaltam, não fecham as pastas de dentes... Todos esses calhordas deveriam ser exemplarmente punidos! Para que serve o Instituto Nacional de Pesos e Medidas? Vou entrar com medida cautelar, seja lá o que isso queira dizer!
Irado, continuo meu protesto:
– Cientistas do mundo inteiro se reúnem, estudam e definem que quilograma é a massa do protótipo internacional constituído por um cilindro de platina e 10% de irídio depositado no Bureau Internacional de Pesos e Medidas, e ainda que o metro é igual ao comprimento do trajeto percorrido pela luz no vácuo durante um intervalo de tempo de 1/299 792 458 de segundo e... que diabos!
Virei o cálice de vinho para lubrificar a garganta e continuei:
– Estes fazedores de receitas culinárias estão nos cozinhando! Como vamos definir o que é uma pitada? Quantas gramas? Uma colher rasa de farinha? Então, além das colheres de chá, sopa e sobremesa, ainda podem ser cheias, bem cheias e rasas? Aí, ainda tem a história de meia xícara, três quartos de xícara ao invés de dizerem que se trata de tantos mililitros. Tenham a santa paciência! Forno à temperatura média. Vai te danar!
Sirvo-me de outro cálice de porto, viro o cálice de um só gole e continuo no meu discurso:
– A falta de uniformização das medidas é um retrocesso para a nossa nação. Sucrilhos, macarrão instantâneo, molho de tomate, geléia, coco ralado, sapatos... Nada está padronizado. Estamos a léguas de distância dos povos desenvolvidos!
Resolvi respirar e dar um dedo de prosa:
– Querida, você sempre soube preparar comidas maravilhosas. O que foi que houve? De verdade?
– Bom, eu só tinha ovos de codorna. Então quis saber quantos ovos de codorna seriam equivalentes a um de galinha. E principalmente queria saber onde você havia escondido a garrafa de vinho do porto.

※ ※ ※ ※ ※
Este texto foi extraído de “von Silva” – livro que aguarda publicação

22 maio 2007

Panapaná

Curioso? Também fiquei. Eu tinha um dicionário à mão. Talvez você não tenha. Se tiver, não precisa buscar, até o final do texto desvendaremos esta charada.
Panapaná não tem prefixo nem sufixo. E nem crucifixo para quem não souber o significado.
Existe um jogo com centenas de palavras, cada uma associada a cinco possibilidades, apenas uma verdadeira. Os jogadores devem tentar descobrir o significado se não souberem a resposta certa. Este não é um jogo, apenas um breve exercício mental.
Panapaná não tem origem grega nem latina. Não provém do francês, nem do inglês. É produto nacional, do bom. Ascendência tupi. Desta língua aprendemos e guardamos pouco. Ita é pedra. Pira é peixe. Boi é cobra e açu é grande. Só conhece quem se aventura por palavras cruzadas.
Com estas dicas já podemos deduzir que panapaná não é nome de palavra para invento do homem nem de coisa relacionada a modernidades. É coisa da natureza ou de sentimento.
Panapaná apesar de coletivo não se encontra nas cidades. Não é coletivo de transportar pessoas, é coletivo de transportar sonhos.
Panapaná não é uma borboleta, é um conjunto delas refletindo a alegria do sol em devaneios coloridos.

15 maio 2007

Dona Clotilde na farmácia


Canapé, garabulha, janota e trabuzana.
A mim, pareciam palavrões dos mais ofensivos. Para Dona Clotilde significavam sofá, confusão, mauricinho e tempestade.
Disseram-me que era professora do gymnásio. Maquiadíssima, ela usava um vestido preto com broche na lapela, um coque no cabelo roxo e sapatos com um salto de tacão. O conjunto devia ter uns 150 anos de idade. Ou mais.
Tratava-se de uma vetusta senhora. Velha era pouco. Dona Clotilde era muito velha.
Eu vi quando aquela ortodoxa figura entrou na farmácia. Reparei que escolheu escova de dentes e um creme que devia ser hidratante. Foi ao fundo da loja e retornou. Pegou um sabonete e tornou a ir ao fundo da farmácia onde separou um vidro de sei lá o quê.
Percebendo que a senhora estava desconfortável o atendente perguntou se poderia ajudá-la.
Eu estava muito longe e não ouvi o pedido. Apenas ouvi o balconista perguntar se ela estava rouca.
Vi a senhora matusalém contestar e mexer os lábios novamente.
O rapazola franziu a testa como quem não entendeu.
– A senhora está com dores nas costas?
A miúda anciã negou com a cabeça de coque roxo e discretamente resmungou alguma coisa.
– A senhora está com furúnculo?
A idosa mulher, quase se escondendo, fez que não. Chamou o farmacêutico mais para perto e cochichou alguma coisa.
Julgando a professora com problemas de audição, o moço com o jaleco branco perguntou:
– A senhora não consegue se sentar?
A antiqüíssima e frágil mulher se encolheu toda, fez que sim com os olhos. E, com o indicador em cruz sobre os lábios pediu discrição ao atendente e disse mais alguma coisa.
Vi quando o vendedor respondeu alguma coisa e a senhora consentiu com um discretíssimo sorriso.
Antes da série de bengaladas eu vi quando o balconista gritou para o colega:
– João, pega aí uma caixa de supositório para hemorróidas.

10 maio 2007

Narciso

Narciso era auto apaixonado. Seus pais eram o deus-rio Cefiso e a ninfa Liríope. E,por ser filho de deus se achava lindo, divino e maravilhoso. Passava o dia admirando-se no reflexo das águas da lagoa Eco. O problema era ficar de quatro, alguém poderia querer amá-lo também.
Por ordem de Narciso, o melhor artífice do reino criou o espelho: recortou um pedaço da lagoa e colocou-o numa moldura de brancas nuvens.
Narciso ao contemplar-se pela primeira vez ouviu o espelho repetindo: – Eco, eco, eco. Curioso e intrigado, aproximou-se bem do pedaço da lagoa e perguntou:
– Você só sabe dizer eco? O que dizes de mim?
– Você tem mau hálito.

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Imagem de Narciso por Caravaggio
 
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